domingo, 31 de janeiro de 2016

OUTROS CONTOS

«Dois Ovos ao fim da Tarde», por Fernando Namora.

«Dois Ovos ao fim da Tarde»
O Ovo ou Urutu, por Tarsila do Amaral/ 1928 

723- «DOIS OVOS AO FIM DA TARDE»

(Conto verídico sobre o pintor Luís Dourdil)      

Quando o homem saiu de casa, pensou apenas em que lhe saberia bem ir a pé até ao fundo da Alameda. Não eram muitas as vezes em que podia voltar as costas ao autocarro e dar-se a esse apetecido exercício. Sem o aguilhão do relógio. Sem moer-se com atrasos. Tinha um emprego que o enjaulava das tantas da manhã (que cedo acordavam as manhãs!) às tantas da tarde (que ronceiras eram as tardes!), com as nádegas pregadas a um banco alto, o cavalete na frente, a mão contrafeita a sujar papéis de olhos fechados, a cidade espalmada nos vidros da janela como um rosto triste (mas a tristura era dele, que a via tão perto e tão distante), e quando, enfim, se abriam as portas da prisão pouco mais tempo lhe restava do que, num rufo, tomava a bica no café mais próximo. Depois vinha o jornal lido no autocarro, o jantar e o serão que não chegava a nada para o muito que lhe daria gosto fazer. A mulher nem se atrevia a propor um passeio. Sabia respeitar aquela necessidade de iludir o sonho e tricotava enquanto ele, numa nuvem de cigarros, refundia, noite após noite, o que começara na véspera. Havia os domingos, é certo, mas os domingos eram a ressaca da semana: a indolência merecida ou desenganada, o pequeno almoço na cama, a música do rádio, a matiné no cinema do bairro e, sobretudo, o fastio das ruas em que a vida se adiava. A verdade é que, quando chegava o Verão, sentia as juntas perras, a moleza pegada ao corpo e, debalde, fugia ao langoroso convite dos cadeirões das esplanadas. Valia-lhe ser um peso pluma. Mas agora que, por um acaso da sorte e valendo-se de um duvidoso atestado de doença, interrompera o emprego para aceitar aquele trabalho, não desperdiçaria o ensejo de um pouco de marcha diária, já que da sua casa à Alameda nem dois quilómetros distavam. Marchar, numa rotina de sedentarismo (tanto os da alma como os dos músculos) também sabia a libertação. O homem, pois, saiu de casa a foi ao atravessar a rua que se lembrou dos ovos. Sem os ovos, nada feito. Estudara as coisas com rigorosa minúcia. Desavezado a certos lugares, e como nunca acompanhara a mulher nas compras, voltou atrás e gritou para cima, pelos roufenhos do intercomunicador:

- Maria, onde poderei encontrar ovos?

A mulher, com risos na voz, elucidou-o:

-Fica-te em caminho. Na Charcutaria "Pôr do Sol".

A Charcutaria "Pôr do Sol". Essa, conhecia ele. Ali a dois passos. Tomava lá café, nada mau, e só um herege podia ficar indiferente à exuberância da apetitosa montra, desde chourições aos papos de anjo de Amarante. Ovos, numa luxaria daquelas? A ideia intimidava-o. Entrou, porém armando-se com o alibi de precisar de cigarros, para o caso de se sentir em apuros. Viu-se, por momentos, aturdido com o labirinto de escaparates, mas logo um senhor mavioso, que o observara de longe, destes para quem "o cliente tem sempre razão", veio desembaraça-lo de hesitações.

-Tem a bondade. Vossa Excelência que deseja?

Adiou a resposta com um distraído ou ainda perturbado:

-Boa tarde.

-Boa tarde a Vossa Excelência. Deseja então...

-Ovos.

-Com certeza. Tem por onde escolher.

-Queria dos melhores.

O lojista, que parecia passado a ferro de cima a baixo, assentiu numa reverência e, guiando o cliente até uma pilha de tabuleiros, apontou com a mão esmerada:

-Aqui os tem Vossa Excelência.

O homem pegou num dos ovos, rodou-o vagarosamente entre os dedos, avaliou-lhe o peso e, quando ia a apreciá-lo contra a luz, o lojista interrompeu-o, já numa ênfase um tudo-nada agastada:

-São de primeira qualidade.Com carimbo. Vêm directamente de Albarraque, do produtor. Ovos saloios- e diluiu o olhar impaciente pelo que se passava em redor.

O pormenor do carimbo é que pareceu impressionar o cliente. Pois, lá estava o carimbo. Para quem não estivesse afeito aos códigos de mercancia, poderia parecer outra coisa, mas eram mesmo letras, números-um carimbo. Ficava a saber que por aí, se conheciam os ovos de confiança.

-Bem, já vejo que são bons. E suponho que frescos.

-Sem dúvida.

O lojista aguardou uma ordem, ou seja, que o freguês mandasse embalar a quantidade desejada, e, de raspão, atentou em que ele nada trazia consigo, nem um saquinho disfarçado que servisse para transportar os ovos. Mais que ia dizer-lhe para mandar a encomenda a casa.

