quinta-feira, 23 de junho de 2011

«UM VOTO A UM DEUS ESTRANHO»

Por nos encontrar-mos em vésperas da 2ª edição das comemorações «Por Terras do Endovélico», que irão decorrer entre os dias 25 de Junho e 3 de Julho de 2011, achei oportuno fazer publicação do conto escrito por Luís Fernando Galhardas, «Um Voto a um Deus Estranho». Os desenhos que acompanham esta obra ficcional são da autoria de João Paulo Galhardas, e encontram-se no livro «A Voz dos Deuses» do saudoso João Aguiar. O escritor esteve no lançamento da «Carta Arqueológica de Alandroal» (07/01/1994), e ofereceu o livro «A Voz dos Deuses» ao Grupo Técnico de Arqueologia de Campo com honrosa dedicatória: «Para o Grupo Técnico de Arqueologia de Campo. Avante, Endovélico!». Na parte inferior da página onde João Aguiar escreveu a dedicatória, e na página seguinte respectivamente, João Paulo desenhou «Deo Endovélico Sacrum» e o «Templo Romano ao Deus Endovélico». O livro, que se encontrava à sua guarda, está agora em meu poder como seu fiel depositário. Mas o que conta agora para publicação é o maravilhoso conto de ficção, «Um Voto a um Deus Estranho», de Luís Fernando Galhardas!
Poet'anarquista
«Deo Endovélico Sacrum»
Palera/ 94

«Templo Romano ao Deus Endovélico»
Palera/ 94

UM VOTO A UM DEUS ESTRANHO
(Por Luís Fernando Galhardas) 

