domingo, 3 de junho de 2012

«RETRATOS»... POR RUFINO CASABLANCA

Primeiro de uma série de quatro retratos muito bem escritos e apimentados por Rufino Casablanca, ilustrados com desenhos da autoria de João Fontes que revelam grande sensibilidade artística, e hoje com honras de publicação no Poet'anarquista. Recordo que neste espaço já fiz referência ao artista João Fontes, um nosso conterrâneo e desenhador, nascido a 1 de Julho de 1983, e a alguns dos seus trabalhos que publiquei aqui «PINTURA - JOÃO FONTES» e também aqui «ESPECIAL - PINTURA DENTRO DE PORTAS». Quanto ao retratista/contista Rufino Casablanca, pela primeira vez com honras de publicação neste espaço «Amigos d'Arte», nasceu no Monte do Meio, proximidades de Terena, do concelho de Alandroal no ano de 1950. Rufino veio a falecer no Lubango (antiga cidade de Sá da Bandeira) - Angola, em 2010. Segue breve nota biográfica do autor e o primeiro dos quatro retratos a serem publicados, com o título «Mulher sem Nome».      
Poet'anarquista

Nota: estes quatro textos de Rufino Casablanca foram publicados no blogue «Al Tejo», à cerca de três anos, sendo agora apresentados no Poet'anarquista com ligeiras alterações na sua escrita. Referir ainda que, as ilustrações/desenhos de João Fontes retratando as histórias de Rufino Casablanca, são pela primeira vez apresentados junto com os textos . Foi dado conhecimento ao «Al Tejo» (página de excelência sobre notícias do Alandroal e outros eventos culturais administrada pelo amigo Chico Manel) da publicação que se pretendia fazer neste espaço. A partilha, como sempre deve acontecer, enriquece e fortalece as amizades. Deve ser por isso que a «Canção da América», da autoria de Milton Nascimento, é considerada por mim como um dos mais importantes hinos à amizade...
Poet'anarquista


Sobre Rufino Casablanca...

Nasceu no Monte do Meio, Terena, Alandroal.

Fez estudos secundários, que não terminou, na Escola Agrícola de Évora.

Cedo enveredou por uma carreira musical que o levou a Florença, ao abrigo de uma bolsa de estudos.

Com a Revolução de Abril regressou a Portugal e, deixando a música clássica, integrou uma banda de música popular que obteve um certo sucesso nos anos seguintes. A par da sua actividade como músico e compositor, também começou a escrever, nomeadamente em jornais, como cronista e contista.

Participou em diversos certames literários, tendo-se classificado, sempre com o segundo lugar, em concursos que se realizaram em Villanueva del Fresno e Beja, além de outros em que não foi premiado.

Desgostoso por não atingir os lugares primeiros deixou de escrever e foi para Angola como professor de música, tendo morrido no Lubango, antiga Cidade de Sá da Bandeira, em 2010. Tinha sessenta anos de idade.    
(Nota biográfica Rufino Casablanca)

I RETRATO - «MULHER SEM NOME...»

O concerto era numa cidade do litoral alentejano. Eu tinha sido convidado por uma banda de rapazes com a idade dos meus filhos, muito solicitada na época, muito na berra, para os acompanhar numa série de espectáculos durante um dos últimos verões da década de oitenta. Aceitara o convite mais para matar o vício e a solidão do que por dinheiro, isto porque, no aspecto económico, até nem me estava a sair mal. Fazia música para telenovelas, compunha para outros cantores e os velhos discos ainda rendiam alguma coisa. De vez em quando aparecia uma onda de nostalgia e lá voltavam à ribalta, em novas edições, as músicas da minha velha e desfeita banda.

«Praia do Litoral Alentejano»
Desenho por João Fontes

Pois bem, o concerto correu da melhor maneira, com muito calor e entusiasmo da assistência. Todos os escudos que nos pagaram foram merecidos, e no fim aconteceu o que acontece muitas vezes nestas alturas, cada um dos músicos arranjou uma namorada de ocasião e tratou de passar o resto da noite da melhor maneira possível. As cenas de entusiasmo das admiradoras e o assédio de que o grupo foi alvo, deu-me uma sensação de “déjà-vu” e preferi, para matar as horas, dar uma volta pelos bares à beira mar, até porque se tratava de uma cidade de que tinha estado ausente durante muitos anos, com poder local comunista e que tinha fama de terra bem administrada, com uma “night” divertida e pouco perigosa. Eu também andara por essa área política e, de vez em quando, ainda me sentia mal porque desaparecera sem dar cavaco a ninguém. Por essa área política andara eu e os restantes elementos da minha antiga banda. E todos demos à sola sem grandes explicações. Bastará lembrar que a primeira vez que actuámos para mais de cinco mil pessoas, foi numa festa do Avante!, a abrir o espectáculo, numa época em que as actuações ainda eram à borla, e dez anos depois, fomos nós quem fechou a mesma festa, já no horário nobre. Posso até afirmar que os nossos melhores anos como banda se situaram entre esses dois concertos. Bom, adiante, pois não é sobre esse assunto que vos quero falar.

