«As Lamentações dos Cegos»
Os Cegos/ Albin Egger Lienz (1918)
837- «AS LAMENTAÇÕES DOS CEGOS»
Tento contar coisas, mas, mal me calo, reparo que ainda nada
disse. Algo de brilho e peso maravilhosos, forma-se-me cá dentro e zomba das
palavras. Será a linguagem daquela gente, e que eu ainda não entendo, que se
introduz, a pouco e pouco, em mim? Casos, imagens, sons, tudo a fundir-se num
todo que as palavras não captariam nem alterariam. "Todo" que vai
para além das palavras, e que é mais profundo e mais ambíguo do que elas.
Imagino um homem que, desaprendidas todas as línguas da
terra, chegue ao ponto de não mais entender o que quer que seja, onde quer que
seja.
O que é que vive numa linguagem? O que é que ela encobre? O
que é que ela capta? Durante aquelas semanas passadas em Marrocos, nunca tentei
aprender árabe nem tão pouco os dialectos berberes. Não queria perder nada da
força contida nessas estranhas lamentações. Queria ser apanhado em cheio por
esses sons e não abrandá-los através de vagos conhecimentos, tão insuficientes
como artificiais.
Nada lera sobre essa terra. Os seus costumes eram-me tão desconhecidos
como as suas gentes. O pouco que se possa ter aprendido durante toda uma vida
acerca de qualquer país e acerca do seu povo, some-se, por inteiro, logo nas
primeiras horas.
Por exemplo, a palavra "Allah", na qual nunca
consegui penetrar, aproximar-me dela, sequer. E, no entanto, nessa palavra
assentava boa parte da minha experiência, sendo como era a mais frequente, a
mais eficaz, a mais aguda, a mais permanente das que os cegos iam pronunciando.
Para uma viagem levamos connosco quase tudo, mas a revolta,
a indignação, essas ficam deliberadamente esquecidas em casa. Vemos, ouvimos,
maravilhamo-nos perante o medonho, só porque o medonho é algo de novo. O bom e
perfeito viajante não tem coração!
No ano passado, a caminho de Viena e após uma longa ausência
de quinze anos, estive numa aldeia chamada Blindenmarkt -
"Mercado dos Cegos" - aldeia de cuja existência não me apercebera até
então. Tal nome atingiu-me como uma chicotada, e desde então nunca mais o
esqueci.
E foi este ano, durante a minha estada em Marraquexe, que,
de novo, dei por mim entre cegos. Eram centenas, inumeráveis centenas, na sua
maior parte mendigos. Reunidos em grupos de oito, por vezes de dez, e postos em
filas junto ao mercado, as suas roucas e eternamente repetidas lamentações ouviam-se
cá de longe.
Punha-me então diante deles, imóvel como eles, sem nunca ter
a certeza se sentiam ou não a minha presença. Cada qual tinha à sua frente uma
espécie de pequena taça de madeira destinada às esmolas. Ao cair em qualquer
delas uma moeda, a moeda passava então de mão em mão, e cada cego apertava-a,
sentia-a, experimentava-a, até que aquele que estivesse incumbido de tal
tarefa, a arrecadava na algibeira. Em conjunto sentiam, em conjunto murmuravam,
em conjunto se lamentavam.
Todos os cegos como que ofereciam o nome de Deus. Era, pois,
através das esmolas que ganhávamos direito a Ele. Com Deus começam e com Deus
terminam, repetindo o Seu Nome dez mil vezes por dia. Todos os seus lamentos
contêm sempre esse Nome. A invocação à qual se agarram um dia, mantém-se
inalteravelmente. Espécie de arabescos acústicos tecidos à volta de Deus,
infinitamente mais convincentes do que qualquer coisa obtida através da visão.
Uns confiam em absoluto no Seu Nome e nada mais dizem para
além d'Ele. Férrea obstinação, que faz com que Deus me surja como uma muralha,
sempre atacada através da mesma brecha. Penso, sinceramente penso, que os
pedintes se agarram à vida mais pelas suas invocações, do que pelas esmolas que
pedem. A repetição dessa lamentosa evocação caracteriza o pedinte como mais
nada. Metemo-nos na sua pele, conhecemo-lo, finalmente, e a partir de então
nunca mais ele deixará de ali estar. É como que uma propriedade, rigorosamente
delimitada. O seu lamento é a sua fronteira, que protege, que defende! Ali, o
cego é exactamente aquilo que clama, que invoca, que pede. Mas o seu lamento é
também multiplicação. A repetição rápida e regular dissolve-o no grupo.
Singular lamento, da insuspeitada energia. Cada cego pede para muitos e colhe
para todos.
"Pensa em todos os pobres!
Pensa em todos os pobres!
Deus te abençoará por todas as esmolas que deres!"
Quer isto dizer, que os pobres entrarão no Paraíso pelo
menos quinhentos anos antes dos ricos. Aos pobres, e pelas esmolas, compra-se
um quinhão do Paraíso. Quando morre alguém "o cortejo segue a pé com ou
sem carpideiras, mas sempre rapidamente até à cova, para que o morto depressa
alcance a felicidade. O credo é recitado pelos cegos".
Desde que deixei Marrocos, que, por várias vezes, de olhos
fechados e pernas cruzadas, me sentei num canto do meu quarto, tentando dizer
durante meia hora, em compasso certo e com forte convicção "Alá, Alá,
Alá!" Procurei imaginar que continuava a pronunciar essa palavra durante
todo o dia e boa parte da noite. Que, após um breve sono, voltaria a
pronunciá-la de novo, prosseguindo dia após dia, durante semanas, meses e anos.
Que envelheceria cada vez mais e que cada vez mais viveria, teimosamente preso
à vida. Que me enfureceria quando qualquer coisa me perturbasse. Que nada mais
me interessaria a não ser permanecer assim.
Compreendi, finalmente, o que é que aqueles pedintes cegos
realmente são. São os santos da repetição, da insistência, da teimosia sagrada,
de cujas vidas quase tudo foi suprimido.
Existe o lugar onde eles se acocoram ou se mantêm de pé.
Existe o seu inalterável lamento. Existe um limitado número de moedas pelas
quais anseiam, quatro ou cinco unidades diferentes. Existem também os que dão e
que muito diferem entre si. Mas os cegos não conseguem ver tais diferenças, e é
através das suas palavras de gratidão que tentam que essas diferenças se
esbatam.
Elias Canetti
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