«O Sainete»
Conto de Machado de Assis
816- «O SAINETE»
Um dos problemas que mais preocupavam a Rua do Ouvidor,
entre as da Quitanda e Gonçalves Dias, das duas às quatro horas da tarde, era a
profunda e súbita melancolia do dr. Maciel. O dr. Maciel tinha apenas vinte e
cinco anos, idade em que geralmente se compreende melhor o Cântico dos cânticos
do que as Lamentações de Jeremias. Sua índole mesma era mais propensa ao riso
dos frívolos do que ao pesadume dos filósofos. Pode-se afirmar que ele preferia
um dueto da grã-duquesa a um teorema geométrico, e os domingos do Prado
Fluminense aos domingos da Escola da Glória. De onde vinha pois a melancolia
que tanto preocupava a Rua do Ouvidor?
Pode o leitor coçar o nariz, à procura da explicação; a
leitora não precisa desse recurso para adivinhar que o dr. Maciel ama, que uma
“seta do deus alado” o feriu mesmo no centro do coração. O que a leitora não
pode adivinhar, sem que eu lho diga, é que o jovem médico ama a viúva Seixas,
cuja maravilhosa beleza levava após si os olhos dos mais consumados
pintalegretes. O dr. Maciel gostava de a ver como todos os outros; amou-a desde
certa noite e certo baile, em que ela, andando a passo, pelo seu braço,
perguntou-lhe de repente com a mais deliciosa languidez do mundo:
— Doutor, por que razão não quer honrar a minha casa? Estou
visível todas as quintas-feiras para a turbamulta; os sábados pertencem aos
amigos. Vá lá aos sábados.
Maciel prometeu que iria no primeiro sábado, e foi.
Pulava-lhe o coração ao subir as escadas. A viúva estava só.
— Venho cedo, disse ele, logo depois dos primeiros
cumprimentos.
— Vem tarde demais para a minha natural ansiedade, respondeu
ela sorrindo.
O que se passou na alma de Maciel excede a todas as
conjecturas. Num só minuto pôde ele ver juntas todas as maravilhas da terra e
do céu — todas concentradas naquela elegante e suntuosa sala cuja dona, a
Calipso daquele Telêmaco, tinha cravados nele um par de olhos, não negros, não
azuis, não castanhos, mas dessa rara cor, que os homens atribuem à mais
duradoura felicidade do coração, à esperança. Eram verdes, de um verde igual ao
das folhas novas, e de uma expressão ora indolente, ora vivaz — arma de dois
gumes —, que ela sabia manejar como poucas.
E não obstante aquele intróito, o dr. Maciel andava triste,
abatido, desconsolado. A razão era que a viúva, depois de tão amáveis
preliminares, não cuidou mais das condições em que seria celebrado um tratado
conjugal. No fim de cinco ou seis sábados, cujas horas eram polidamente
bocejadas a duo, a viúva adoeceu semanalmente naquele dia, e o jovem
médico teve de contentar-se com a turbamulta das quintas-feiras.
A quinta-feira em que nos achamos é de Endoenças. Não era
dia próprio de recepção. Contudo, Maciel dirigiu-se a Botafogo, a fim de pôr em
execução um projeto, que ele ingenuamente supunha ser fruto do mais profundo
maquiavelismo, mas que eu, na minha fidelidade de historiador, devo confessar
que não passava de verdadeira infantilidade. Notara ele os sentimentos
religiosos da viúva; imaginou que, indo fazer-lhe naquele dia a declaração
verbal do seu amor, por meio de invocações pias, alcançaria facilmente o prêmio
de seus trabalhos.
A viúva achava-se no toucador. Acabara de vestir-se; e de
pé, calçando as luvas, em frente do espelho, sorria para si mesma, como
satisfeita da toilette. Não ia passear, como se poderia supor; ia visitar
as igrejas. Queria alcançar por sedução a misericórdia divina.
Era boa devota aquela senhora de vinte e seis anos, que
freqüentava as festas religiosas, comia peixe durante toda a quaresma,
acreditava alguma coisa em Deus, pouco no Diabo e nada no Inferno. Não
acreditando no Inferno, não tinha onde meter o Diabo; venceu a dificuldade,
agasalhando-o no coração. O demo assim alojado fora algum tempo o nosso
melancólico Maciel. A religião da viúva era mais elegante que outra coisa.
Quando ela se confessava era sempre com algum padre moço; em compensação só se
tratava com médico velho. Nunca escondeu do médico o mais íntimo defluxo, nem
revelou ao padre o mais insignificante pecado.
— O dr. Maciel? disse ela lendo o cartão que a criada lhe
entregou. Não o posso receber; vou sair. Espera -— continuou depois de
relancear os olhos para o espelho; manda-o entrar para aqui.
