domingo, 3 de julho de 2016

OUTROS CONTOS

«O Jejuador», por Franz Kafka.

«O Jejuador»
Desenho de Franz Kafka

827- «O JEJUADOR»

O interesse pelos jejuadores profissionais decresceu sensivelmente nos últimos decénios. Antes, convinha aos empresários organizar tais espetáculos, mas atualmente isto se tornou quase impossível. Vivemos num mundo diferente. Houve época em que a cidade inteira sentia viva curiosidade pelo artista da fome, aumentando a excitação à medida que o jejum se prolongava, querendo todos vê-lo ao menos uma vez por dia. Havia mesmo pessoas que compravam bilhetes para os últimos espetáculos, sentando-se desde manhã até a noite diante das grades da jaula. As exibições noturnas eram realçadas por archotes e, quando a temperatura era amena, levavam a jaula para o ar livre, sendo o jejuador mostrado às crianças como divertimento especial. Os adultos, muitas vezes consideravam aquilo pilhéria, aceita por estar em moda, mas as crianças ficavam boquiabertas, de mãos dadas para se sentirem mais seguras, maravilhando-se ante o homem pálido, de costelas salientes, que vestia justas calças negras e não tinha sequer uma cadeira, sentando-se na palha espalhada no chão. Às vezes ele inclinava a cabeça cortesmente, ou respondia com um sorriso constrangido às perguntas que lhe eram feitas, estendendo de vez o braço através das grades, para que verificassem como estava magro. Recolhia-se depois ao seu mutismo, não prestando atenção a nada nem a ninguém, nem mesmo ao relógio para ele tão importante e que era a única peça de mobília na jaula. Ficava a olhar o vazio, de pálpebras semicerradas, de vez em quando alcançando um pequeno copo de água e tomando um golezinho para humedecer os lábios.

Além dos espectadores comuns, havia permanentemente vigias escolhidos pelo público, que se revezavam. Por estranho que pareça, em geral eram açougueiros, em grupos de três, que tinham por obrigação observar o jejuador dia e noite, para evitar que ingerisse disfarçadamente algum alimento. Mera formalidade, instituída para tranquilizar o povo, pois os iniciados sabiam perfeitamente bem que, fossem quais fossem as circunstâncias, nem mesmo a força o artista se resolveria a quebrar o jejum, durante a prova. A honra da profissão o impedia. Nem todos os espectadores, naturalmente, eram capazes desta compreensão. Frequentemente havia grupos de vigilantes noturnos que relaxavam o cumprimento do dever, retirando-se para um canto, onde se deixavam empolgar por um jogo de cartas, com a evidente intenção de dar ao jejuador ensejo de tomar alimento, que eles supunham existir em algum esconderijo. Nada aborrecia mais o artista que semelhantes vigias. Faziam-no sentir-se infeliz e tornavam a abstinência insuportável. Às vezes conseguia dominar suficientemente a fraqueza para cantar, o mais que lhe era possível, tentando provar a injustiça de tais suposições. Isto de nada adiantava, pois os homens apenas admiravam a habilidade que lhe permitia comer enquanto cantava. Apreciava mais os guardas que se sentavam perto das grades e que, não se contentando com a parca iluminação do local, lançavam sobre ele o clarão direto das lanternas elétricas que o empresário pusera à sua disposição. A luz dura não o incomodava.

De qualquer maneira, não podia mesmo dormir, mas conseguia cochilar, sob qualquer luz, fosse qual fosse a hora, mesmo quando a sala se achava repleta de espectadores ruidosos. Ficava satisfeito por poder passar uma noite insone em companhia de tais vigias, estando sempre disposto a pilheriar com eles, contendo-lhe histórias de sua vida nômade, qualquer coisa que os conservasse acordados para demonstrar que não tinha comida na jaula e era capaz de uma abstinência que nenhum deles suportaria. Mas o momento mais feliz era quando chegava a manhã e vinham servir aos guardas, a suas expensas, um farto desjejum, ao qual eles se atiravam com feroz apetite de homens robustos, após cansativa noite de vigília. Naturalmente havia quem alegasse ser tal refeição uma desleal tentativa de suborno, mas isso era ir longe demais. Quando essas pessoas eram convidadas a participar de uma noite de guarda, apenas por amor a arte, sem a expectativa do café da manhã esquivavam-se, embora continuassem teimosamente a manter suas dúvidas.

