sexta-feira, 5 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Buquê Azul», por Octávio Paz.

«O Buquê Azul»
Conto de Octávio Paz

258- «O BUQUÊ AZUL»

Acordei, coberto de suor. Do piso de azulejos vermelhos, recém-regados, subia um vapor quente. Uma borboleta de asas cinzentas volteava deslumbrada ao redor do foco amarelado. Pulei da rede e descalço atravessei o quarto, cuidando não pisar em algum escorpião saído de seu esconderijo para tomar ar fresco. Aproximei-me da janelinha e aspirei o ar do campo. Ouvia-se a respiração da noite, enorme, feminina. Voltei para o centro do quarto, esvaziei a água da jarra na bacia de latão e umedeci a toalha. Esfreguei o torso e as pernas com o pano ensopado, enxuguei-me um pouco e, após assegurar-me de que nenhum bicho estava escondido entre as dobras de minha roupa, vesti-me e calcei-me. Desci pulando a escada pintada de verde. Na porta da hospedaria tropecei com o dono, sujeito caolho e reticente. Sentado numa cadeirinha de tule, fumava com o olho semiaberto.
Com voz rouca perguntou-me: 

— Aonde vai, senhor? 

— Vou dar uma volta. Faz muito calor. 

— Hum, já está tudo fechado. E não há iluminação pública aqui. Mais lhe valeria ficar. 

Levantei os ombros, murmurei “já volto” e enfiei-me no escuro. A princípio não via nada. Caminhei tateando pela rua empedrada. Acendi um cigarro. De repente a lua saiu de uma nuvem negra, iluminando um muro branco, desmoronado a trechos. Detive-me, cego perante tanta brancura. Soprou um pouco de vento. Respirei o ar das tamarineiras. Vibrava a noite, cheia de folhas e insetos. Os grilos acampavam entre as gramas altas. Levantei o rosto: lá em cima também haviam estabelecido acampamento as estrelas. Pensei que o universo era um vasto sistema de sinais, uma conversação entre seres imensos. Meus atos, o serrote do grilo, o piscar da estrela, não eram senão pausas e sílabas, frases dispersas daquele diálogo. Qual seria essa palavra da qual eu era uma sílaba? Quem disse essa palavra e para quem a disse? Joguei o cigarro sobre a calçada. Ao cair, descreveu uma curva luminosa, lançando breves chispas, como um cometa minúsculo. 

Caminhei por um longo tempo, devagar. Sentia-me livre, seguro entre os lábios que nesse momento me pronunciavam com tanta felicidade. A noite era um jardim de olhos. Ao atravessar a rua, senti que alguém se afastava de uma porta. Virei-me, mas não acertei a distinguir nada. Apertei o passo. Em alguns instantes percebi umas sandálias de couro sobre as pedras quentes. Não quis virar-me, embora sentisse que a sombra aproximava-se cada vez más. Tentei correr. Não pude. Detive-me em seco, bruscamente. Antes que pudesse me defender, senti a ponta de uma faca nas costas e uma voz doce: 

— Não se mexa, senhor, ou vou enterrá-lo. 

Sem virar o rosto perguntei: 

— O que quer? 

— Seus olhos, senhor — respondeu a voz suave, quase com pudor. 

— Meus olhos? Para que lhe servirão meus olhos? Olhe, aqui tenho um pouco de dinheiro. Não é muito, mas é alguma coisa. Eu lhe darei tudo o que tenho, se me deixar. Não me mate. 

— Não tenha medo, senhor. Não o matarei. Só vou lhe tirar os olhos. 

— Mas, para que quer meus olhos? 

— É um capricho de minha noiva. Ela quer um buquê de olhos azuis e por aqui há poucos que os tenham. 

— Meus olhos não servem. Não são azuis, mas amarelos. 

— Ai, senhor, não queira me enganar. Eu bem sei que os tem azuis. 

— Não se tiram assim os olhos de um cristão. Eu lhe darei outra coisa. 

— No se faça de melindroso, disse-me com dureza. Vire-se. 

Virei-me. Era pequeno e frágil. O chapéu de palha cobria-lhe metade do rosto. Sustinha com o braço direito um facão de roça, que brilhava com a luz da lua. 

— Ilumine o seu rosto. 

Acendi e aproximei o rosto da chama. O resplendor me fez entrefechar os olhos. Ele afastou minhas pálpebras com mão firme. Não podia ver bem. Ergueu-se sobre as pontas dos pés e contemplou-me intensamente. 

A chama queimava-lhe os dedos. Joguei-a fora. Permaneceu um instante silencioso. 

— Já se convenceu? Não os tenho azuis. 

— Ah, como o senhor e teimoso! — respondeu — Deixe-me ver, acenda outra vez. 

Risquei outro fósforo e o aproximei de meus olhos. Puxando-me pela manga, ordenou. 

— Ajoelhe-se. 

Ajoelhei-me. Com uma mão pegou-me pelos cabelos, jogando minha cabeça para atrás. Inclinou-se sobre mim, curioso e tenso, enquanto o facão descia lentamente até tocar minhas pálpebras. Fechei os olhos. 

— Abra-os bem — ordenou. 

Abri os olhos. A pequena chama queimava-me os cílios. Soltou-me de improviso. 

— Pois não são azuis, senhor. Desculpe. 

E sumiu. Acordei junto ao muro, com a cabeça nas mãos. Depois me levantei. Aos tropeções, caindo e levantando, corri durante uma hora pelo vilarejo deserto. Quando cheguei até a praça, vi o dono da hospedaria, sentado ainda frente à porta. 

Entrei sem dizer uma palavra. 

No dia seguinte fugi daquele vilarejo.

Octávio Paz

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