Caio Jullius Novatus chegara à Península à frente dos exércitos de Roma.
A marcha tinha sido apressada e extenuante, pois eram precisos reforços urgentes para as fustigadas legiões romanas, atormentadas por lutas sem tréguas com as tribos do território, sem vontade de se submeterem à Pax Romana. As promessas do Império eram olhadas com desconfiança e quase sempre rejeitadas com emboscadas mortíferas.
Caio vinha contrariado por abandonar, sabia-se lá por quanto tempo, os prazeres que lhe proporcionavam viver no centro do mundo; e mais ainda por deixar a sua jovem esposa Viveniae Venustae Maniliae, com quem se casara havia pouco mais de um ano, com a atribulada tarefa de zelar na sua ausência, sem outro auxílio que não fosse o da fiel escrava Lívia, pela propriedade da vinha. E para aumentar a sua preocupação e receio um correio que recebera de Roma relatava-lhe o estado de saúde de Viveniae, que pouco tempo depois da sua partida caíra num estado de prostração e febre sem melhoras auspiciosas. 
Nas horas de acalmia e repouso das caminhadas forçadas o seu pensamento reproduzia fielmente a imagem da mulher com quem passeava junto ao Tibre nos fim de tarde encaloradas do estio ou os passeios pela vinha que se derramava desde a casa da encosta, onde habitavam, até perder de vista. E as idas ao Teatro, ao Circo, às Termas, enfim, um turbilhão de recordações que chocavam com o ambiente hostil desta terra de caminhos de pó, de florestas e de gente estranha que os guerreava em grande algazarra quando menos eram esperados.
Naquela tarde as copas das árvores não afastavam, um pouco que fosse, o calor tórrido que parecia ser lançado das entranhas da terra. O jovem Pretor e general romano tinha tomado o pulso aos seus homens e sabia que as suas forças estavam no limite – o que raramente acontecia. Continuar seria duro e imerecido castigo, para além de tremenda imprudência, pois em caso de ataque não haveria forças para combater – era conhecido o gosto dos bárbaros que habitam estas paragens em chacinar tropas desprevenidas enquanto se recompunham da fadiga, a qualquer hora do dia ou da noite. 
Caio viu esconder-se o Sol na clareira da floresta, onde os últimos raios do astro cor de fogo criavam desenhos espectrais. E o bulício da brisa nocturna tropeçando na folhagem do arvoredo levantava suspeita e temor de um inimigo sempre presente na mente de cada legionário – umas noites atrás um soldado que se expusera à claridade de uma fogueira fora varado por um dardo que partira de sítio incerto. Mesmo assim Caio decidiu fazer um passeio pelas imediações, apenas na companhia de um intenso luar que lhe guiava os passos e permitia distinguir, a alguma distância, uma sombra com forma humana, de um vulto animado procurando surpreendê-lo.
Depois de algum tempo vagueando pela floresta ouviu nitidamente o som de água em movimento, que um sopro de vento mais intenso lhe trouxe de longe. – Era um rio, não havia dúvida; –ou era uma queda de água? – não, que o ruído seria diferente. Procurou melhor a direcção de onde vinha, alheado de outros barulhos da noite. Então sentiu a vibração, no seu ouvido apurado, de vozes, vozes de quinze a vinte tonalidades diferentes – a experiência permitia-lhe distinguir com precisão – que ora falavam uma língua incompreensível, ora entoavam cantares e emitiam gritos cadenciados que iam aumentando à medida que se aproximava do local que tinha situado pela audição. Caio manteve todos os sentidos alerta, pois adivinhou a quem pertenciam as vozes e qual seria o seu destino se fosse descoberto. Mas a valentia e curiosidade foram superiores a todos os receios. Dissimulado numa fraga da margem do rio, assistiu à cena como se fosse dia. O luar alumiava um altar de pedra à volta do qual estavam reunidos duas dezenas de homens, vestidos com seus trajes guerreiros e que executavam um ritual, certamente religioso, pois tinham sacrificado um enorme touro em cima de uma pira de madeira que se preparavam para acender. Quando as chamas se elevaram a grande altura, envolvendo o animal morto, todos eles entraram numa espécie de transe e pronunciavam uma palavra que os fazia inclinar a cabeça em direcção à Lua, no meio de cantares e danças ao ritmo da quantidade de cerveja que tinham bebido – qualquer coisa como Endvel, Endvel...
Naquela noite Caio retirou-se como se pairasse sobre o solo do bosque, procurando a escuridão para encobrir o seu regresso ao acampamento, pensativo sobre o culto a que acabava de assistir. O romano afastou-se do local sensibilizado com aqueles homens a quem chamavam gentios mas que conheciam a música e tinham cantares próprios, adoravam um deus a quem faziam sacrifícios e amavam a Lua que lhes iluminava os rituais.
***
Não era por acaso que Treboruna chefiava as dez tribos guerreiras que ocupavam desde há muitas gerações o sul da Península. Dizia-se que nascera de adaga e escudo nas mãos, escorraçando os invasores que se intitulavam donos e senhores do mundo. A noite em que nasceu era invernal, a chuva e as trevas não deixavam enxergar a um palmo, o que não impediu o pai de pegar nele e colocá-lo em cima da pedra sagrada do santuário de Endovelico, a quem foi pedida protecção para a criança.
Por vontade divina ou não – os desígnios dos Deuses são insondáveis – o jovem Treboruna cresceu proporcionado em saber e força física e cedo foi persuadido pela convicção de que essas duas condições eram indispensáveis para a sobrevivência do seu povo. Numa dessas reuniões na casa dos chefes, discutia-se um desaire numa emboscada a uma coluna de soldados romanos que terminara numa retirada desordenada, deixando um número importante de mortos no local. Atreveu-se interromper o grande chefe guerreiro Emeridas, que se desdobrava em explicações do sucedido, para lhe dizer que da próxima vez que se montasse um ardil com os estômagos cheios de cerveja o número de baixas seria com certeza maior. O pai ainda lhe deitou a mão ao cinto, para obrigá-lo a sentar-se, mas os que tinham direito a opinião, nessa assembleia de tribos, manifestaram acordo com as palavras sensatas de Treboruna. E o jovem guerreiro passou a ser ouvido com atenção sempre que se tratava de preparar cilada em caminho sinuoso ou assalto a aquartelamento dos legionários, que chegavam em vagas sucessivas com o propósito de conquistar o território.