Tais suspeitas, no entanto, eram inevitáveis na profissão. Impossível, naturalmente, ficar uma pessoa e observá-lo continuamente, dia e noite, e ninguém poderia garantir, por experiência própria, que o jejum fora rigoroso e ininterrupto. Somente o artista sabia disso, sendo, portanto, o único realmente convicto. Mas, por outros motivos, nunca estava verdadeiramente satisfeito. Talvez não fosse apenas o jejum que o tivesse reduzido àquele estado de magreza que fazia com que muitas pessoas se afastassem, embora a contragosto, por não poderem suportar o espetáculo. A insatisfação para consigo mesmo talvez fosse a verdadeira causa de seu depauperamento. Só ele sabia o que não era dado a saber nem mesmo a outros iniciados: como era fácil jejuar. A coisa mais fácil do mundo. Não fazia segredo disto, mas o povo não lhe dava crédito. Quando muito, consideravam-no modesto, mas a maioria achava que ele estava querendo fazer publicidade, ou, então, que se tratava de um trapaceiro que descobrira meio de tornar fácil o jejum e cinicamente o confessava.

Ele vira-se obrigado a aceitar tal reação e, com o tempo, a ela se habituara, mas a íntima satisfação persistia e nunca, justiça seja feita, deixara a jaula por espontânea vontade, quando chegava o término da prova. O prazo máximo fora fixado em quarenta dias pelo empresário, que não lhe permitia ir além, nem mesmo nas grandes cidades. Havia boas razões para isso. A experiência demonstrara que, durante 40 dias, a curiosidade do público podia ser mantida pela pressão de anúncios, mas depois disso o povo começa a se desinteressar, diminuindo o número de simpatizantes. Isto variava, naturalmente, de uma cidade a outra, entre este ou aquele país, mas em geral 40 dias era o limite.

Assim, no quadragésimo dia abria-se a porta da jaula engrinaldada de flores. Entusiásticos espectadores enchiam o local, entravam na jaula, para verificar o resultado da prova, que era anunciado por meio de alto-falante. Finalmente apareciam duas moças, felizes por terem sido escolhidas para tal honraria. Iam ajudar o artista a descer os poucos degraus que levavam à mesa onde se achava a refeição cuidadosamente preparada para um homem em suas condições físicas. Neste momento, o jejuador sempre se mostrava obstinado. Verdade que entregava os braços descarnados às duas moças que sobre ele se inclinavam para auxiliá-lo, mas não queria saber de levantar. Por que interromper o jejum especialmente neste instante, após 40 dias? Aguentara por muito tempo; por que desistir agora, quando se achava em plena forma, ou, para ser exacto, ainda não estava em sua melhor forma? Por que negar-lhe a fama que teria, se continuasse, a glória de ser, não apenas o recordista da fama de todos os tempos (o que talvez já fosse) mas a de sobrepujar seu próprio feito, com uma demonstração que ninguém julgaria possível? Ele sabia não haver limite para sua resistência. Já que o público parecia admirá-lo tanto, por que não se mostrava mais paciente? Se ele podia suportar uma abstinência prolongada, por que não aguentavam eles o espetáculo? Além do mais, estava cansado, achava-se sentado confortavelmente sobre a palha, e agora lhe viam exigir que se levantasse para comer! Só de pensar nisto sentia náusea e somente a presença das moças o impedia de manifestá-la e, assim mesmo, com esforço. Fitou-as, aparentemente tão amigas, mas na realidade cruéis; e sacudiu a cabeça que lhe pesava no pescoço enfraquecido. Aconteceu então, o que sempre acontecia. O empresário adiantou-se sem dizer palavra, a banda impossibilitava qualquer espécie de discurso. Ergueu os braços acima do artista, como que a convidar o céu a olhar para aquela pobre criatura ali na palha, mártir que em verdade era, embora noutro sentido. Com exageradas precauções, agarrou-lhe a cintura emaciada, para que pudessem apreciar devidamente a sua frágil condição, e entregou-o as moças, muito pálidas, dando-lhes disfarçadamente uma sacudidela que fez vacilarem suas pernas trôpegas. O artista submeteu-se agora totalmente, a cabeça tombada sobre o peito, como se ali tivesse ido parar por acaso. O corpo foi puxado para fora, os joelhos tentavam firmar-se um no outro, no instinto de conservação, as pernas se arrastavam como se ele não pisasse terreno firme e, apesar disso, o procurasse. Leve como pluma, tentou apoiar-se a uma das moças. Ofegante, ela olhou à volta em busca de socorro, parecendo achar que o posto de honra não correspondia à expectativa, e espichou o pescoço o mais que pôde para livrá-lo do contato desagradável. Vendo que era impossível e que sua mais feliz companheira não lhe vinha em auxílio, limitando-se a segurar na mão trêmula o feixe de ossos que era a mão do artista, rompeu em pranto, com grande gozo dos espectadores. Teve que ser substituída por um funcionário, que ali se achava de prontidão. Chegou a hora da comida e o empresário conseguiu enfiar alguma coisa por entre os lábios de seu protegido, que parecia a ponto de desmaiar. Falava ao mesmo tempo, alegremente, para que ninguém notasse o estado do jejuador. Depois, foi feito ao público um brinde, aparentemente instigado por um murmúrio do artista ao ouvido do empresário. A banda confirmou-o com um vigoroso rufar de tambores e o povo foi-se dissolvendo, parecendo todos satisfeitos com o que tinham visto, com exceção do homem que se exibira, que nunca se sentia satisfeito.

