«Excertos Auto-Biográficos»
Escritor Ferreira de Castro
824- «EXCERTOS AUTO-BIOGRÁFICOS»
I
«Eu nasci a 24 de Maio de 1898. Mas, quando penso na minha
idade, sinto-me sempre mais novo, sinto-me sempre beneficiado por quatro anos a
menos. São quatro anos iguais a um noite escuríssima, onde não é possível
acender luz alguma. Não os viveu o meu espírito. Não estão na minha memória.
Não me pertencem. Para a minha realidade espiritual eu tenho 28 anos. É em
1902 que começo a povoar o museu da minha vida, a decorar a galeria das minhas
recordações. Foi numa tarde de sol – tarde de luz forte que eu vejo ainda – que
dei início ao longo da casa onde nasci. A diabrura que pratiquei, desvaneceu-se
no esquecimento, mas lembro-me, sim, que minha mãe, saindo do quintaleiro e
agarrando-me por um braço, castigou-me. Passava na estrada, enxada ao ombro, um
homem alto, bigodes retorcidos festonando as faces trigueiras. Deteve-se,
sorriu e disse:
- “Assim é que é, senhora Mariquinhas! Nessa idade é que eles se ensinam”.
Odiei aquele homem. Por que, em vez de me proteger com a sua força, ele
estimulava minha mãe a castigar-me ainda mais? Por que era ele tão mau e por
que sorria vendo-me sofrer, se eu não nunca lhe tinha feito mal?
É esta a minha recordação. E foram de ódio e de sofrimento as primeiras
sensações que a vida me deu. Eu tinha quatro anos e meio.»
II
«Quando vinha com minha mãe ao mercado de Oliveira de Azeméis, passava por uma
meia porta e via lá uma máquina a trabalhar, a tirar o jornal; aquilo
parecia-me uma obra de Deus e o meu sonho todo, tinha 9 anos, seria escrever
umas coisas para aquele jornal, para a 'Opinião'. Se alguém podia ter feito a
felicidade de uma criança, seria aquele jornal.»
III
« ...Na minha aldeia fiz a instrução primária; no seringal, lia todos os livros
que conseguia encontrar, o que estava muito longe de ser suficiente. Eu sou
autodidacta. Não posso mesmo dizer que estudei no que isto significa de
disciplina, pois tudo o que aprendi, desde as línguas que me permitissem
conhecer o espírito dos outros povos, até à Sociologia e a Filosofia, que tanto
me interessavam, o fiz sem esforço... e graças a isso, todas as minhas
incursões no mundo do conhecimento humano foram agradáveis em vez de penosas.»
Ferreira de Castro
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