domingo, 23 de novembro de 2014

OUTROS CONTOS

«Óleo de Cão», por Ambrose Bierce.

«Óleo de Cão»
Conto de Ambrose Bierce

337- «ÓLEO DE CÃO»

Meu nome é Boffer Bings. Nasci de pais honestos, em um estilo de vida dos mais humildes. Meu pai era fabricante de óleo de cão, e minha mãe tinha, ao pé da igreja da vila, um pequeno gabinete, onde eliminava bebés indesejados. Já na minha infância aprendi os processos da indústria. Não apenas ajudava o meu pai procurando os cães para seu caldeirão, como também minha mãe me encarregava frequentemente da missão de me desfazer dos despojos de seu trabalho no gabinete. Para me desincumbir desse mister, às vezes precisei de toda minha natural inteligência, posto que todos os agentes da lei da vizinhança se opunham aos negócios de minha mãe. Já que os agentes não haviam sido eleitos pela oposição, o assunto nunca tinha injunções políticas: simplesmente faziam-no por fazer.

Naturalmente, o trabalho de meu pai – fabricação de óleo de cão – era menos impopular, embora os proprietários dos cães desaparecidos o olhassem às vezes com desconfiança, o que, em certa medida, se reflectia em mim. Como sócios, à escondida, tinha meu pai os médicos da cidade, que quase nunca aviavam uma receita sem que nela constasse ao que eles orgulhosamente designavam “Ol. can.”, o remédio mais valioso que já se houvera descoberto. Mas a maioria das pessoas não está disposta a fazer sacrifícios pessoais pelos aflitos, e era evidente que muitos dos cachorros mais gordos da cidade eram proibidos de brincar comigo. Isto feriu a minha sensibilidade juvenil e, certa feita, dirigiram-se a mim para fazer-me de pirata.

Olhando para trás, para aqueles dias, não posso, às vezes, evitar o arrependimento, pois, levando indirectamente os meus queridos pais à morte, fui o autor dos infortúnios que profundamente afectaram o meu futuro.

Certa noite, ao passar à frente da fábrica de meu pai, quando vinha do gabinete de minha mãe, trazendo um exposto, vi um guarda que parecia observar atentamente os meus movimentos. Embora bastante jovem, eu já aprendera que os guardas só acorriam aos factos mais repreensíveis, de molde que dele me esquivei, enfiando-me na fábrica de azeite por uma porta lateral, que calhou de estar aberta. Travei a porta de uma vez e fiquei só com o meu morto. O meu pai já se recolhera. A única luz daquele lugar provinha do forno, que ardia intensamente sob um dos caldeirões, espalhando uma profunda luz e lançando reflexos rubros nas paredes. No caldeirão, o óleo estava em indolente ebulição, empurrando, ocasionalmente, um pedaço de cão para a superfície. Fiquei a esperar que o guarda se retirasse. Mantive no meu colo o corpo nu da criancinha e lhe acariciei ternamente o cabelo curto e sedoso. Ah, como era bela! Já naquela tenra idade eu gostava muitíssimo das criancinhas e, ao contemplar aquele anjinho, quase desejei em meu coração que a pequena ferida vermelha de seu peito, obra de minha querida mãe, não fosse mortal.

O que eu pretendia, como de costume, era jogar a criança ao rio, que a natureza sabiamente nos legara para tal fim, mas, naquela noite, com medo do policial, não me atrevi a deixar a fábrica de azeite. “Afinal – disse com os meus botões – , não acho que teria importância se eu vier a entorná-la no caldeirão. O meu pai nunca irá distinguir os seus ossos dos ossos de um cachorro. E as poucas mortes que pudessem resultar da administração de outro tipo de azeite, no lugar do incomparável 'Ol. can.', não serão percebidas em uma população que cresce tão rapidamente". Em suma, dei o meu primeiro passo para o crime, o que me trouxe sofrimentos indizíveis, e entornei a criança no caldeirão.