Assim viveu muitos anos, com pequenos intervalos de recuperação, em plena glória, admirado pelo mundo, mas apesar disto infeliz, tanto mais que ninguém parecia levar a sério seu desgosto. Que palavras de conforto precisaria ele ouvir? Que mais poderia desejar? Quando uma pessoa de boa vontade, dele se apiedando, tentava consolá-lo, dizendo que o jejum devia ser a causa de sua tristeza, acontecia ver-se ele tomado de cólera, principalmente quando a prova já ia adiantada. Com alarme geral, punha-se a sacudir as grades da jaula, tal animal selvagem. Mas o empresário tinha meios de pôr cobro a essas explosões, com as quais o artista gostava de se exibir. Desculpava-se publicamente por tal procedimento. Devia ser relevado, dizia ele, por causa da irritabilidade provocada pela abstinência, que pessoas bem alimentadas não estavam em condições de compreender. Depois, numa transição natural, mencionava a também incompreensível jactância do homem que se dizia capaz de jejuar por prazo maior ainda, elogiava-lhe a ambição, a boa vontade, o espírito de sacrifício implícitos em semelhante declaração. Dava em seguida o contragolpe, trazendo os fotógrafos que iriam vender ao público retratos onde se veria o jejuador, no quadragésimo dia, caído na palha, quase morto de exaustão. Essa distorção da verdade, embora conhecida do artista, tirava-lhe a coragem, deixando-o mais abatido ainda. Aquilo que era apenas consequência do precoce término do jejum era apresentado como causa! Impossível lutar contra a geral incompreensão. Inúmeras vezes, com o máximo da boa vontade, ficava perto das grades, ouvindo palavras do empresário, mas, assim que chegavam os fotógrafos, caía de novo na palha, com um gemido, e o público, tranquilizado, podia de novo aproximar-se para contemplá-lo.