«Acordes» 
Desenho por João Fontes

A “nigth”, afinal, não era assim tão divertida. Só encontrei um bar aberto e com poucos clientes. Ao fundo, estava um velho piano de parede. Do lado de dentro do balcão estava uma mulher que, não sendo de uma beleza extraordinária, chamava a atenção. Tinha malares salientes e testa alta. Era muito morena. Cabelo castanho com madeixas mais escuras. Os olhos, à primeira vista, pareceram-me verdes. Desde logo, acima da cintura, correspondia ao que se pode considerar uma mulher escultural. Fui até ao balcão, e sem intenção de longas demoras, pedi vodka com tónica. Era mais para ver de perto se a parte abaixo da cintura conferia com a parte de cima. Conferia!

«Mulher Escultural» 
Desenho por João Fontes

Bebi mais uma vodka, e quando me preparava para sair, com os olhos lavados por aquele corpo que se movimentava por entre as mesas e atrás do balcão, ouvi uma voz rouca que me disse ---- « A próxima bebida é por conta da casa, mas tens que cantar-me, ao ouvido, uma canção » ---- Pensava que tinha passado despercebido, que não tinha sido reconhecido e, afinal, ali estava aquela mulher, com aqueles olhos de gata e aquela voz rouca, a pedir-me para cantar.... Cantei.... cantei todo o meu repertório e ainda me sentei ao velho piano desafinado. A última canção já a cantámos juntos, e a minha mão, devagar, estava debaixo da saia dela. Nenhum de nós queria dormir só. Dormimos juntos.

 «A Cantiga do Engate»
Desenho por João Fontes

Na manhã seguinte, com algum acanhamento, despedimo-nos com um até sempre. Não cheguei a saber o seu nome, embora tenha insistido muito na pergunta. O mais que consegui arrancar-lhe é que era do Alandroal.

Mais tarde, durante anos, procurei-a sempre. E sempre em vão. Sobre ela ninguém me disse nem meia palavra. A última vez que estive naquela cidade do litoral alentejano, no lugar do bar em que a conheci, estava uma sucursal de um banco hispano/americano. Hoje, penso que foi um sonho. Talvez tenha sido!

Rufino Casablanca
Sines.
Outono de 1989

5 comentários:

Anónimo disse...

Excelente, esta simbiose entre texto e desenho. Ao autor das ilustrações - um jovem - os meus parabéns e o desejo de que não deixe de trabalhar, pintando e desenhando.
Que nunca lhe faltem as telas, os pincéis, as tintas, os carvões, as aguarelas e, sobretudo, que não deixe adormecer a sua arte.
Quanto ao autor do texto, visto que se finou em 2010, apenas desejar paz à sua alma.

Ao blogue e ao seu responsável, o meu muito obrigado por este cruzamento de artes.

Anónimo disse...

No quadro "A Cantiga do Engate", acho delicioso o pormenor da jarra com dois cravos!
Serão vermelhos?

Camões disse...

E não serão os acordes da canção «Utopia» de Zeca Afonso que entoam na sala?...

«Cidade, sem muros ou ameias...»

Era o mês de Abril, só podia!

Aí os cravos vermelhos tornaram-se ainda mais viçosos!!!

Anónimo disse...

Eu estou à espera da "Canção da América" do Milton Nascimento.
Obrigado!

Camões disse...

Já fiz várias referências no blogue a Milton Nascimento, com biografia e algumas músicas, entre elas a «Canção da América».

Foi precisamente essa música e letra do autor brasileiro que inspiraram Matias José a escrever poema que lhe dedicou, uma forma de homenagear a amizade tão bem expressa nas suas palavras.

O poema ficou muito aquém da beleza harmoniosa de «Canção da América», porém a amizade intemporal sobrevive até aos dias de hoje.

Assim que tiver oportunidade farei publicação da música e letra e, se o comentador de 4 de Junho de 2012 às 15:00 entender, juntarei o poema de Matias José.

Mesmo a terminar recordo que a rubrica «Músicas do Mundo», desde o seu início, está aberta a sugestões musicais dos visitantes do blogue.

Um abraço...