«Minha Vida com a Onda»
A Onda/ Anita Malfatti
767- «MINHA VIDA COM A ONDA»
Quando deixei aquele mar, uma onda adiantou-se entre todas.
Era esbelta e leve. Apesar dos gritos das outras, que a detinham pelo vestido
flutuante, pendurou-se em meu braço e foi comigo pulando. Não quis dizer-lhe
nada, porque me dava pena constrangê-la na frente das companheiras. Além disso,
os olhares coléricos das mais velhas paralisaram-me.
Ao chegarmos à vila, expliquei-lhe que não podia ser, que a vida na cidade não
era o que ela pensava em sua ingenuidade de onda que nunca saiu do mar.
Olhou-me séria: “Sua decisão estava tomada. Não podia voltar.” Experimentei com
doçura, dureza, ironia. Ela chorou, gritou, acariciou-me, ameaçou-me. Tive de
pedir-lhe perdão. No dia seguinte começou meu padecimento. Como subir ao trem
sem que nos vissem o motorista, os passageiros, a polícia? É verdade que os
regulamentos nada dizem a respeito do transporte de ondas nos trens, mas essa
mesma reserva era um indício da severidade com que nosso ato seria julgado.
Depois de muito refletir compareci à estação uma hora antes da partida, ocupei
meu assento e, quando ninguém me via, esvaziei o depósito de água para os
passageiros; logo, cuidadosamente, verti nele minha amiga.
O primeiro incidente surgiu quando os filhos de um casal vizinho declararam sua
barulhenta sede. Dirigi-me a eles e lhes prometi refrigerantes e limonadas.
Estavam prestes a aceitar quando se aproximou outra sedenta. Quis convidá-la
também, mas o olhar de seu acompanhante me deteve. A senhora pegou um copinho
de papel, aproximou-se do depósito e abriu a chave. Mal havia enchido meio copo
quando, de um salto, interpus-me entre ela e minha amiga. A senhora olhou-me
com espanto. Enquanto pedia desculpas, um dos meninos voltou a abrir o
depósito. Fechei-o com violência.
A senhora levou o copo aos lábios: — Ai, a água está salgada! — O menino
fez-lhe eco. Vários passageiros se levantaram. O marido chamou o motorista:
— Este indivíduo jogou sal na água. — O Motorista chamou o Inspetor:
— Então o senhor jogou substâncias na água? — O Inspetor chamou o Policial que
estava de serviço:
— Então o senhor jogou veneno na água? — O Policial que estava de serviço
chamou o Capitão:
— Então o senhor é o envenenador? — O Capitão chamou três agentes. Os agentes
me levaram para um vagão solitário, entre os olhares e os cochichos dos
passageiros. Na primeira estação me fizeram descer aos empurrões e me
arrastaram até a prisão. Durante dias não falaram comigo, excepto durante os
longos interrogatórios. Quando contava meu caso ninguém acreditava em mim, nem
sequer o carcereiro, que balançava a cabeça, dizendo: “O assunto é grave,
verdadeiramente grave. Não teria desejado envenenar umas crianças?”. Uma tarde
me levaram perante o Procurador.
— Seu assunto é difícil — repetiu. — Vou consigná-lo ao Juiz Criminal. Assim
passou-se um ano. Finalmente me julgaram. Como não houve vítimas, minha
condenação foi leve. Pouco tempo depois, chegou o dia da liberdade. O Chefe da
Prisão me chamou:
— Bom, já está livre. Teve sorte. Graças a que não houve desgraças. Mas que não
volte a se repetir, por que a próxima vai lhe custar caro… — E olhou para mim
com o mesmo olhar sério com que todos me olhavam.
Nessa mesma tarde, tomei o trem e depois de umas horas de incómoda viagem
cheguei ao México. Tomei um táxi e dirigi-me para casa. Ao chegar à porta de
meu apartamento ouvi risos e cantos. Senti uma dor no peito, como a pancada da
onda da surpresa quando a surpresa bate em pleno peito: minha amiga estava ali,
cantando e rindo como sempre.