Anos mais tarde, quando testemunhas de tais cenas as relembravam, não podiam às vezes compreendê-las. É que, neste meio-tempo, o interesse por essas exibições esmorecera, tendo acontecido quase que da noite para o dia. Talvez houvesse razões profundas para o fato, mas quem iria se preocupar em analisá-las? De qualquer maneira, o mimado artista da fome viu-se um belo dia abandonado pelas pessoas ávidas de divertimento, que iam agora em busca de espetáculos mais atraentes. Num derradeiro esforço, o empresário correu com ele metade da Europa, a ver se a antiga simpatia poderia ser reavivada. Em vão. Em toda a parte, como que por secreto acordo, havia positiva repulsa pelos jejuadores profissionais. Naturalmente isto não poderia ter surgido assim tão de repente. Muitos dos sintomas ominosos, aos quais eles não tinham dado suficiente atenção, ou que haviam mesmo sido ignorados na embriaguez do triunfo, voltavam agora à memória, embora fosse tarde demais. O interesse pelos jejuadores certamente teria o seu recrudescimento, um dia, mas isto não era consolo para os que atualmente viviam. Que poderia então fazer o artista da fome? Fora aplaudido por milhares de pessoas e não queria agora conformar-se com exibições em barracas de feira, nas aldeias. Quanto a adotar outra profissão, não somente estava muito velho, como era fanático pela sua. Assim, despediu-se do empresário, companheiro de uma carreira inigualável, e firmou contrato com um grande circo. Para não ferir a própria susceptibilidade, evitou ler-lhe as cláusulas.


Um circo importante, que está continuamente contratando e substituindo homens, animais e aparelhamento, sempre pode utilizar um artista, até mesmo um jejuador, contanto que não exija muito. No caso presente, não estavam os diretores interessados somente no artista, como em sua fama, durante longos anos adquirida. Considerando-se a peculiaridade de seu ofício, que não se prejudicara com a idade, não se podia dizer que ali estivesse um artista que, tendo ultrapassado a maturidade e não se achando mais em plena forma, viera buscar refúgio num circo. Pelo contrário, o jejuador afirmava ser capaz de suportar a abstinência tanto quanto antes e disso não se poderia duvidar.

Chegou mesmo a declarar que se lhe dessem carta-branca, o que lhe foi imediatamente prometido, poderia assombrar o mundo, estabelecendo um recorde jamais alcançado. Tal declaração provocou risos nos outros profissionais, pois não estava sendo levada em conta a frieza do público, fato que o jejuador, em seu zelo, parecera ter convenientemente esquecido.

No íntimo, ele não deixava de perceber a verdadeira situação. Conformou-se em ver sua gaiola colocada, não no meio da arena, como principal atração, e sim fora, perto das jaulas dos animais - local, afinal de contas, bastante acessível. Cartazes grandes e vistosos emolduravam a jaula, anunciando o tipo de espetáculo. Quando o público vinha, nos intervalos, ver as feras, tinha de passar pelo jejuador e algumas pessoas paravam, por momentos. Talvez se demorassem por mais tempo, não fossem os empurrões dos que vinham atrás, pela estreita passagem, e que não compreendiam o motivo pelo qual eram detidos. Isto impedia que os primeiros o examinassem com calma. Foi esta a razão que fez com que o artista que aguardara tais visitas como o maior acontecimento de sua vida, começasse a temê-las. A princípio, mal podia esperar pelos intervalos. Era excitante ver a multidão escoar para o seu lado, até que (tarde demais!) apesar do obstinado e quase consciente desejo de iludir-se, teve que se render à evidência. Convenceu-se de que aquelas pessoas, a julgar pela sua atitude, procuravam apenas visitar os animais. A sensação mais agradável sempre fora vê-los de longe. Quando se aproximavam, ficava aturdido com os gritos e insultos dos dois grupos dissidentes, sempre renovados, constituídos, um, pelos que desejavam parar para observá-lo (não por real interesse e sim por teimosia) e o segundo, por aqueles que ansiavam por ver as feras. Logo começou a detestar mais os primeiros. Depois que passava o maior número, vinham os retardatários. Embora pudessem contemplá-lo à vontade, apressavam-se, sem nem mesmo olhá-lo, tal o medo de chegarem atrasados às jaulas dos animais. Raramente acontecia ter ele um golpe de sorte, quando um pai de família parava com os filhos, apontando-o e explicando o fenômeno, contando histórias de anos passados, quando ele próprio assistira a espetáculos mais emocionantes. As crianças, sem nada entender, pois nem na escola e nem em casa haviam sido preparadas para isto (que lhes importava o jejum?) indicavam, pelo brilho dos olhos, que dias mais auspiciosos estavam para vir. Talvez as coisas corressem melhor, pensava o artista, se não o tivessem colocado tão perto dos animais. Isto tornava ao povo fácil a escolha, mesmo não se levando em consideração que ele sofria com o cheiro desagradável, a inquietação das feras à noite, a passagem dos pedaços de carne crua, o ruído na hora de serem alimentados, coisas que o deprimiam profundamente. Mas não ousava queixar-se. Afinal de contas, devia aos animais a afluência de tantas pessoas e sempre podia haver alguém que o notasse e lembrasse de sugerir lugar mais isolado para a gaiola, caso ele chamasse atenção para sua existência e para o fato de, na realidade, nada mais ser do que um obstáculo à passagem do público.

