terça-feira, 18 de novembro de 2014

OUTROS CONTOS

«Sobre a Leitura», por Marcel Proust.

«Sobre a Leitura»
Jovem Rapaz Lendo, por Ignat Bednarik

332- «SOBRE A LEITURA»

Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aquelas que pensamos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. Era como se tudo aquilo que para os outros os transformava em dias cheios, nós desprezássemos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: o convite de um amigo para um jogo exatamente na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol que nos forçava a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, a merenda que nos obrigavam a levar e que deixávamos de lado intocada sobre o banco, enquanto sobre nossa cabeça o sol empalidecia no céu azul; o jantar que nos fazia voltar para casa e em cujo fim não deixávamos de pensar para, logo em seguida, poder terminar o capítulo interrompido, tudo isso que a leitura nos fazia perceber apenas como inconveniências, ela as gravava, contudo, em nós, com uma lembrança tão doce (muito mais preciosa, vendo agora à distância, do que o que líamos então com tanto amor) que se nos acontece ainda hoje folhearmos esses livros de outrora, já não é senão como simples calendários que guardamos dos dias perdidos, com a esperança de ver refletidas sobre as páginas as habitações e os lagos que não existem mais.

Quem, como eu, não se lembra dessas leituras feitas nas férias, que íamos escondendo sucessivamente em todas àquelas horas do dia que eram suficientemente tranquilas e invioláveis para abrigá-las. De manhã, voltando do parque, quando todos “tinham ido fazer um passeio”, eu me metia na sala de jantar, onde, até a ainda distante hora do almoço, ninguém, senão a velha Félice, relativamente silenciosa, entraria, e onde não teria como companheiros de leitura mais do que os pratos coloridos pendendo nas paredes, o calendário cuja folha da véspera havia sido há pouco arrancada, o pêndulo e o fogo que falam sem pudor que se lhes responda, e cujo suaves propósitos vazios de sentido não substituem – como as palavras dos homens – o sentido das palavras que se leem. Instalava-me numa cadeira ao pé do fogo de lenha, do qual, durante o almoço, o tio madrugador e jardineiro diria: “Não é ruim”! Suporta-se muito bem um pouco de calor do fogo, posso garantir que às seis horas fazia bastante frio na horta. Antes do almoço quem poria fim, sem pena, à leitura. De tempos em tempos, ouvia-se o barulho da bomba que fazia a água correr e também levantar os olhos e olhá-la através dos vidros fechados da janela, ali, bem perto, na única álea do jardinzinho que margeava com tijolos e faianças em meias-luas suas platibandas de amores-perfeitos: amores perfeitos colhidos, parece, nesses céus tão bonitos, esses céus versicolores e como que refletidos dos vitrais da igreja que se viam às vezes entre os tetos da vila, céus tristes que apareciam antes das tempestades ou depois, já bastante tarde, quando o dia estava prestes a terminar.
Já era meio-dia, fazendo com que meus pais pronunciassem as palavras fatais: “Venha, feche seu livro, vamos almoçar”.

Marcel Proust

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