sábado, 17 de outubro de 2015

OUTROS CONTOS

«A Mendiga de Locarno», por Heinrich von Kleist.

«A Mendiga de Locarno»
A Mendiga/ Almeida Júnior

643- «A MENDIGA DE LOCARNO»

Ao pé dos Alpes, nas proximidades de Locarno, no norte da Itália, encontra-se um antigo castelo, que se vê quando se chega de São Gotardo, ele pertenceu a um marquês, e agora se encontra em escombros e ruínas: um castelo com altos e espaçosos cômodos, num dos quais, outrora, estava sobre a palha para ela ali colocada, por compaixão da dona-de-casa, uma velha mulher doente, que chegara à porta para pedir esmolas. O marquês que, no retorno da caçada, por acaso entrou neste quarto, onde ele costumava colocar sua espingarda, ordenou, contrariado, à mulher, que se levantasse do canto no qual estava deitada e fosse para trás da estufa. A mulher, que se levantou, resvalou com a muleta no chão escorregadiço e machucou a coluna de maneira crítica; de tal modo que ela, na verdade com indizível esforço, levantou-se e atravessou o quarto como foi prescrito, porém atrás da estufa, sob gemidos e suspiros, caiu no chão e faleceu.

Alguns anos depois, quando o marquês ficou em grave situação patrimonial devido à guerra e à má colheita, chegou-lhe um cavaleiro florentino que desejava comprar o castelo graças à sua bela localização. O marquês, para quem o negócio era muito oportuno, encarregou a esposa de acomodar o visitante no quarto, anteriormente vazio, que fora bela e luxuosamente mobilado. Quão confuso ficou o casal, quando o cavaleiro, transtornado e pálido, voltou no meio da noite, assegurando alta e valorosamente, que o quarto era assombrado, que nele havia algo invisível ao olhar, que fazia um ruído como se estivesse sobre palha, se levantava no canto do quarto, atravessava-o lenta e fragilmente com passos claramente perceptíveis, e atrás da estufa, sob gemidos e suspiros, caía no chão.

O marquês assustado, ele mesmo não sabia direito por quê, zombou do cavaleiro com artificial satisfação, e disse que, para sua tranquilidade, se levantaria imediatamente e passaria a noite com ele no quarto. Mas o cavaleiro pediu o obséquio de que lhe permitissem pernoitar na poltrona do seu quarto de dormir, e assim que a manhã chegou, mandou atrelar os cavalos, despediu-se e partiu.

Este acontecimento, que produziu muita agitação, espantou vários compradores para supremo desagrado do marquês; de tal modo que entre sua própria criadagem se levantou o estranho e incompreensível rumor de que no quarto algo transitava à meia-noite; para resolver a situação, decidiu examinar o assunto na noite seguinte. Assim, ao entardecer, deixou sua cama montada no dito quarto e permaneceu sem dormir até a meia-noite. Mas quão consternado ficou, quando, de fato, com a batida da meia-noite, percebeu o incompreensível ruído; era como se um ser humano se levantasse da palha, que sob ele estalava, atravessasse o quarto e caísse atrás da estufa entre lamúrias e queixumes. A marquesa lhe perguntou, na manhã seguinte, quando ele voltou, como terminara a investigação; e ele, então, mirou ao seu redor com assustadiço e duvidoso olhar, e depois de trancar a porta, assegurou que havia veracidade na história da aparição: ela se assustou como nunca lhe acontecera em sua vida, e pediu-lhe que, antes de falar sobre o caso, se sujeitasse com sangue frio, novamente, a uma prova, desta vez em sua companhia. Na noite seguinte, de fato, eles ouviram, juntamente com um leal criado que os acompanhava, o mesmo incompreensível, fantasmagórico ruído; e apenas o urgente desejo de se ver livre do castelo a qualquer preço lhes deu ânimo para reprimir, perante o empregado, o pavor que se apoderou deles, e justificar o acontecimento com um despreocupado e casual motivo, que tiveram de inventar. Na noite do terceiro dia, como ambos queriam descobrir a verdade do caso, subiram, com nervosismo, novamente a escada que levava ao estranho quarto; por acaso, chegou, frente à mesma porta, o cachorro da casa, que alguém tinha soltado da corrente; de tal modo que ambos, sem se comunicarem verbalmente, levaram o cachorro para o quarto, talvez com o objetivo instintivo de ter, além deles mesmo, ainda um terceiro ser vivo. 

O casal, em torno das onze horas, se sentou cada um em sua cama: duas luminárias sobre a mesa, a marquesa não-despida, o marquês com espada e pistolas que ele pegou do armário perto de si; e enquanto eles procuravam, tão bem quanto conseguiam, se entreter com conversas, o cachorro deitou-se no chão no meio do quarto, encolheu-se juntando cabeça e pernas e adormeceu. Depois, no instante da meia-noite, pôde novamente ser ouvido o terrível ruído; alguém, que nenhum ser humano pode ver com os olhos, ergueu-se com muletas no canto do quarto; ouviu-se a palha, que sob si farfalhava; e com o primeiro passo: tap! tap! o cachorro acordou, ergueu-se do chão de repente, aguçou as orelhas, e rosnando e latindo, foi se esquivando para trás em direcção da estufa, como se um ser humano caminhasse em sua direção. Neste momento, a marquesa, com os cabelos arrepiados, saiu correndo do quarto; e, enquanto o marquês, que agitava a espada, gritou: quem lá?, sem obter resposta, o vento, de repente, pareceu vir de todos os lados, e a marquesa partiu, ágil, resoluta e instantaneamente, em direção da cidade. Mas antes que empacotasse algumas coisas e se colocasse para além do portão, viu o castelo à sua volta arder em chamas. O marquês, tomado pelo pavor, pegara uma vela, e lá mesmo, ateara fogo nos quatro cantos, por tudo que era revestido de madeira, já cansado de sua vida. Em vão, ela enviou pessoas para salvar o infeliz; ele perecera do modo mais terrível, e ainda hoje se encontram, recolhidos pela gente do lugar, seus brancos ossos no canto do quarto, do qual ele ordenou que a mendiga de Locarno se levantasse.

Heinrich von Kleist

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