«A Expulsão do Paraíso»
Adão e Eva Expulsos do Paraíso/ Marc Chagall
823- «A EXPULSÃO DO PARAÍSO»
Um dia, o menino Jean Jaques Rousseau, que na época tinha 10
anos e passava uma temporada no campo, na casa de uns parentes, foi acusado e
castigado injustamente. Acusaram-no de ter quebrado os pentes da senhorita
Lambercier que uma empregada havia posto para secar na estufa do quarto onde
ele estudava sozinho suas lições. Jean Jaques jurava que não havia tocado os
pentes, mas esses estavam quebrados e ninguém mais que ele tinha entrado no
quarto. Os protestos do menino, que persistia teimosamente em sua negativa,
foram tomados como obstinação no engano. O pequeno Jean Jaques, inocente não
confessava. E, naturalmente, foi duramente castigado, não só pela travessura de
ter quebrado os pentes, se não, sobre tudo, por ter sido teimoso, arrogante e
mentiroso. Um episódio trivial. Algo que, seguramente, deve ter ocorrido com
todo mundo. Mas o importante é como Rousseau o conta. E como o leva a categoria
de um trauma inicial, de uma verdadeira expulsão do Paraíso.
O que aí viu Jean Jaques – não o menino Jean Jaques, que
então não via nada, o pobre menino somente sentia indignação e raiva, sentia a
arbitrariedade, ou seja lá o que sente um menino de dez anos em um caso assim.
Para o Jean Jaques adulto - o que escreve as Confissões e que já estava armado
de uma linguagem bastante consolidada, foi o final da infância, da felicidade,
da inocência e da pura presença em si da imediatez dos sentimentos. Até o
momento do castigo havia confiança, intimidade e transparência entre os
corações: era possível para uns ler diretamente o que sucedia nas almas dos
outros e era possível também que uma pessoa lesse o que ocorria em sua própria
alma. Mas a injustiça fez nascer uma distância entre a verdade (o fato de que o
menino não tinha quebrado os pentes) e as aparências (o fato de que parecia que
tinha quebrado) e deu a Jean Jaques a consciência da separação: um véu cobria a
verdade dos sentimentos, a realidade das almas humanas. Sobre o que cada um é
se estendia já irremediavelmente o véu das aparências. E abriu, por tanto, a
possibilidade de jogar com o véu, por tanto a possibilidade da mentira, da
dissimulação e da hipocrisia. A moral era de que se uma pessoa pode parecer
culpada sem ser, também pode parecer inocente sem ser. Segundo nos conta Jean
Jaques o jogo das aparências lhe ensinou a mentir. E quando uma pessoa aprende
a mentir, aprende também, em seguida, a mentir-se.
E assim foi como nossa inocente criatura se fez uma pessoa
adulta. Porque as pessoas adultas são adultas por que esqueceram que foram
crianças, por que sepultarão em algum lugar remoto de sua consciência a
violência que os fizeram adultos. E porque se esquecerão inclusive do
esquecimento, desse gesto que os fizeram enterrar o que são. Para ser adulto
confortavelmente, as pessoas adultas tem que pensar que as aparências são a
realidade, que o deserto é o paraíso, que a mentira é a verdade.
Jorge Larrosa
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