A ordem foi cumprida; alguns minutos depois fazia Maciel a
sua entrada no toucador da viúva.
— Recebo-o no santuário, disse ela sorrindo logo que ele
assomou à porta; prova de que o senhor pertence ao número dos verdadeiros
fiéis.
— Oh! não é da minha fidelidade que eu duvido; é…
— E recebo-o de pé! Vou sair; vou visitar as igrejas.
— Sei; conheço os seus sentimentos de verdadeira religião —
disse Maciel com a voz a tremer-lhe; — vim até com receio de não a encontrar.
Mas vim; era preciso que viesse; neste dia, sobretudo.
A viúva recolheu a abazinha de um sorriso que
indiscretamente ia traindo o seu pensamento, e perguntou friamente ao médico
que horas eram.
— Quase oito. Sua luva está calçada; falta só abotoá-la. E o
tempo necessário para lhe dizer, neste dia tão solene, que eu sinto…
— Está abotoada. Quase oito, não? Não há tempo de sobra; é
preciso ir a sete igrejas. Quer fazer o favor de acompanhar-me até o carro?
Maciel tinha espírito em quantidade suficiente para não
perdê-lo todo com a paixão. Calou-se; e respondeu à viúva com um gesto de
assentimento. Saíram do toucador e desceram, ambos silenciosos. No trajeto
planeou Maciel dizer-lhe uma só palavra, mas que contivesse todo o seu coração.
Era difícil; o lacaio, que abrira a portinhola do coupé, ali estava como
um emissário do seu mau destino.
— Quer que o leve até a cidade? perguntou a viúva.
— Obrigado, respondeu Maciel.
O lacaio fechou a portinhola e correu a tomar o seu lugar;
foi nesse rápido instante que o médico, inclinando o rosto, disse à viúva:
— Eulália…
Os cavalos começaram a andar; o resto da frase perdeu-se
para a viúva e para nós.
Eulália sorriu da familiaridade e perdoou-lhe. Reclinou-se
molemente nos coxins do veículo e começou um monólogo que só acabou à porta de
S. Francisco de Paula.
“Pobre rapaz! dizia ela consigo; vê-se que morre por mim.
Não desgostei dele a princípio… Mas tenho eu culpa de que seja um maricas?
Agora sobretudo, com aquele ar de moleza e abatimento, é… não é nada… é uma
alma de cera. Parece que vinha disposto a ser mais atrevido; mas a alma faltou-lhe
com a voz, e ficou apenas com as boas intenções. Eulália! Não foi mau este
começo. Para um coração daqueles… Mas qual! c’est le genre ennuyeux!”
Esta é a glosa mais resumida que posso dar do monólogo da
viúva. O coupé estacionou na Praça da Constituição; Eulália, seguida
do lacaio, encaminhou-se para a igreja de S. Francisco de Paula. Ali, depositou
a imagem de Maciel nas escadas, e atravessou o adro toda entregue ao dever
religioso e aos cuidados de seu magnífico vestido preto.
A visita foi curta; era preciso ir a sete igrejas, fazendo a
pé todo o trajeto de uma para outra. A viúva saiu sem preocupar-se mais com o
jovem médico, e dirigindo-se para a igreja da Cruz.
Na Cruz achamos uma personagem nova, ou antes duas, o
desembargador Araújo e sua sobrinha D. Fernanda Valadares, viúva de um deputado
deste nome, que falecera um ano antes, não se sabe se da hepatite que os
médicos lhe acharam, se de um discurso que proferiu na discussão do orçamento.
As duas viúvas eram amigas; seguiram juntas na visitação das igrejas. Fernanda
não tinha tantas acomodações com o céu, como a viúva Seixas; mas a sua piedade
estava sujeita, como todas as coisas, às vicissitudes do coração. Em vista do
que, logo que saíram da última igreja, disse ela à amiga que no dia seguinte
iria vê-la e pedir-lhe uma informação.
— Posso dar já, respondeu Eulália. Vá embora, desembargador;
eu levo Fernanda no meu carro.
No carro, disse Fernanda:
— Preciso de uma informação importante. Sabes que estou um
pouco apaixonada?
— Sim?
— É verdade. Eu disse um pouco, mas devia dizer muito. O dr.
Maciel…
— O dr. Maciel? interrompeu vivamente Eulália.
— Que pensas dele?
A viúva Seixas levantou os ombros e riu com um ar de tamanha
piedade, que a amiga corou.
— Não te parece bonito? perguntou Fernanda.
— Não é feio.
— O que mais me seduz nele é o seu ar triste, um certo
abatimento que me faz crer que padece. Sabes de alguma coisa a seu respeito?