Treboruna fora eleito chefe natural das dez tribos do sul e tinha consciência que das suas decisões dependia, ou não, escorraçar o invasor. Conhecia o terreno melhor do que ninguém, sabia onde, como e quando atacar um inimigo esmagadoramente superior, conhecia-lhe os pontos fracos, a vulnerabilidade de exército regular e disciplinado nas tácticas em se defender dos ataques surpresa – bastava para isso aos seus homens, sem se exporem, um simples gesto de fazer rolar grandes pedras sobre uma garganta apertada de passagem obrigatória.
A chegada do Pretor Caio Jullius Novatus, apesar de todas as precauções, utilizando batedores e observadores avançados, não iludira o chefe tribal que lhe contava, dia a dia, as passadas dadas no seu território. Sem ser visto, Treboruna via aquele poderoso exército até ao mais ínfimo pormenor, sabendo ao certo a quantidade de lanças, de cavalos, de matilhas de cães ferozes, de catapultas e outras máquinas de guerra que vinham reclamar para Roma uma terra que não lhe pertencia. 
A saída nocturna de Caio fora vigiada muito de perto com agilidade e manha próprias de quem conhecia o sítio de cada árvore, de cada arbusto, de cada pedra daquela floresta imensa. Sem saber, o Pretor era espiado por alguém que se ausentara propositadamente do ritual a que assistira emboscado na escarpa rochosa e lhe seguia o rasto com tal disfarce e leveza que mais parecia a sua própria sombra.
Caio Jullius Novatus tinha uma austeridade própria de soldado romano, difícil de claudicar perante qualquer perigo ou ameaça. A violência dos combates, em que estivera tantas vezes em risco a sua vida, revestira-o com uma carapaça discreta 
mas eficaz.
Treboruna era uma erupção conjugada da natureza, talhado em lutas não só contra os romanos mas também contra os seus irmãos tribais, a quem conquistara o poder que sabia na iminência de ir parar a mãos estrangeiras. O último chefe a desafiá-lo ainda percorreu alguma distância, tetricamente, já com a cabeça decepada, rolando no solo uns metros atrás.
A aparição súbita de Treboruna, como que surgido das profundezas da terra, teve em Caio um efeito paralisador, não por receio mas apenas pelo efeito da surpresa. A claridade da noite dava realce aos contornos do guerreiro, ao mesmo tempo que deixava na penumbra a expressão do seu rosto. O espaço entre os dois era curto e Caio captou-lhe a intenção de não desejar confronto. Em seguida ficou surpreendido porque o ouviu dirigir-se-lhe na sua língua, tão difícil para estes povos empenhados em resistir à vontade de Roma. Sabia por demais Treboruna que dominar-lhes o idioma era estar por dentro de segredos de outro modo intransponíveis – interceptando mensageiros podia conhecer previamente planos de ataque, mapas de estradas, pontes, fortificações militares e atingir com precisão a alma do exército romano. 
Desde o cair da noite tivera várias oportunidades de cortar também com precisão a garganta de Caio e no entanto não o fizera – mestre em golpes de surpresa, a presença isolada do enviado de César quebrara-lhe o instinto da traição. 
C. Jullius Novatus ouviu a voz austera que saía do fundo do peito de Treboruna, deixando adivinhar um rosto crispado e decidido, sob o manto da noite: –podeis enviar vagas sucessivas de legiões para nos submeter, a nossa vontade e determinação é superior à força dos exércitos de todo o Império Romano... defendemos a nossa terra sagrada, os nossos povoados, o santuário do deus santo Endovelico – que profanaste esta noite com o teu olhar, encoberto no penhasco – e também os espíritos dos nossos antepassados, cujo desejo de manter livre este chão é um dever que mantemos vivo em cada um de nós.
O romano achou por bem manter um silêncio defensivo perante as palavras inflamadas do guerreiro, com quem também não desejava luta. Com passo decidido – deslizou tão perto do adversário que este deu um salto para lhe dar passagem – encaminhou-se para o acampamento e nessa noite nada mais se ouviu na floresta para além do piar das aves nocturnas embalado pelas danças ritmadas do vento.
***
Caio acordou já o dia clareava, preenchendo imediatamente o seu pensamento com o encontro inesperado de véspera – o que lhe provocou a suspeição de ter ocupado igualmente o descanso nocturno com intensa divagação sobre o sucedido. Ficara impressionado com o personagem que lhe interrompera a deambulação noctívaga pela mata, ao ponto de sentir alguma irritação com o tom das palavras com que fora abordado. Certamente para o atemorizar, provocando um estado de espírito de insegurança que atingindo o chefe se reflectiria em todos os seus homens. Mas também era certo que não o quis molestar, pois confundido com as sombras da noite tê-lo-ia matado à traição com toda a facilidade.
Nessa manhã, quando Caio espreitou o dia, através da cortina dos seus aposentos, viu chegar um estafeta vindo de Roma. Entre ordens de justiça e militares e notícias de outras bandas do mundo romano, vinha uma missiva de Viveniae que lhe comunicava a cura da sua doença e o prenúncio de uma boa colheita. 
Caio sorriu, inspirando fundo a frescura da aragem matinal e contemplando o céu límpido que cobria a clareira da floresta – deu graças.
O maior exército romano que até então invadira a Península dirigiu-se para norte, “em busca” desses povos que, teimosamente, contrariavam o poder do Império.
***
Muitos séculos depois foi identificada, num local de culto a Endovelico, uma inscrição latina que diz – “C. JULLIUS NOVATUS ENDOVELLICO PRO SALUTE VIVENIAE VENUSTAE MANILIAE VOTUM SOLVIT” ( em cumprimento de voto pela saúde de Viveniae Venustae Maniliae ). 
*** 
Este relato é uma ficção mas não só. Os nomes latinos de C. Jullius Novatus e de Viveniae Venustae Maniliae são de indivíduos que se apresentam como romanos – os tria nomina – embora possam ter origem peninsular. Provavelmente eram marido e mulher e, pelo menos, passaram na região que é hoje o concelho de Alandroal. Talvez aí tenham vivido e conheceram seguramente o culto a Endovelico. Viveniae esteve doente e Caio fez um voto a Endovelico, pela sua saúde, como o atesta a epígrafe que chegou até nós. Dela nos dá conta Leite de Vasconcellos na sua obra “Religiões da Lusitânia”. Um moçárabe de nome Galvo e de profissão mestre de obras, constructor do castelo de Alandroal, retirou um documento epigráfico latino, certamente já da Ermida de S. Miguel da Mota mas em cumprimento de voto a Endovelico, onde constam os referidos nomes de origem romana e cimentou-o no pano da muralha do castelo. Em anos recentes e por “motivos desconhecidos”, esse documento foi sacado do sítio que Galvo elegeu para o eternizar e esteve alguns anos depositado a um canto da praça de armas do castelo de Alandroal. Finalmente desapareceu sem deixar rasto. Aqui fica o seu registo, ao jeito de ficção.

