«O Outono»
Jardim Outonal/ Vincent van Gogh
784- «O OUTONO»
[Excerto do Livro do Desassossego]
Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos
acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques
de brisa fria que anunciavam o outono.
Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprenderem-se
das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa sensação da morte
externa, porque o há-de ser também a nossa. Era como um cansaço do esforço
existente, um vago sono sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são tardes
de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós
o outono.
Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos, e o mesmo é
verdade do verão ou do estio; mas o outono lembra, por o que é, o acabamento de
tudo, e no verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é ainda o
outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas caídas ou a tristeza húmida
do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há um resquício de tristeza antecipada,
uma mágoa vestida para a viagem, no sentimento em que somos vagamente atentos à
difusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao sossego mais velho que
se alastra, se a noite cai, pela presença inevitável do universo.
Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou sentimentos e
luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a mesma luz que
ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma
falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem sido santos e
outros usadores de polainas.
No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz
indolentemente o mundo inteiro, tanto faz os remos como os vestidos das
costureiras, e as tranças das crianças louras vão no mesmo giro mortal que os
ceptros que figuraram impérios.
Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta
mostra apenas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as
remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e grandes, que formaram, para nós e em
nós, o sistema sentido do universo.
Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a do som que faz
o que [o] vento ergue e arrasta, nem silêncio senão do que o vento deixa. Uns,
folhas leves, menos presas de terra por mais leves, vão altas do rodopio do Átrio
e caem mais longe que o círculo dos pesados. Outros, invisíveis quase, pó
igual, diferente só se o víssemos de perto, faz cama a si mesmo no redemoinho.
Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali.
Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a
porta do fundo e tudo o que fomos - lixo de estrelas e de almas - será varrido
para fora da casa, para que o que há recomece.
Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto.
Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem
sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas
nuvens do poente.
Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na
hora límpida, da insuficiência anónima de tudo. O outono, sim, o outono, o que
há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão
antecipada de todos os sonhos.
Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou
entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma,
fazendo som de vida nas lajes limpas que um sol angular doura de fim não sei
onde.
Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz - tudo isso
irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos,
ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões
todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do
abismo.
Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa
vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que também tive,
tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono.
Tudo no outono, sim, tudo no outono…
Bernardo Soares
(Semi-heterónimo de Fernando Pessoa)
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