-Quantas dúzias?

-Quero dois.

-Disse duas?

-Dois. Dois ovos.

-Vossa Excelência manda.

A imperturbabilidade do lojista era um modelo de controlo profissional das emoções. De calo no ofício. E também de natural fidalguia, perfeitamente compatível com uma actividade que alguns tinham por servil. Um senhor, enfim. Chamou a empregada para embrulhar os dois ovos e agradeceu como se tivesse tratado de uma compra choruda.

O homem esteve a trabalhar toda a tarde...

No dia seguinte, a cena da compra simplificou-se.

O senhor de falas corteses viu-o do balcão, antecipou-se a um marçano, talvez para que não houvesse perda de tempo e inquiriu:

-Hoje, Vossa Excelência deseja...

-Os ovos. Dois. Com carimbo.

Enquanto os escolhia no tabuleiro, o lojista repetiu:

-Dois. Com carimbo. Ei-los. Mais nada?

-Mais nada.

O outro franziu a testa ainda lisa. Só a testa. Mas, ao convidar o freguês a acompanhá-lo na cariciosa mirada pelos artigos expostos, via-se que lhe era difícil aceitar o vexame de uma compra que não justificava que alguém pusesse os pés na mais ordinária das lojas.

-Temos um esplêndido queijo de Azeitão. Talvez Vossa Excelência...Mas se prefere da Serra...

-Não quero queijo.

-Ou fiambre. Não encontra que se compare.

-Apenas os ovos.

-Vossa Excelência manda.

À despedida, foi com um tempero de discreta ironia que o senhor afável perguntou:

-Vossa Excelência ficou satisfeito com os ovos de ontem?

-Eram perfeitos.

-Ainda bem. Nunca tivemos uma reclamação.

E o mesmo diálogo com a ocasional variante de meias palavras de embuçada intenção, nos dias que se seguiram. Mas, à quarta vez, depois de o lojista o seduzir em vão com atuns, salpicões, alheiras de Mirandela, intrigado com a história dos ovos... bastar-se com os ovos em três jantares sucessivos? (e o almoço, com mil diabos?) e nem ao menos se consolar com um naco de presunto ou uma talhada de queijo!...Por isso, o estranho cliente era uma carga de ossos.

-Boa tarde.

-Boas tardes a Vossa Excelência.

-Dois ovos como os de ontem.

-Ou como os de anteontem...

Sorriam ambos. A resvalar para uma intimidade constrangida.

E estavam naquilo, à mesma hora. E, por ser à mesma hora, o lojista já o esperava à porta.

-Os dois ovinhos do costume, não é verdade?

-Dois.

-A que horas fecha a charcutaria?

-Às dez, caro senhor.

-Então passarei a vir à roda das nove.

O lojista passou a mão branda pelos cabelos grisalhos, que a brilhantina escurecia e domesticava. Encorajava-se a um reparo.

-Vossa Excelência desculpará a impertinência: mas porque não leva de cada vez uma dúzia de ovos, uma dúzia ou outra quantidade qualquer, evitando o incómodo de...

-Prefiro assim.

-Vossa Excelência manda.

Os gestos do lojista, porém, a custo dissimulavam o nervosismo, para não dizer a irritação. Aguardava o cliente à hora prevista...

-Vossa Excelência tem frigorífico?

-Tenho, mas porque me pergunta?

-É que se permite uma sugestão, poderia abastecer-se com uma quantidade razoável de ovos, visto que, no frigorífico, conservam-se muitos dias.

-Bem sei. Mas quero-os bem frescos. Dois de cada vez.

-Vossa Excelência é casado? Perdoe o atrevimento.

-Atrevimento? De modo nenhum! Sou casado, sou. Há uns bons anos.

-E janta, portanto, em casa.

-Quase sempre.

-Ah.

E não ousou ir mais longe. Em cada dia que entre ambos se insinuava uma convivência de ambiguidades, o lojista avançava em passo miúdo na tentativa de decifrar o mistério...

-Pelo que deduzo, Vossa Excelência gosta  muito de ovos.

-Nem por isso.

Era demais. Aquilo excedia o que a curiosidade e a compostura de um homem poderiam suportar. Sentia-se humilhado. Sentia-se humilhado desde o primeiro dia, para que negá-lo? Embrulhou os ovos à má cara, despediu o freguês sem a saudação habitual. Porém num repente, foi sobre ele antes que passasse a porta, e disse:

-Então os ovos são para alguém da família...

-Não, são para mim.

O lojista mais não pôde que abrir a boca...

-Na vez seguinte, o lojista escolheu com enfatuado desvelo os dois ovos...

-Sabe Vossa Excelência que tenho prazer em vender ovos? É que, para mim são um pitéu. Omelete com salsa...

-Pois eu nem com salsa nem sem ela.

-Ah.

