Mia Couto
Escritor Moçambicano
XIV CONTO - «Miudádivas, pensatempos»
«O Pensador»
Auguste Rodin
MIUDÁDIVAS, PENSATEMPOS
(“Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias”)
Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui, na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. Entendo só de raízes, vésperas de flor. Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia.
Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e díspares, de visões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas ao poeta:
A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.
Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.
Uma mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que me rouba mecanismos de viver.
Formigas transportam infinitamente a terra.
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?
Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total início,
redundante gravidez do mundo.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total início,
redundante gravidez do mundo.
Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.
Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo.
Só a coruja atrapalha a eternidade.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo.
Só a coruja atrapalha a eternidade.
Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos,
derrames de céu.
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos,
derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças de minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.
Lembranças de minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.
Escuto, depois, a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa à margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cego para razões.
Sei só escrever palavras que não há.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos,
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa à margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cego para razões.
Sei só escrever palavras que não há.
Depois, o sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras,
me habilito a chão, o desfuturo.
estou a ser pensado por pedras,
me habilito a chão, o desfuturo.
Mia Couto
Até prá semana...
Poet'anarquista
2 comentários:
Muito belo
Intenso
Contudo penso
se os poetas
estão, nas horas
que vão correndo
escrevendo
as coisas certas
urgentes
a bater com
prioridades
de gentes
dos campos
e das cidades
(«Contudo penso»)...
E pensa bem a meu ver. O poeta tem que ser interventivo nos problemas da sociedade alertando as consciências.
Fazendo busca no blogue...
Publicação 10 de Fevereiro de 2011 no Poet'anarquista
«BERTOLD BRECHT - POETA E DRAMATURGO»
E na mesma página...
«ABUSO DE PODER»
Grato pelo comentário
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