Luis Fernando Galhardas
  

5 comentários:

AC disse...

Kabé

Sendo autor do texto devia reservar-me a fazer comentários. No entanto, os meus olhos estão a ficar demasiado húmidos..., o que me obriga a escrever um desabafo.
É a primeira vez que vejo estes desenhos da autoria do nosso irmão JP. Quantas vezes ao terminar qualquer texto em prosa ou em poesia, que humildemente sei terem um valor relativo..., foi quantas vezes desejei ter o JP ao pé de mim, para com a ponta do seu lápis ou pincel me fazer umas belas ilustrações, como era belo tudo o que fazia. Por teu intermédio acabo de realizar esse meu desejo, com estes dois desenhos que tão bem se enquadram e enriquecem o texto. Obgrigado do fundo do coração. Luis Fernando

Camões disse...

Para o AC

«HUMILDEMENTE»

Toda a regra tem excepção
No momento certo, especial,
Falou mais forte o coração
Com o seu lado sentimental!

POETA

Ana Paula Fitas disse...

Queridos Amigos,
... vocês são... magníficos!... e encantadores! Deixam-me sem palavras, o excelente conto do LF, os desenhos do JP e a sempre carinhosa evocação da sua memória tão bem guardada no mais humano de nós... e, naturalmente!, sempre!, a generosidade desmedida do meu querido amigo Kabé... Obrigado!
Beijos :))

Anónimo disse...

Todas as *****estrelas do firmamento! A introdução, os desenhos e o conto estão irmanados. Muitos parabéns a este blogue maravilhoso!

Maria

Anónimo disse...

Mais uma vez Poet'anarquista nos Brinda com uma MAGNÍFICA POSTAGEM!!!
Excelente Conto, Ilustrado com os Belíssimos Desenhos de Palera!!!
Relativamente aos Comentários trocados entre AC e POETA..., nem
digo nada!...
Felicito os TRÊS!!!...
É, sem dúvida, uma FAMÍLIA DE TALENTOSOS!!!

Uma Alandroalense (L...)