«A Valsa»
A Valsa/ Escultura de Camille Claudel
805- «A VALSA»
Oh, encantada. Adoraria.
Não quero dançar com ele. Não quero dançar com ninguém. E,
mesmo que quisesse, não seria com ele. Ele estaria no pé de uma lista dos dez
últimos. Já vi como ele dança; parece atacado pela doença de São Guido.
Imaginem, há menos de quinze minutos, eu estava com pena da pobre coitada que
dançava com ele. E agora eu é que vou ser a pobre coitada. Não é mesmo um mundo
muito pequeno?
E é uma delícia de mundo, também. Tudo que acontece nele é
tão fascinante e imprevisível, não? Eu estava quietinha no meu canto,
metendo-me com o meu próprio nariz, sem fazer mal a ninguém. E aí ele entra em
minha vida, fazendo aqueles olhos e bocas, e me arrasta para uma memorável
mazurca.
Ora, ele nem sabe o meu nome, e muito menos o que significa. Pois significa Desespero, Perplexidade, Degradação, Futilidade e Crime Premeditado, mas ele nem desconfia. Também não tenho a mínima ideia do seu nome, mas, pelo jeitão dele, só pode ser Jukes. Como vai, sr. Jukes? E como vai passando o seu querido irmãozinho, aquele com duas cabeças?
Ora, ele nem sabe o meu nome, e muito menos o que significa. Pois significa Desespero, Perplexidade, Degradação, Futilidade e Crime Premeditado, mas ele nem desconfia. Também não tenho a mínima ideia do seu nome, mas, pelo jeitão dele, só pode ser Jukes. Como vai, sr. Jukes? E como vai passando o seu querido irmãozinho, aquele com duas cabeças?
Por que ele teve de vir infernizar justamente a mim, com
suas más intenções? Por que não me deixou cuidar da minha vida? Peço tão pouco!
Só queria ficar quieta no meu canto da mesa, ruminando sozinha a minha solidão
pelo resto da noite. E aí ele chega, com suas mesuras, rapapés e seus
pode-me-dar-a-honra. E ainda sou obrigada a dizer que adoraria dançar com ele.
Não entendo como um raio não desabou directo sobre a minha cabeça. Podem crer,
um raio na cabeça seria como um fim de semana na praia, comparado ao
contorcionismo de uma dança com este rapaz. Mas, o que eu podia fazer? Todo
mundo já estava dançando, excepto eu e ele. Eu estava numa arapuca. Como uma
arapuca dentro de outra arapuca.
O que se pode dizer, quando um rapaz nos vem tirar para
dançar? Obrigada, mas não quero dançar com você, e pode ir lamber sabão. Ou
então: Oh, muito obrigada, adoraria dançar, mas é que, neste exato momento,
estou entrando em trabalho de parto. Ou então: Oh, claro, vamos dançar, é tão
raro hoje em dia conhecer um rapaz que não tenha medo de contrair minha
beribéri. Não. Eu não podia fazer nada a não ser dizer que adoraria dançar com
ele. Está bem, vamos acabar logo com isso. Cara ou coroa? Deu cara, você leva.
Linda valsa, não? Dá vontade de apenas ficar ouvindo a
orquestra, não? Não se importa? Oh, que linda valsa! Estou arrepiada. Não,
claro, adoraria dançar com você.
Adoraria dançar com você. Adoraria também extrair as
amígdalas. Adoraria estar num barco em chamas. Mas agora é tarde. Já estamos a
caminho da pista. Oh. Oh, Deus. Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus. É ainda pior do
que eu pensava. Acho que é uma das poucas coisas da vida de que sempre se pode
ter certeza - tudo que promete ser ruim acaba sendo ainda pior.’ Se eu
realmente soubesse como seria dançar com ele, teria fingido um desmaio ou coisa
assim. Bem, acho que, no fim, vai dar na mesma.
Vamos acabar no chão em menos de um minuto, se ele continuar
desse jeito. Foi ótimo tê-lo convencido de que a orquestra estava tocando uma
valsa. Só Deus sabe o que teria acontecido se ele achasse que era algum ritmo
mais rápido; acho que já teríamos voado pela janela. Por que ele tem essa mania
de dançar no ar, em vez de ficar paradinho com você nos braços por apenas
alguns segundos? É esse maldito lufa-lufa da vida neste país que é responsável
por esses celerados. Ai! Puxa, pare de me chutar, seu idiota! Já é a segunda
vez que você me acerta a canela. É minha canela de estimação. Tenho-a desde que
era garotinha.
Oh, não, não, não. Não doeu nem um pouquinho. Além disso,
foi minha culpa. Claro que foi. De verdade. Você é uma gracinha de se
desculpar, mas não precisa. A culpa foi toda minha.
O que será que devo fazer: matá-lo neste exacto momento, com minhas próprias mãos, ou esperar que ele tenha um enfarte em poucos segundos? Talvez seja melhor não fazer uma cena. Acho que vou relaxar e esperar que a natureza se encarregue dele. Ele não pode manter esse ritmo indefinidamente - afinal, é apenas feito de carne e osso. Mas vai morrer pelo que fez comigo. Não pensem que sou hipersensível, mas ninguém me convencerá de que aquele chute na canela foi sem querer. Segundo Freud, não existem acidentes. Não sou do tipo enclausurada e já dancei com rapazes que me pisaram nos calos ou acertaram meus joanetes; mas, quando é a canela que está em jogo, torno-me uma besta-fêmea. Viro para o rapaz e digo: “Está bem, quando me chutar a canela, pelo menos sorria” . Talvez ele não tenha feito por mal. Podia estar apenas querendo mostrar animação. Eu deveria ficar feliz por ver que pelo menos um de nós está se divertindo. E mais feliz ainda se sair viva da pista. Não será pedir demais a um rapaz que você acabou de conhecer que ele devolva suas canelas exactamente como as encontrou? Afinal, o pobre rapaz está fazendo o melhor que pode. Provavelmente nasceu e foi criado no interior e só foi calçar botinas no exército.