No dia seguinte o lojista aguardava-o junto ao balcão acompanhado de uma senhora e um rapazola de uns catorze anos..., o grupo que parecia posar para um retrato, fitava-o com uma avidez imbuída de censura e reserva. Quanto ao lojista, entre o acusador e o triunfante: "Eu não vos dizia? É este." 
Aproximou-se de voz melada e irónica:

-Os dois ovinhos do costume, claro está.

-Aqui tem Vossa Excelência. Bom proveito.

No dia seguinte...

-Perdoe Vossa Excelência: gostaria de confessar uma curiosidade.

-Estou a ouvi-lo.

-Bom o caso é este: os ovos, os dois ovos diários, não são para o senhor comer, não são para ninguém comer, pois foi o senhor a dizê-lo; então para que servem?

-Muito simples: para pintar.

O lojista recuou, varado pela zombaria..., apontou o dedo trémulo...

-Diz Vossa Excelência que são para pintar. Tem graça. Carradas de graça. Para pintar de amarelo, bem entendido.

-De azul. Ou de violeta, vermelho, negro. -E após ter sublinhado uma pausa, falando espaçadamente e com uma deslavada inocência:-Mas às vezes também de amarelo, de facto.

Olhando à roda, não fosse alguém reparar no diálogo, o lojista retorquiu, sem já moderar o sarcasmo:

-De azul, de preto, de violeta. Pintando!

-Com ovos.

-O senhor, o senhor! -Estava prestes a pôr de banda todo o resguardo nas suas reacções. Estava preste a esquecer, pela primeira vez na vida, que um cliente é um cliente. Mesmo sendo tonto ou lunático. Ou provocador. -Mas pintar aonde?

-Numa parede. No fundo da Alameda. Naquelas obras ao lado do Cinema.

-Ao lado do...No fundo da Alameda.
Há um tapume. É nessas obras.

-Mas isso é um café.
Vai ser Grande. O maior de Lisboa.

-A pintar.

-Com ovos, sim. O senhor pode ir lá ver.

-E vou. Quando?

-Quando quiser. Agora mesmo.

O lojista ainda incrédulo disse: -E poderei ir depois de fechar a charcutaria?

-Claro que pode, agora já sabe o sítio.

-Então lá estarei.

O homem divertido, foi saboreando a conversa ao longo da rua. Chegou à Alameda sem dar por isso. Começou a preparar a emulsão no almofariz. Aquilo servido numa travessa passaria por maionese. De um lado a gema de ovo misturada com o óleo de linhaça; do outro o friso de latas com os pigmentos. Como estes eram uma poeira seca, aderiam ao pincel molhado na emulsão. Nada de colas. Estudara a técnica com todo o vagar. Lera alfarrábios, fizera experiências. A gema de ovo fora até ao século XVI um dos veículos das tintas. Os antigos não eram tolos. Para eles a arte começava na oficina. Interessara-lhes a gema de ovo, cuja albumina ligava perfeitamente a água ao óleo. Pintura com séculos de confirmação, resistindo às maiores usuras. Tinha de resultar. Mas quanto fizera sofrer o pobre lojista! Exagerara. Sem premeditação, é certo empurrado pelas circunstâncias, pelos espantos, pelos tais laconismos. No entanto, talvez o enigma tivesse agitado a monotonia daquele viver. Batiam à porta, devia ser ele. Disse para o ajudante:

-Vai abrir  que certamente é o senhor dos ovos.

-Procuro uma pessoa que pinta aí nas obras..., sentiu-se engolido por um túnel de surpresas: andaimes, o esgazeamento de luzes cruas. Não viu logo o seu cliente, porque este sumia-se no poleiro de cavaletes. Mas de lá lhe chegou uma voz familiar:

-Trepe a essa mesa, é mais fácil.

Levantou a cabeça para o alto, na direcção das lâmpadas que tinham o feitio de olhos de rã. Uma vasta parede de cal e areia, por onde progredia, uma labareda de cores, a incendiar os esboços de carvão, representando pessoas com o ar extasiado de quem aguarda um cometa no céu. Ei-los, os vermelhos, os azuis, os amarelos. Aceitou a mão que o ajudava. O cliente vestia um fato de macaco e, na face encovada, ondeava a magia das sombras.

-Repare- dizia-lhe o pintor, numa inflexão paciente e bem humorada-, repare nesse almofariz. E nas cascas dos ovos. É assim que se faz a mistura. Um pouco de pó vermelho e aí temos o pincel a fazer das suas.

O visitante permanece silencioso. Esforça-se por recuperar a sua personalidade de lojista...

-Razão tinha Vossa Excelência. Dois ovos por dia, claro. Não precisava de mais. Desculpe ter duvidado. Confesso que ainda me sinto confuso. Vender ovos para alguém pintar! -Apoiou-se no estrado, fitando o cliente com serena admiração: -Tenho a honra de estar falando com...

-Luís Dourdil, pintor.

-Agradecido a Vossa Excelência. O pior é que a minha mulher não vai acreditar.

 Fernando Namora

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