— Como foi que você voltou?
— Muito fácil: de trem. Alguém, depois de certificar-se de era somente água
salgada, jogou-me na locomotora. Foi uma viagem agitada: de repente eu era um
penacho branco de vapor, de repente eu caia em chuva fina sobre a máquina.
Emagreci muito. Perdi muitas gotas.
Sua presença mudou minha vida. A casa de corredores escuros e móveis
empoeirados encheu-se de ar, de sol, de rumores e reflexos verdes e azuis,
povoado de numerosos e felizes reverberações e ecos.
Quantas ondas é uma onda ou como pode fazer praia ou rocha ou quebra-mar um muro,
um peito, uma testa coroada de espumas! Até os recantos abandonados, os abjectos
recantos de poeira e os detritos foram tocados por suas mãos leves. Tudo se pôs
a sorrir e por todas as partes brilhavam dentes brancos. O sol entrava com
prazer nos velhos quartos e ficava na casa por horas, quando já fazia tempo que
havia abandonado as outras casas, o bairro, a cidade, o país. E várias noites,
já tarde, as escandalizadas estrelas o viram sair de minha casa, às escondidas.
O amor era um jogo, uma criação perpétua. Tudo era praia, areia, leito de
lençóis sempre frescos. Se a abraçava, ela se erguia, incrivelmente esbelta,
como talo líquido de um álamo; e de repente essa magreza florescia num jorro de
penas brancas, num penacho de risos de caíam sobre minha cabeça e minhas costas
e me cobriam de brancuras. Ou se estendia diante de mim, infinita como o
horizonte, até que eu também me fazia horizonte e silêncio. Plena e sinuosa,
envolvia-me como uma música ou uns lábios imensos. Sua presencia era um vaivém
de carícias, de rumores, de beijos. Entrava em suas águas, meio que me afogava
e num fechar de olhos me encontrava encima, no alto da vertigem,
misteriosamente suspenso, para cair depois como uma pedra, e sentir-me
suavemente depositado no seco, como uma pena. Nada se compara a dormir embalado
nas águas, se não é acordar com os golpes de mil alegres chicotes ligeiros, por
arremetidas que se retiram rindo.
Mas jamais cheguei ao centro de seu ser. Nunca toquei o nó do ai e da morte.
Talvez nas ondas não exista esse lugar secreto que torna a mulher vulnerável e
mortal, esse pequeno botão eléctrico donde tudo se une, se crispa e se ergue,
para depois desfalecer. Sua sensibilidade, como a das mulheres, propagava-se em
ondas, só que não eram ondas concêntricas, mas excêntricas, que se estendiam
cada vez mais longe, até tocar outros astros. Amá-la era prolongar-se em
contactos remotos, vibrar com estrelas distantes de que não suspeitamos. Mas seu
centro… não, não tinha centro, mas um vazio parecido ao dos turbilhões, que me
sugava e me asfixiava.
Estendidos um ao lado do outro, trocávamos confidências, cochichos, risadas.
Enrolada como um novelo, caia sobre meu peito e ali se desenrolava como uma
vegetação de rumores. Cantava ao meu ouvido, caramujo. Fazia-se humilde e transparente,
jogada a meus pés como um animalzinho, água mansa. Era tão límpida que podia
ler todos seus pensamentos. Certas noites sua pele se cobria de fosforescências
e abraçá-la era abraçar um pedaço de noite tatuada de fogo. Mas também se
tornava negra e amarga. Em horas inesperadas mugia, suspirava, retorcia-se.
Seus gemidos acordavam os vizinhos. Ao ouvi-la, o vento do mar punha-se a
arranhar a porta da casa ou delirava em voz alta pelas alas do terraço. Os dias
nublados a irritavam; quebrava móveis, dizia palavrões, cobria-me de insultos e
com uma espuma gris e esverdeada. Cuspia, chorava, jurava, profetizava.
Segurava-se à lua, às estrelas, ao influxo da luz de outros mundos, mudava de
humor e de semblante de uma maneira que me parecia fantástica, mas que era tal
como a maré.
