«O Jejuador»
Desenho de Franz Kafka
827- «O JEJUADOR»
O interesse pelos jejuadores profissionais decresceu sensivelmente
nos últimos decénios. Antes, convinha aos empresários organizar tais
espetáculos, mas atualmente isto se tornou quase impossível. Vivemos num mundo
diferente. Houve época em que a cidade inteira sentia viva curiosidade pelo
artista da fome, aumentando a excitação à medida que o jejum se prolongava,
querendo todos vê-lo ao menos uma vez por dia. Havia mesmo pessoas que
compravam bilhetes para os últimos espetáculos, sentando-se desde manhã até a
noite diante das grades da jaula. As exibições noturnas eram realçadas por
archotes e, quando a temperatura era amena, levavam a jaula para o ar livre,
sendo o jejuador mostrado às crianças como divertimento especial. Os adultos,
muitas vezes consideravam aquilo pilhéria, aceita por estar em moda, mas as
crianças ficavam boquiabertas, de mãos dadas para se sentirem mais seguras,
maravilhando-se ante o homem pálido, de costelas salientes, que vestia justas
calças negras e não tinha sequer uma cadeira, sentando-se na palha espalhada no
chão. Às vezes ele inclinava a cabeça cortesmente, ou respondia com um sorriso
constrangido às perguntas que lhe eram feitas, estendendo de vez o braço
através das grades, para que verificassem como estava magro. Recolhia-se depois
ao seu mutismo, não prestando atenção a nada nem a ninguém, nem mesmo ao
relógio para ele tão importante e que era a única peça de mobília na jaula.
Ficava a olhar o vazio, de pálpebras semicerradas, de vez em quando alcançando
um pequeno copo de água e tomando um golezinho para humedecer os lábios.
Além dos espectadores comuns, havia permanentemente vigias
escolhidos pelo público, que se revezavam. Por estranho que pareça, em geral
eram açougueiros, em grupos de três, que tinham por obrigação observar o
jejuador dia e noite, para evitar que ingerisse disfarçadamente algum alimento.
Mera formalidade, instituída para tranquilizar o povo, pois os iniciados sabiam
perfeitamente bem que, fossem quais fossem as circunstâncias, nem mesmo a força
o artista se resolveria a quebrar o jejum, durante a prova. A honra da
profissão o impedia. Nem todos os espectadores, naturalmente, eram capazes
desta compreensão. Frequentemente havia grupos de vigilantes noturnos que
relaxavam o cumprimento do dever, retirando-se para um canto, onde se deixavam
empolgar por um jogo de cartas, com a evidente intenção de dar ao jejuador
ensejo de tomar alimento, que eles supunham existir em algum esconderijo. Nada
aborrecia mais o artista que semelhantes vigias. Faziam-no sentir-se infeliz e
tornavam a abstinência insuportável. Às vezes conseguia dominar suficientemente
a fraqueza para cantar, o mais que lhe era possível, tentando provar a
injustiça de tais suposições. Isto de nada adiantava, pois os homens apenas
admiravam a habilidade que lhe permitia comer enquanto cantava. Apreciava mais
os guardas que se sentavam perto das grades e que, não se contentando com a
parca iluminação do local, lançavam sobre ele o clarão direto das lanternas
elétricas que o empresário pusera à sua disposição. A luz dura não o
incomodava.
De qualquer maneira, não podia mesmo dormir, mas conseguia
cochilar, sob qualquer luz, fosse qual fosse a hora, mesmo quando a sala se
achava repleta de espectadores ruidosos. Ficava satisfeito por poder passar uma
noite insone em companhia de tais vigias, estando sempre disposto a pilheriar
com eles, contendo-lhe histórias de sua vida nômade, qualquer coisa que os
conservasse acordados para demonstrar que não tinha comida na jaula e era capaz
de uma abstinência que nenhum deles suportaria. Mas o momento mais feliz era
quando chegava a manhã e vinham servir aos guardas, a suas expensas, um farto
desjejum, ao qual eles se atiravam com feroz apetite de homens robustos, após
cansativa noite de vigília. Naturalmente havia quem alegasse ser tal refeição
uma desleal tentativa de suborno, mas isso era ir longe demais. Quando essas
pessoas eram convidadas a participar de uma noite de guarda, apenas por amor a
arte, sem a expectativa do café da manhã esquivavam-se, embora continuassem
teimosamente a manter suas dúvidas.
