quarta-feira, 17 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Velho Sábio e o Jovem Príncipe», por José Régio.

«O Velho Sábio e o Jovem Príncipe»
Conto de José Régio

270- «VELHO SÁBIO E O JOVEM PRÍNCIPE»

Era uma vez um homem verdadeiramente sábio. Como tal, ignorava muita coisa que só serve  para obstinação no erro e confusão das verdades; mas sabia muito do que mais importa, – sobre este mun­do e os outros. Não é certo que a verdadeira sabedoria consiste tanto em saber como em ignorar?

Longo tempo vivera entre os mais homens, levando, até, uma vida muito variada. Nem de outro modo poderia ter aprendido tanto! Mas sentin­do aproximar-se a velhice, quis, por assim dizer, recapitular tudo que aprendera, aprofundar ainda certos conhecimentos, e preparar-se em paz para o momento mais grave da vida do homem, – que é precisamente o de deixar a vida. Despediu-se, então, dos seus dois ou três amigos fiéis como quem não julgava poder tornar a vê-los. E retirou-se para um ermo, onde esperava poder viver feliz na tranquila ex­pectativa da morte pró­xima.

De facto, nesse ermo vivia feliz o nosso velho sábio. Con­sigo levara alguns instrumentos e utensílios necessários; alguns papéis já escritos do seu punho, ou para escrever; e meia dúzia de livros (não mais de meia dúzia) que tinham sido durante a sua agitada existência os seus melhores protectores, con­soladores e conselheiros. Tinha uma gruta por casa; o fogo para se aquecer; as peles dos animais para se cobrir; a som­bra das árvores para se defen­der do calor; os frutos da terra para se alimentar. Aí, era feliz o nosso velho sábio!

Vigoroso, apesar de velho, muitas vezes, a princípio, se entregava à caça e à pesca. Naturalmente, po­rém, se viera acostumando a só se nutrir de ervas e frutos, repugnando-lhe ter de matar seres vivos quer por seu mero divertimento, (o que lhe parecia um crime contra o Criador, contra a Criação), quer, até, para seu sustento. Porém, de nenhum preceito ou doutrina resul­tara propriamente esta sua atitude de espírito, mas sim duma íntima evolução natural.

Sendo aquele ermo um verdadeiro paraíso povoado de árvores, flo­res, aves e outros pequeninos ou grandes animais de toda a casta, – cada vez mais amava tudo que via: tanto pela sua beleza real e própria, como por se lhe afigurar tudo expressão duma Presença Imensa que a tudo ultrapassava. Sem conflito entre si se lhe abriam os olhos do corpo e os da alma! – o que, sem dúvida, é sinal de grande aperfeiçoamento. Cada pequenina flor da terra lhe parecia um milagre: milagre a sua cor, ou combina­ção de tons; milagre o seu cheiro; milagre o modo como recebia a lagrimazinha do orvalho da madru­gada; milagre o gentil bailado que ensaiava ao gosto da aragem… Também os costumes do mais peque­nino insecto se lhe tornavam cheios de interesse. Horas e horas esquecidas os seguia, os estudava, de bruços na terra. Isto sem nenhuma preocupação de estudo, – o que fazia com que mais aprendesse.

Da pequenina flor ou do pequenino insecto, partia para a contemplação do abismo estrelado dos céus; ou para a meditação da alma do animal hu­mano, com quem tanto lidara quando errara no mundo. Mas como aceitava o mistério, o mistério não o torturava. Sabia que não podia saber tudo. Os seus pensamentos eram simples, elevados e calmos. Nos intervalos, ia escrevendo vagarosamente as suas me­mórias. Reconhecia que, na verdade, não só recapitulava como aprofundava todos os seus mais verdadei­ros conhecimentos. Tendo pouco papel, e não muito cómodos instrumentos de escrita, via-se obrigado a poupar as palavras. Tanto melhor!, – não é ver­dade? Só escrevia o essencial. Pois não é verdade que todos temos papel, tinta e canetas a mais?

Aí, era feliz no seu ermo o nosso velho sá­bio! Até o seu corpo já velho recuperava forças. Muitas vezes se banhava nos ribeiros, como um rapaz; e depois se deixava ficar secando ao sol, com a ca­beça à sombra duma árvore, sobre um colchão de ervas e flores. E outras vezes tinha vontade de can­tar, e cantava, por que não?, logo ao romper de alva, em desafio com a passarada. Tornava-se isto uma sua maneira de rezar – por mero Amor – àquela Presença Imensa que os homens nomeiam de tão diversas maneiras – e por cuja diversidade de nomes se odeiam, se torturam, se matam, sendo tão  diversos nomes só um!

Sim, há anos que era feliz no seu ermo o nosso velho sábio. E como já lhe ia ficando longe o mun­do dos homens! o mundo dos homens cegos, des­graçados, maus! – aquele em que também ele tivera decepções, lutara debalde, engolira humilhações até por si próprio infligidas! Como já lhe ia ficando longe, agora que, na paz atingida, nem a lembrança da  morte  próxima o podia assustar um segundo…!