Começou a se queixar de solidão. Enchi a casa de caramujos e conchas, pequenos
barcos veleiros, que em seus dias de fúria fazia naufragar (junto com os
outros, carregados de imagens, que todas as noites saíam de minha testa e afundavam
em seus ferozes ou engraçados turbilhões) Quantos pequenos tesouros se perderam
naquele tempo! Mas não lhe bastavam meus barcos nem o canto silencioso dos
caramujos. Confesso que não sem ciúmes os via nadar em minha amiga, acariciar
seus seios, dormir entre suas pernas, enfeitar sua cabeleira com leves
relâmpagos de cores. Entre todos aqueles peixes havia uns particularmente
repulsivos e ferozes, uns pequenos tigres de aquário, grandes olhos fixos e
bocas fendidas e carniceiras. Não sei por que aberração minha amiga se
comprazia em brincar com eles, mostrando-lhes sem rubor una preferência cujo
significado prefiro ignorar. Passava longas horas fechada com aquelas horríveis
criaturas.
Um dia não pude mais; derrubei a porta e lancei-me sobre eles. Ágeis e
fantasmagóricos, fugiam-me das mãos enquanto ela ria e me batia até me
derrubar. Senti que me afogava. E quando estava prestes a morrer, já roxo,
depositou-me na margem e começou a me beijar, humilhado. E ao mesmo tempo a
voluptuosidade me fez fechar os olhos. Porque sua voz era doce e me falava da
morte deliciosa dos afogados.
Quando voltei a mim, comecei a temê-la e a odiá-la. Tinha descuidado meus
assuntos. Comecei a frequentar os amigos e reatei velhas e queridas relações.
Encontrei uma amiga da juventude. Fazendo-a jurar que guardaria o segredo,
contei-lhe minha vida com a onda. Nada comove tanto as mulheres como a
possibilidade de salvar um homem. Minha redentora empregou todas suas artes,
mas, o que podia uma mulher, dona de um número limitado de almas e corpos,
perante minha amiga, sempre mutante – e sempre idêntica a si mesma em sua
metamorfose incessante? Chegou o inverno. O céu ficou cinza. A névoa caiu sobre
a cidade. Chovia uma garoa gelada. Minha amiga gritava todas as noites. Durante
o dia se isolava, quieta e sinistra, resmungando uma única silaba, como uma
velha que resmunga num canto. Ficou fria; dormir com ela era jogar fora toda a
noite e sentir como o sangue gelava paulatinamente, os ossos, os pensamentos.
Tornou-se impenetrável, revoltada. Eu saía com frequência e minhas ausências
eram cada vez mais prolongadas. Ela, em seu canto, uivava longamente. Com
dentes afiados e língua corrosiva roía os muros, desmoronava as paredes.
Passava as noites acordada, repreendendo-me. Tinha pesadelos, delirava com o
sol, com um grande pedaço de gelo, navegando sob os céus negros em noites
longas como meses. Injuriava-me. Amaldiçoava-me e ria; enchia a casa de
gargalhadas e fantasmas. Chamava monstros das profundezas, cegos, rápidos e
obtusos. Carregada de electricidade, carbonizava o que tocava. Seus doces braços
tornaram-se cordas ásperas que me estrangulavam. E seu corpo esverdeado e
elástico, era um chicote implacável, que batia, batia, batia.
Fugi. Os horríveis peixes riam com riso feroz. Lá nas montanhas, entre os altos
pinheiros e os despenhadeiros, respirei o ar frio e fino como um pensamento de
liberdade. Ao final de um mês retornei. Estava decidido. Fizera tanto frio que
encontrei sobre o mármore da lareira, junto ao fogo extinto, uma estátua de
gelo. Não me comoveu sua detestável beleza. Joguei-a num grande saco de lona e
saí para a rua, carregando a adormecida nas costas. Num restaurante das
redondezas, vendi-a para um cantineiro amigo, que imediatamente começou a
picá-la em pequenos pedaços, que depositou cuidadosamente nos baldes onde se
esfriam as garrafas.
Octavio Paz
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