— Eu?
— Ele dá-se muito contigo; tenho-o visto lá em tua casa.
Sabes se haverá alguma paixão…
— Pode ser.
— Oh! conta-me tudo!
Eulália não contou nada; disse que nada sabia.
Concordou, entretanto, que o jovem médico talvez andasse
namorado, porque realmente não parecia gozar boa saúde. O amor, disse ela, era
uma espécie de pletora, o casamento uma sangria sacramental. Fernanda precisava
sangrar-se do mesmo modo que Maciel.
— Sobretudo nada de remédios caseiros, concluiu ela; nada de
olhares e suspiros, que são paliativos destinados menos a minorar que a
entreter a doença. O melhor boticário é o padre.
Fernanda tirou a conversa deste terreno farmacêutico e
cirúrgico para subi-la às regiões do eterno azul. Sua voz era doce e comovida:
o coração pulsava-lhe com força; e Eulália, ao ouvir os méritos que a amiga
achava em Maciel, não pôde reprimir esta observação:
— Não há nada como ver as coisas com amor. Quem suporia
nunca o Maciel que me estás pintando? Na minha opinião não passa de um bom
rapaz; e ainda assim… Mas um bom rapaz é alguma coisa neste mundo?
— Pode ser eu me engane, Eulália, replicou a viúva do deputado,
mas creio que há ali uma alma nobre, elevada e pura. Suponhamos que não. Que
importa? O coração empresta as qualidades que deseja.
A viúva Seixas não teve tempo de examinar a teoria de
Fernanda. O carro chegara à Rua de Santo Amaro, onde esta morava. Despediram-se;
Eulália seguiu para Botafogo.
— Parece que ama deveras, pensou Eulália logo que ficou só.
Coitada! Um moleirão!
Eram nove horas da noite quando a viúva Seixas entrou em
casa. Duas criadas — camareiras — foram com ela para o toucador, onde a bela
viúva se despiu; dali passou ao banho; enfiou depois um roupão e dirigiu-se
para o quarto de dormir. Levaram-lhe uma taça de chocolate, que ela saboreou
lentamente, tranquilamente, voluptuosamente; saboreou-a e saboreou-se também a
si própria, contemplando, da poltrona em que estava, a sua bela imagem no
espelho fronteiro. Esgotada a taça, recebeu de uma criada o seu livro de
orações; e foi dali a um oratório, diante do qual com devoção se ajoelhou e
rezou. Voltando ao quarto, despiu-se, meteu-se no leito, e pede-me que lhe
cerre as cortinas; feito o que, murmurou alegremente:
— Ora o Maciel!
E dormiu.
A noite foi muito menos tranquila para o nosso apaixonado
Maciel, que, logo depois das palavras proferidas à portinhola do carro, ficara
furioso contra si mesmo. Tinha razão em parte; a familiaridade do tratamento
dado à viúva precisava de mais detida explicação. Não era, porém, a razão que
lhe fazia ver claro; nele exerciam maior ação os nervos que o cérebro.
Nem sempre “depois de uma noite procelosa, traz a manhã
serena claridade”. A do dia seguinte foi tétrica. Maciel gastou-a toda na loja
do Bernardo, a fumar em ambos os sentidos — o natural e o figurado —, a olhar
sem ver as damas que passavam, estranho à palavra dos amigos, aos boatos
políticos, às anedotas de ocasião.
— Fechei a porta para sempre! dizia ele com amargura.
Pelas quatro horas da tarde, apareceu-lhe um alívio, debaixo
da forma de um colega seu, que lhe propôs ir clinicar em Carangola, de onde
recebera cartas muitos animadoras. Maciel aceitou com ambas as mãos o
oferecimento. Carangola nunca entrara no itinerário de suas ambições; é até
possível que naquele momento ele não pudesse dizer a situação exata da
localidade. Mas aceitou Carangola, como aceitaria a coroa de Inglaterra ou as
pérolas todas de Ceilão.
— Há muito tempo, disse ele ao colega, que eu sentia
necessidade de ir viver em Carangola. Carangola exerceu sempre em mim uma
atração irresistível. Não podes imaginar como eu, já na Academia, me sentia
arrastado para Carangola. Quando partimos?
— Não sei: dentro de três semanas, talvez.
Maciel achou que era muito, e propôs o prazo máximo de oito
dias. Não foi aceito; não teve remédio senão curvar-se às três semanas
prováveis. Quando ficou só, respirou.
— Bem! disse ele, irei esquecer e ser esquecido.
