terça-feira, 28 de junho de 2016

OUTROS CONTOS

«A Expulsão do Paraíso», por Jorge Larrosa.

«A Expulsão do Paraíso»
Adão e Eva Expulsos do Paraíso/ Marc Chagall

823- «A EXPULSÃO DO PARAÍSO»

Um dia, o menino Jean Jaques Rousseau, que na época tinha 10 anos e passava uma temporada no campo, na casa de uns parentes, foi acusado e castigado injustamente. Acusaram-no de ter quebrado os pentes da senhorita Lambercier que uma empregada havia posto para secar na estufa do quarto onde ele estudava sozinho suas lições. Jean Jaques jurava que não havia tocado os pentes, mas esses estavam quebrados e ninguém mais que ele tinha entrado no quarto. Os protestos do menino, que persistia teimosamente em sua negativa, foram tomados como obstinação no engano. O pequeno Jean Jaques, inocente não confessava. E, naturalmente, foi duramente castigado, não só pela travessura de ter quebrado os pentes, se não, sobre tudo, por ter sido teimoso, arrogante e mentiroso. Um episódio trivial. Algo que, seguramente, deve ter ocorrido com todo mundo. Mas o importante é como Rousseau o conta. E como o leva a categoria de um trauma inicial, de uma verdadeira expulsão do Paraíso.

O que aí viu Jean Jaques – não o menino Jean Jaques, que então não via nada, o pobre menino somente sentia indignação e raiva, sentia a arbitrariedade, ou seja lá o que sente um menino de dez anos em um caso assim. Para o Jean Jaques adulto - o que escreve as Confissões e que já estava armado de uma linguagem bastante consolidada, foi o final da infância, da felicidade, da inocência e da pura presença em si da imediatez dos sentimentos. Até o momento do castigo havia confiança, intimidade e transparência entre os corações: era possível para uns ler diretamente o que sucedia nas almas dos outros e era possível também que uma pessoa lesse o que ocorria em sua própria alma. Mas a injustiça fez nascer uma distância entre a verdade (o fato de que o menino não tinha quebrado os pentes) e as aparências (o fato de que parecia que tinha quebrado) e deu a Jean Jaques a consciência da separação: um véu cobria a verdade dos sentimentos, a realidade das almas humanas. Sobre o que cada um é se estendia já irremediavelmente o véu das aparências. E abriu, por tanto, a possibilidade de jogar com o véu, por tanto a possibilidade da mentira, da dissimulação e da hipocrisia. A moral era de que se uma pessoa pode parecer culpada sem ser, também pode parecer inocente sem ser. Segundo nos conta Jean Jaques o jogo das aparências lhe ensinou a mentir. E quando uma pessoa aprende a mentir, aprende também, em seguida, a mentir-se.

E assim foi como nossa inocente criatura se fez uma pessoa adulta. Porque as pessoas adultas são adultas por que esqueceram que foram crianças, por que sepultarão em algum lugar remoto de sua consciência a violência que os fizeram adultos. E porque se esquecerão inclusive do esquecimento, desse gesto que os fizeram enterrar o que são. Para ser adulto confortavelmente, as pessoas adultas tem que pensar que as aparências são a realidade, que o deserto é o paraíso, que a mentira é a verdade.

Jorge Larrosa

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