Pequeno obstáculo, não havia dúvida, e que cada vez menor se tornava. As pessoas familiarizavam-se com a estranha ideias de que delas se esperava, nestes tempos, que se interessassem pelo artista da fome, e esta familiaridade era justamente o veredito contra ele. Poderia jejuar à vontade e era o que fazia, mas nada agora o salvaria. O povo passava, indiferente. Fosse alguém explicar a arte do jejum! Quem não a apreciasse espontaneamente, jamais chegaria a compreendê-la. Os belos cartazes foram tornando-se sujos e ilegíveis e acabaram sendo em parte arrancados. A pequena tabuleta indicando o número de dias, havia muito marcava a mesma data, pois nem mesmo este pequeno esforço parecia útil aos funcionários. Assim sendo, o artista continuava jejuando e jejuando, como antes fora seu sonho. Isto não o incomodava, como ele soubera, que não o incomodaria. Mas ninguém mais contava os dias, ninguém; nem mesmo o artista sabia que recorde estaria ele batendo e seu coração se confrangia. Quando, de vez em quando, um passante se detinha e zombava do velho deitado ali no chão, falando em fraude, tratava-se da mais estúpida mentira jamais inventada pela indiferença e malícia humanas. Não era o artista que estava trapaceando. Ele trabalhava honestamente; o mundo, sim, o lograva, privando-o da merecida recompensa.

Muitos dias se passaram e também aquilo chegou ao fim. Um fiscal apareceu ali e perguntou aos funcionários por que se desperdiçava uma jaula que continha apenas um monte de palha suja. Ninguém soube responder até que um deles, notando o cartaz com o número de dias, lembrou do artista da fome. Enfiaram um pau na palha e o descobriram.

– Ainda está jejuando?... perguntou o inspector. Quando, em nome dos céus, pretende parar?

– Perdoem-me todos… murmurou o artista. Somente o fiscal, que tinha o ouvido perto das grades, conseguiu entendê-lo.

– Claro que o perdoamos!... respondeu, batendo na testa, como a indicar aos empregados o estado mental do jejuador.

– Sempre desejei que admirassem minha resistência.

– Claro que a admiramos!... disse o fiscal, amavelmente.

– Mas não deviam admirar.

– Está certo, não admiramos, então, mas por que diz isto?

– Porque tenho que jejuar, não posso evitá-lo.

– Que tipo você é!?... exclamou o inspector. Por que não pode evitá-lo?

– Porque não consegui encontrar comida a meu gosto… respondeu o artista, erguendo um pouco a cabeça e falando junto ao ouvido do outro, para que não se perdesse uma sílaba. Se a tivesse encontrado, creia que não teria feito nada disto e me empanturraria como o senhor ou qualquer outro.

Foram estas suas últimas palavras, mas não olhos apagados restava a firme, embora não mais orgulhosa, certeza de que continuaria a jejuar.

– Pois bem, limpem isto aqui!... ordenou o fiscal.

Enterraram o artista da fome, com palha e tudo. Em seu lugar, puseram uma jovem pantera. Até mesmo as pessoas mais insensíveis acharam agradável ver o animal selvagem pulando na jaula que durante muito tempo tão lúgubre parecera. A pantera ia muito bem. A comida que lhe convinha era trazida pontualmente pelos empregados e nem ela mesmo dava impressão de sentir a ausência de liberdade. Aquele nobre corpo, provido ao máximo de todo o necessário, parecia trazer em si a própria liberdade. A alegria de viver fluía de suas faces com tal ardor, que aos espectadores não era difícil suportar o choque. Mas enchiam-se de coragem, comprimindo-se à volta da jaula, e acabavam não querendo mais se afastar.

Franz Kafka

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