Sim, é uma delícia, não é? É simplesmente uma delícia. Não é
uma valsa deliciosa? Oh, eu também estou achando uma delícia.
Bem, estou positivamente à mercê de um dançarino que quer
bater todos os recordes do mundo. Ele é meu herói. Tem um coração de leão e a
força de um búfalo. Vejam só: não dá a mínima para as consequências, não liga
para o que os outros pensam, contorce-se como se tivesse o diabo no corpo, com
os olhos chispando e chamas no rosto. Pensam que vou recuar’? Mil vezes não.
Afinal, que me importa passar os próximos dois anos num colete de gesso? E quem
quer viver para sempre?
Oh. Oh, Deus. Ora, ele é até legal. Por um momento pensei
que iam expulsá-lo da pista. Não suportaria que alguma coisa lhe acontecesse.
Eu o adoro. Adoro-o mais que qualquer outra coisa no mundo. Incrível a animação
que ele tira de uma valsa chocha e vulgar; em comparação, os outros dançarinos
parecem uns palermas. Ele representa a juventude, o vigor e a coragem, a força
e a alegria e - Ai! Saia de cima do meu pé, seu caipira! Por que não pisa em
sua avó?
Não, claro que não doeu. Ora, nem um pouco. Sinceramente. E foi
minha culpa. É aquele passo que você dá - uma delícia, mas difícil de seguir á
primeira vez. Oh, foi você que o inventou? Mesmo? Incrível! Ah, agora acho que
aprendi. Observei quando você dançava com a outra moça. É excitante!
É, é excitante. Aposto que eu também pareço excitada. Estou
completamente descabelada, minha saia está toda enroscada em meu corpo, posso
sentir um suor frio na testa. Devo estar parecendo algum espectro saído de “A
queda da casa de Usher”. Essas coisas não devem fazer bem à saúde de uma mulher
na minha idade. E ele inventou aquele passo sozinho, o tarado. Parecia meio
complicado a princípio, mas agora acho que peguei. Dois tropeções aqui, uma
escorrega da ali e uma deslizada de seis ou sete metros. Mas consegui. Consegui
também outras coisas, entre as quais um buraco na canela e um coração em
pandarecos. Detesto esta criatura à qual estou atrelada. Detestei-o desde o
momento em que vi o seu olhar de soslaio naquele rosto bestial. E agora me vejo
travada nos seus braços pelos 35 anos que esta valsa está durando. Será que a
merda da orquestra nunca vai parar de tocar? Ou essa coisa ridícula a que
chamam de dança vai durar até os quintos dos infernos?
Olhe, vão tocar mais uma. Oh, que óptimo. Que delícia.
Cansada? Não, nem um pouco. Poderia continuar dançando pelo resto da vida!
Eu
deveria ter dito que não estava cansada. Que estava morta. Faleci, sem motivo
justo. A música não pára nunca e lá vamos nós, eu e meu pé-de-valsa, a caminho
da eternidade. Acho que talvez me acostume, depois dos primeiros cem mil anos.
A esta altura, nada vai importar mesmo, nem dor nem calor, nem um coração
partido e muito menos um tédio cruel e mortal. Quanto mais rápido, melhor.
Não sei por que não lhe disse que estava cansada. Por que não sugeri voltarmos à mesa? Poderia ter dito, vamos apenas ouvir a música, que tal? Porque, se ele aceitasse, seria a primeira vez que ele estaria dando um tico de atenção à música naquela noite. George Jean Nathan disse que o ritmo de uma valsa deveria ser ouvido em tranquilidade e não acompanhado por estranhos rodopios das pessoas: Bem, seja o que for que Nathan esteja fazendo neste momento, está melhor do que eu. Pelo menos está seguro. Qualquer pessoa que não esteja valsando com aquela vaca da sra. O’Leary, responsável pelo grande incêndio de Chicago, deve estar se divertindo muito.
O problema é que, se voltássemos para a mesa, teria que
conversar com ele. E o que eu poderia perguntar a uma mula dessas? Já foi ao
circo este ano? Qual é o seu sorvete favorito? Como você pronuncia gato? Melhor
ficar por aqui mesmo, na pista de dança. É quase tão bom quanto estar dentro de
uma betoneira ligada.
Já nem sinto mais nada. Só percebo quando ele me pisa nos
calos porque ouço o esmigalhar dos ossinhos. E tudo de importante que me aconteceu
na vida passa diante dos meus olhos. Revejo aquele dia em que estive no centro
de um furacão nas índias Ocidentais; lembro o dia em que rachei a cabeça numa
batida de carro; houve aquela noite em que a dona da festa, bêbada, jogou um
cinzeiro de bronze em seu namorado e acertou em mim; para não falar num verão
em que o barco virou de borco. Ah, que bons tempos e que tranquilidade … até
cair nas garras deste monstro aqui. Nunca soube o que eram problemas, até ser
arrastada para essa danse macabre. Acho que minha mente vagueia. Até parece que
a orquestra parou. Não pode ser. Nunca poderia ser. E, no entanto, em meus
ouvidos, há um silêncio que parece produzido pelos anjos …
Oh, eles pararam de tocar, aqueles cretinos. Não vão tocar
mais. Oh, droga. Você acha que eles vão voltar? Acha mesmo, se você lhes der 20
dólares? Oh, seria incrível! E, olhe, peça-lhes para tocarem de novo aquela
mesma valsa. Eu poderia dançar com você pelo resto da vida.
Dorothy Parker
Dorothy Parker
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