No sábado houve duas aleluias, uma na Cristandade, outra em
casa de Maciel, aonde chegou uma cartinha perfumada da viúva Seixas contendo
estas simples palavras: — “Creio que hoje não terei a enxaqueca do costume;
espero que venha tomar uma xícara de chá comigo”. A leitura desta carta
produziu na alma do jovem médico uma Gloria in excelsis Deo. Era o seu
perdão; era talvez mais do que isso. Maciel releu meia dúzia de vezes aquelas
poucas linhas; nem é fora de propósito crer que chegou a beijá-las.
Ora, é de saber que na véspera, sexta-feira, às onze horas
da manhã, recebera Eulália uma carta de Fernanda, e que às duas horas foi a
própria Fernanda à casa de Eulália. A carta e a pessoa tratavam do mesmo
assunto com a expansão natural em situações daquelas. Tem-se visto muita vez
guardar um segredo do coração; mas é raríssimo que, uma vez revelado, deixe de
o ser até à saciedade. Fernanda escreveu e disse tudo o que sentia; sua
linguagem, apaixonada e viva, era uma torrente de afeto, tão volumosa que
chegou talvez a alagar! — a molhar pelo menos ! — o coração de Eulália. Esta
ouviu-a a princípio com interesse, depois com indiferença, afinal com
irritação.
— Mas que queres tu que eu te faça? perguntou no fim de uma
hora de confidência.
— Nada, respondeu Fernanda. Uma só coisa: que me animes.
— Ou te auxilie?
Fernanda respondeu com um aperto de mão tão significativo,
que a viúva Seixas compreendeu facilmente a impressão que lhe causara. No
sábado enviou a carta acima transcrita. Maciel recebeu-a como vimos, e à noite,
à hora habitual, estava à porta de Eulália. A viúva não estava só. Havia umas
quatro senhoras e uns três cavalheiros, visitas habituais das quintas-feiras.
Maciel entrou na sala um pouco acanhado e comovido. Que
expressão leria no rosto de Eulália? Não tardou sabê-lo; a viúva recebeu-o com
o seu melhor sorriso — o menos faceiro e intencional, o mais espontâneo e
sincero, um sorriso que Maciel, se fosse poeta, compararia a um íris de
bonança, rimado com esperança ou bem-aventurança. A noite correu deliciosa; um
pouco de música, muita conversa, muito espírito, um chá familiar, alguns olhares
animadores, e um aperto de mão significativo no fim. Com estes elementos era
difícil não ter os melhores sonhos do mundo. Teve-os Maciel, e o domingo da
Ressurreição também o foi para ele.
Na seguinte semana viram-se três vezes. Eulália parecia
mudada; a solicitude e a graça com que lhe falava estavam longe da tal ou qual
frieza e indiferença dos últimos tempos. Este novo aspecto da moça produziu os
seus naturais efeitos. Sentiu-se outro o jovem médico; reanimou-se, colheu
confiança, fez-se homem.
A terceira vez que a viu nessa semana foi em uma soirée.
Acabaram de valsar e dirigiram-se para o terraço da casa, de onde se via um
magnífico panorama, capaz de fazer poeta o mais soez espírito do mundo. Ali foi
declaração, inteira, cabal, expressiva do que sentia o namorado; ouviu-lha
Eulália com os olhos embebidos nele, visivelmente encantada com a palavra de
Maciel.
— Poderei crer no que me diz? perguntou ela.
A resposta do jovem médico foi apertar-lhe muito a mão, e cravar
nela uns olhos mais eloquentes que duas catilinárias. A situação estava
definida, a aliança feita. Bem o percebeu Fernanda, quando os viu regressar à
sala. Seu rosto cobriu-se de um véu de tristeza; dez minutos depois e o desembargador
interrompia a partida de whist para acompanhar a sobrinha a Santo
Amaro.
A leitora espera decerto ver casados os dois namorados e
espaçada a viagem a Carangola até o fim do século. Quinze dias depois da
declaração iniciou Maciel os passos necessários ao consórcio. Não têm número os
corações que estalaram de inveja ao saber da preferência da viúva Seixas. Esta
pela sua parte sentia-se mais orgulhosa do que se desposasse o primeiro dos
heróis da terra.
De onde veio este entusiasmo e que varinha mágica operou
tamanha mudança no coração de Eulália? Leitora curiosa, a resposta está no
título. Maciel pareceu insosso, enquanto lhe faltou o sainete de outra paixão.
A viúva descobriu-lhe os méritos com os olhos de Fernanda; e bastou vê-lo
preferido para que ela o preferisse. Se me miras, me miram, era
a divisa de um célebre relógio de sol. Maciel podia invertê-la: se me
miram, me miras; e mostraria conhecer o coração humano — o feminino, pelo
menos.
Machado de Assis
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