No dia seguinte, para minha surpresa, meu pai, a esfregar as mãos de satisfação, informou a mim e à minha mãe que obtivera o óleo de qualidade nunca vista, e que este era o parecer dos médicos aos quais levara amostras. Ele acrescentou que não tinha ideia de como lograra tal resultado, pois tratara os cães como sempre o fizera, em todos os aspectos, e eram eles de uma raça comum. Considerei que era o meu dever lhes ofertar uma explicação e teria certamente contido o ímpeto de minha língua se pudesse prever as consequências. Os meus pais, lamentando a anterior ignorância sobre as vantagens de combinar os seus afazeres, adoptaram medidas para reparar o erro. Minha mãe mudou o seu gabinete para uma ala do edifício da fábrica e as minhas tarefas com relação ao ofício cessaram. Já não mais precisavam de mim para que me desfizesse dos pequenos supérfluos e não remanescia a necessidade de atrair os cães à condenação, pois o meu pai renunciou completamente a eles, embora ainda ocupassem o honroso nome no azeite. Assim, subitamente atraído para o ócio, poder-se-ia esperar que eu me tornasse uma pessoa viciosa e dissoluta, mas não foi isso o que aconteceu. A santa influência de minha querida sempre recaía sobre mim, protegendo-me das tentações que assediam a juventude, e, além disso, meu pai era diácono de uma igreja. Ai de mim! Por culpa minha, estas estimáveis pessoas iriam evoluir a um fim tão cruel!.

Ao experimentar um proveito duplo com os seus negócios, minha mãe se entregou ao mister com uma assiduidade nunca dantes vista. Não apenas se desfazia dos bebés indesejados que lhe eram entregues, como acorria às ruas e becos à procura de criancinhas maiores e mesmo adultos que lograva atrair à fábrica. Também meu pai, apaixonado pela melhor qualidade do óleo produzido, fornia os seus caldeirões com diligência e zelo. A conversão de seus vizinhos em óleo de cão tornou-se, em suma, a paixão de suas vidas. Uma ganância absorvente invadiu suas almas e ocupou o lugar da esperança que tinham de alcançar o paraíso, que, de sua feita, também os inspirava.

E se atiraram tão vivamente à empresa que uma reunião pública foi realizada, na qual adoptaram-se resoluções que os censuravam severamente. Ele foi intimado pelo presidente: quaisquer incursões contra a população seriam recebidas com hostilidade. Meus pobres pais saíram da assembleia com o coração partido, desesperados e, creio eu, não completamente sãos. Considerei prudente, de toda forma, não entrar com eles na fábrica de óleo naquela noite e fui dormir lá fora, num estábulo.

Cerca de meia-noite, algum misterioso impulso ordenou que eu me levantasse e espreitasse pela janela do quarto do forno, onde eu sabia que meu pai já dormia. O fogo ardia em fulgores, como se esperasse por uma colheita abundante no dia seguinte. Um dos enormes caldeirões fervia devagar, dotado de um misterioso aspecto de auto-contenção, como se aguardasse o momento de transbordar a sua total energia. Mas meu pai não estava na cama. Levantara-se e estava com roupas de dormir. Fazia um nó numa corda vigorosa. Pelos olhares que dirigia à porta do quarto de minha mãe, deduzi perfeitamente o propósito que ele tinha em mente. Mudo e imóvel, cheio de terror, eu nada pude fazer em matéria de prevenção ou alerta. Subitamente, a porta do quarto de minha mãe se abriu sem fazer ruído e eles se defrontaram, ambos aparentemente surpreso. A senhora também estava de camisola, e levava, na mão direita, a sua ferramenta de trabalho: uma longa adaga de lâmina estreita.

Ela foi, igualmente, incapaz de negar-se ao lucro que a atitude hostil dos cidadãos e a minha ausência lhe permitiam. Por instantes, eles contemplaram mutuamente os olhos em chamas e, então, lançaram-se com indescritível fúria um contra o outro. Como demónios, lutaram pelo cómodo todo. Meu pai maldizia. Minha mãe gritava. Ela tentava cravar-lhe a adaga. Ele forçava por estrangulá-la com as grandes mãos. Não sei por quanto tempo tive a desgraça de observar este desagradável momento de infelicidade doméstica, mas, enfim, depois de um esforço mais vigoroso que o ordinário, os adversários subitamente se separaram.

O peito de meu pai e a arma de minha mãe exibiam sinais de contacto. Por instantes, olharam-se da forma mais hostil. Então meu pobre e ferido pai, sentido sobre si a mão da morte, saltou à frente e, fazendo pouco da resistência que a minha mãe oferecia, tomou-a nos braços, conduzindo-a ao caldeirão fervente. E, reunindo as suas últimas forças, saltou com ela! Em um momento, ambos tinham desaparecido e adicionavam seu óleo àquele do comité dos cidadãos que os haviam convocado, no dia anterior, à reunião pública.

Convencido que estes funestos acontecimento obstruíam todos os caminhos para uma honorável carreira naquela cidade, abandonei-a em prol da famosa vila de Otumwee, onde escrevi estas memórias com o coração repleto de remorsos por um acto tão imprudente e que envolve um deveras catastrófico desastre comercial.

Ambrose Bierce

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