Ora uma tarde, estando o velho sábio cozen­do os seus legumes à porta da sua gruta, sentiu uma grande restolhada nos arbustos vizinhos. Era um ho­mem que veio cair a seus pés. Vinha ferido e arque­jante, com roupas opulentas mas esfrangalhadas. Mal pôde erguer para ele os olhos desvairados. As suas mãos sangrentas agarraram-se ao busto do ve­lho. A sua boca, torcendo-se, procurava dizer pala­vras que imploravam, que imploravam mas se não distinguiam…; – e o homem desfaleceu. Então, o velho arrastou-o para dentro da sua gruta. Arranjou-lhe um bom leito de folhas secas e peles. Descalçou-o, desoprimindo-o das roupas que o pudessem incomodar. E depois  lavou-o do sangue, pondo-lhe sobre as feridas, que afinal eram ligeiras, os bálsa­mos que sabia preparar com ervas benéficas. O des­conhecido voltara a si  do seu  desmaio. Mas sobre aquele excelente leito natural, ao calor da fogueira que o seu protector acendera, caiu num sono pro­fundo. Antes de adormecer, porém, dirigira ao ve­lho um sorriso juvenil, – não obstante o seu corpo de homem,  era quase uma criança – e  estendera-lhe a mão em sinal de agradecimento. O velho tomou-a nas suas, com toda a cautela porque estava ferida. E ali se ficou velando-o, comovido até às entranhas por aquela presença, que há tanto não go­zava, dum seu semelhante. Muitas vezes, quando errara no mundo e tivera os amores efémeros que todos têm, desejara um filho para ter alguém que verdadeiramente amasse. E já lhe parecia agora es­tar velando um filho, – que lhe caíra do céu. Não obstante sempre haver  sido feliz no seu ermo, essa noite estava sendo a melhor da sua vida.

Durante três dias ali viveram juntos, o nosso velho sábio e o seu desconhecido companheiro. Como nada sabiam da vida particular um do outro, só fa­lavam das coisas que realmente mais importam. E falaram muito!, – mesmo quando ficavam calados. O moço era cheio de curiosidades e dúvidas. Quanto ao velho, há tanto que não comunicava com nin­guém, a não ser consigo mesmo ou a natureza ignorante da língua dos homens!

Ao fim dos três dias, disse o jovem:

- Nada sabes a meu respeito; mas sou muito poderoso! Este mesmo retiro em que vives me per­tence, ou há-de pertencer-me. Sou o príncipe her­deiro. Meu pai está velho e quer abdicar em mim. Sinto-me rodeado de ambições, rivalidades, ódios, re­voltas… ou hipocrisias. E o que é pior é que me sinto eu mesmo perplexo perante vários problemas. Queria vir a ser um rei justo, protector dos mais infelizes…, mas como? De qualquer modo acabarão os inimigos da justiça por me vencer, – não tendo eu quem me esclareça e anime! Quando aqui vim parar, esca­pava duma cilada. Vês que já planeiam a minha morte, por saberem que desejo ser justo? Mas as ci­ladas vão multiplicar-se sob os meus pés… E eu pre­ciso de quem saiba disciplinar a minha força con­fusa, e aproveitar a minha mocidade! Meu pai, como te disse, está velho: não velho forte como tu, mas gasto. Neste momento, quem sabe se não agonizará o pobre velho na angústia e na ignorância do que me terá sucedido? Tão feliz tenho sido contigo, nes­tes escassos dias, que me tornei o mais ingrato dos filhos, o mais indigno do príncipes… Mas nunca go­zara desta paz, nunca ouvira palavras como as tuas! nunca respeitara ninguém, nem a meu próprio pai, como já te respeito!… Anda comigo, e serei forte. Se­rás o meu primeiro ministro. Serás o verdadeiro rei. Dar-te-ei, no meu reino, todos os poderes e todas as riquezas…

O velho fitou-o de alto, com uma dureza de indignação nos olhos :

- Todos os poderes e todas as riquezas! Pen­sas conhecer-me, julgas respeitar-me, e tentas comprar-me com esse prato de lentilhas?

- Perdoa – disse humildemente o moço. – Dar-te-ei o amor dum filho e a obediência dum discípulo atento…

- Já é mais alguma coisa, concordo. Mas ainda não chega.  

O príncipe calou-se, triste. Mas perguntava a si próprio, revolvendo muitas coisas no espírito, como poderia decidir o seu velho amigo. Por fim, levantou para ele os olhos brilhantes:

- Dizes que já não tens medo de nada! Nem da vida, nem da morte. Dizes que já aprendeste tudo quanto és capaz de saber. Mas de que te serve a tua força, de que te serve a tua sabedoria, se não servem a mais ninguém? se hão-de apagar-se neste deserto?

- Já te serviram a ti de alguma coisa, não é verdade?

- Lembra-te de que ainda sou muito novo!… – gemeu o príncipe – Não saberei defender os tesouros que me fizeste adivinhar… E lembra-te que fui eu que vim ter contigo. Vem tu agora comigo! Dou-te uma ocasião única para aproveitares a tua força e a tua sabedoria… Ainda te não chega, isto?

O velho cravou então nele os seus olhos pro­fundos e serenos. Sorriu-se, com um sorriso que tam­bém era  juvenil, e respondeu :

- Por hoje, não tornemos a falar no assunto, vejo que já alguma coisa aprendeste contigo próprio… além do que aprendeste comigo.

Mas quando o jovem príncipe adormeceu no seu leito de folhas secas e peles, esteve um largo pedaço a contemplá-lo. Depois curvou-se e beijou-o na testa, adoptando-o por filho: Sabia que também aquele viveria num ermo, – e terrível, o mais ter­rível dos ermos!, o que se vive entre os homens. Se­ria, pois, a sua companhia, enquanto pudesse. Regres­saria ao mundo para acabar os seus dias na luta com os homens cegos, desgraçados, maus…

Bela noite! Estava uma bela noite de lua. Toda a noite o velho sábio vagueou pelos seus domínios, despedindo-se daqueles sítios amados. Não desponta­ra ainda o sol na aguada rosa do horizonte, quando, vindo ao seu encontro, o jovem príncipe lhe pergun­tou mais com os olhos do que com os lábios :

- Então?!

E o velho  sábio respondeu-lhe:

- Pois sim! vamos.

José Régio

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