Tais suspeitas, no entanto, eram inevitáveis na profissão.
Impossível, naturalmente, ficar uma pessoa e observá-lo continuamente, dia e
noite, e ninguém poderia garantir, por experiência própria, que o jejum fora
rigoroso e ininterrupto. Somente o artista sabia disso, sendo, portanto, o
único realmente convicto. Mas, por outros motivos, nunca estava verdadeiramente
satisfeito. Talvez não fosse apenas o jejum que o tivesse reduzido àquele
estado de magreza que fazia com que muitas pessoas se afastassem, embora a
contragosto, por não poderem suportar o espetáculo. A insatisfação para consigo
mesmo talvez fosse a verdadeira causa de seu depauperamento. Só ele sabia o que
não era dado a saber nem mesmo a outros iniciados: como era fácil jejuar. A
coisa mais fácil do mundo. Não fazia segredo disto, mas o povo não lhe dava
crédito. Quando muito, consideravam-no modesto, mas a maioria achava que ele
estava querendo fazer publicidade, ou, então, que se tratava de um trapaceiro que
descobrira meio de tornar fácil o jejum e cinicamente o confessava.
Ele vira-se obrigado a aceitar tal reação e, com o tempo, a
ela se habituara, mas a íntima satisfação persistia e nunca, justiça seja
feita, deixara a jaula por espontânea vontade, quando chegava o término da
prova. O prazo máximo fora fixado em quarenta dias pelo empresário, que não lhe
permitia ir além, nem mesmo nas grandes cidades. Havia boas razões para isso. A
experiência demonstrara que, durante 40 dias, a curiosidade do público podia
ser mantida pela pressão de anúncios, mas depois disso o povo começa a se
desinteressar, diminuindo o número de simpatizantes. Isto variava,
naturalmente, de uma cidade a outra, entre este ou aquele país, mas em geral 40
dias era o limite.
Assim, no quadragésimo dia abria-se a porta da jaula
engrinaldada de flores. Entusiásticos espectadores enchiam o local, entravam na
jaula, para verificar o resultado da prova, que era anunciado por meio de
alto-falante. Finalmente apareciam duas moças, felizes por terem sido escolhidas
para tal honraria. Iam ajudar o artista a descer os poucos degraus que levavam
à mesa onde se achava a refeição cuidadosamente preparada para um homem em suas
condições físicas. Neste momento, o jejuador sempre se mostrava obstinado.
Verdade que entregava os braços descarnados às duas moças que sobre ele se
inclinavam para auxiliá-lo, mas não queria saber de levantar. Por que
interromper o jejum especialmente neste instante, após 40 dias? Aguentara por
muito tempo; por que desistir agora, quando se achava em plena forma, ou, para
ser exacto, ainda não estava em sua melhor forma? Por que negar-lhe a fama que
teria, se continuasse, a glória de ser, não apenas o recordista da fama de
todos os tempos (o que talvez já fosse) mas a de sobrepujar seu próprio feito,
com uma demonstração que ninguém julgaria possível? Ele sabia não haver limite
para sua resistência. Já que o público parecia admirá-lo tanto, por que não se
mostrava mais paciente? Se ele podia suportar uma abstinência prolongada, por
que não aguentavam eles o espetáculo? Além do mais, estava cansado, achava-se
sentado confortavelmente sobre a palha, e agora lhe viam exigir que se
levantasse para comer! Só de pensar nisto sentia náusea e somente a presença
das moças o impedia de manifestá-la e, assim mesmo, com esforço. Fitou-as,
aparentemente tão amigas, mas na realidade cruéis; e sacudiu a cabeça que lhe
pesava no pescoço enfraquecido. Aconteceu então, o que sempre acontecia. O
empresário adiantou-se sem dizer palavra, a banda impossibilitava qualquer
espécie de discurso. Ergueu os braços acima do artista, como que a convidar o
céu a olhar para aquela pobre criatura ali na palha, mártir que em verdade era,
embora noutro sentido. Com exageradas precauções, agarrou-lhe a cintura
emaciada, para que pudessem apreciar devidamente a sua frágil condição, e
entregou-o as moças, muito pálidas, dando-lhes disfarçadamente uma sacudidela
que fez vacilarem suas pernas trôpegas. O artista submeteu-se agora totalmente,
a cabeça tombada sobre o peito, como se ali tivesse ido parar por acaso. O
corpo foi puxado para fora, os joelhos tentavam firmar-se um no outro, no
instinto de conservação, as pernas se arrastavam como se ele não pisasse
terreno firme e, apesar disso, o procurasse. Leve como pluma, tentou apoiar-se
a uma das moças. Ofegante, ela olhou à volta em busca de socorro, parecendo
achar que o posto de honra não correspondia à expectativa, e espichou o pescoço
o mais que pôde para livrá-lo do contato desagradável. Vendo que era impossível
e que sua mais feliz companheira não lhe vinha em auxílio, limitando-se a
segurar na mão trêmula o feixe de ossos que era a mão do artista, rompeu em
pranto, com grande gozo dos espectadores. Teve que ser substituída por um
funcionário, que ali se achava de prontidão. Chegou a hora da comida e o
empresário conseguiu enfiar alguma coisa por entre os lábios de seu protegido,
que parecia a ponto de desmaiar. Falava ao mesmo tempo, alegremente, para que
ninguém notasse o estado do jejuador. Depois, foi feito ao público um brinde,
aparentemente instigado por um murmúrio do artista ao ouvido do empresário. A
banda confirmou-o com um vigoroso rufar de tambores e o povo foi-se
dissolvendo, parecendo todos satisfeitos com o que tinham visto, com exceção do
homem que se exibira, que nunca se sentia satisfeito.
Assim viveu muitos anos, com pequenos intervalos de
recuperação, em plena glória, admirado pelo mundo, mas apesar disto infeliz,
tanto mais que ninguém parecia levar a sério seu desgosto. Que palavras de
conforto precisaria ele ouvir? Que mais poderia desejar? Quando uma pessoa de
boa vontade, dele se apiedando, tentava consolá-lo, dizendo que o jejum devia
ser a causa de sua tristeza, acontecia ver-se ele tomado de cólera,
principalmente quando a prova já ia adiantada. Com alarme geral, punha-se a
sacudir as grades da jaula, tal animal selvagem. Mas o empresário tinha meios
de pôr cobro a essas explosões, com as quais o artista gostava de se exibir.
Desculpava-se publicamente por tal procedimento. Devia ser relevado, dizia ele,
por causa da irritabilidade provocada pela abstinência, que pessoas bem
alimentadas não estavam em condições de compreender. Depois, numa transição
natural, mencionava a também incompreensível jactância do homem que se dizia
capaz de jejuar por prazo maior ainda, elogiava-lhe a ambição, a boa vontade, o
espírito de sacrifício implícitos em semelhante declaração. Dava em seguida o
contragolpe, trazendo os fotógrafos que iriam vender ao público retratos onde
se veria o jejuador, no quadragésimo dia, caído na palha, quase morto de
exaustão. Essa distorção da verdade, embora conhecida do artista, tirava-lhe a
coragem, deixando-o mais abatido ainda. Aquilo que era apenas consequência do
precoce término do jejum era apresentado como causa! Impossível lutar contra a
geral incompreensão. Inúmeras vezes, com o máximo da boa vontade, ficava perto
das grades, ouvindo palavras do empresário, mas, assim que chegavam os
fotógrafos, caía de novo na palha, com um gemido, e o público, tranquilizado,
podia de novo aproximar-se para contemplá-lo.
Anos mais tarde, quando testemunhas de tais cenas as
relembravam, não podiam às vezes compreendê-las. É que, neste meio-tempo, o
interesse por essas exibições esmorecera, tendo acontecido quase que da noite
para o dia. Talvez houvesse razões profundas para o fato, mas quem iria se
preocupar em analisá-las? De qualquer maneira, o mimado artista da fome viu-se
um belo dia abandonado pelas pessoas ávidas de divertimento, que iam agora em
busca de espetáculos mais atraentes. Num derradeiro esforço, o empresário
correu com ele metade da Europa, a ver se a antiga simpatia poderia ser
reavivada. Em vão. Em toda a parte, como que por secreto acordo, havia positiva
repulsa pelos jejuadores profissionais. Naturalmente isto não poderia ter
surgido assim tão de repente. Muitos dos sintomas ominosos, aos quais eles não
tinham dado suficiente atenção, ou que haviam mesmo sido ignorados na
embriaguez do triunfo, voltavam agora à memória, embora fosse tarde demais. O
interesse pelos jejuadores certamente teria o seu recrudescimento, um dia, mas
isto não era consolo para os que atualmente viviam. Que poderia então fazer o
artista da fome? Fora aplaudido por milhares de pessoas e não queria agora
conformar-se com exibições em barracas de feira, nas aldeias. Quanto a adotar
outra profissão, não somente estava muito velho, como era fanático pela sua.
Assim, despediu-se do empresário, companheiro de uma carreira inigualável, e
firmou contrato com um grande circo. Para não ferir a própria susceptibilidade,
evitou ler-lhe as cláusulas.
Um circo importante, que está continuamente contratando e
substituindo homens, animais e aparelhamento, sempre pode utilizar um artista,
até mesmo um jejuador, contanto que não exija muito. No caso presente, não
estavam os diretores interessados somente no artista, como em sua fama, durante
longos anos adquirida. Considerando-se a peculiaridade de seu ofício, que não
se prejudicara com a idade, não se podia dizer que ali estivesse um artista
que, tendo ultrapassado a maturidade e não se achando mais em plena forma,
viera buscar refúgio num circo. Pelo contrário, o jejuador afirmava ser capaz
de suportar a abstinência tanto quanto antes e disso não se poderia duvidar.
Chegou mesmo a declarar que se lhe dessem carta-branca, o
que lhe foi imediatamente prometido, poderia assombrar o mundo, estabelecendo
um recorde jamais alcançado. Tal declaração provocou risos nos outros
profissionais, pois não estava sendo levada em conta a frieza do público, fato
que o jejuador, em seu zelo, parecera ter convenientemente esquecido.
No íntimo, ele não deixava de perceber a verdadeira
situação. Conformou-se em ver sua gaiola colocada, não no meio da arena, como
principal atração, e sim fora, perto das jaulas dos animais - local, afinal de
contas, bastante acessível. Cartazes grandes e vistosos emolduravam a jaula,
anunciando o tipo de espetáculo. Quando o público vinha, nos intervalos, ver as
feras, tinha de passar pelo jejuador e algumas pessoas paravam, por momentos.
Talvez se demorassem por mais tempo, não fossem os empurrões dos que vinham
atrás, pela estreita passagem, e que não compreendiam o motivo pelo qual eram
detidos. Isto impedia que os primeiros o examinassem com calma. Foi esta a
razão que fez com que o artista que aguardara tais visitas como o maior
acontecimento de sua vida, começasse a temê-las. A princípio, mal podia esperar
pelos intervalos. Era excitante ver a multidão escoar para o seu lado, até que
(tarde demais!) apesar do obstinado e quase consciente desejo de iludir-se,
teve que se render à evidência. Convenceu-se de que aquelas pessoas, a julgar
pela sua atitude, procuravam apenas visitar os animais. A sensação mais
agradável sempre fora vê-los de longe. Quando se aproximavam, ficava aturdido
com os gritos e insultos dos dois grupos dissidentes, sempre renovados,
constituídos, um, pelos que desejavam parar para observá-lo (não por real
interesse e sim por teimosia) e o segundo, por aqueles que ansiavam por ver as
feras. Logo começou a detestar mais os primeiros. Depois que passava o maior
número, vinham os retardatários. Embora pudessem contemplá-lo à vontade,
apressavam-se, sem nem mesmo olhá-lo, tal o medo de chegarem atrasados às
jaulas dos animais. Raramente acontecia ter ele um golpe de sorte, quando um
pai de família parava com os filhos, apontando-o e explicando o fenômeno,
contando histórias de anos passados, quando ele próprio assistira a espetáculos
mais emocionantes. As crianças, sem nada entender, pois nem na escola e nem em
casa haviam sido preparadas para isto (que lhes importava o jejum?) indicavam,
pelo brilho dos olhos, que dias mais auspiciosos estavam para vir. Talvez as
coisas corressem melhor, pensava o artista, se não o tivessem colocado tão
perto dos animais. Isto tornava ao povo fácil a escolha, mesmo não se levando
em consideração que ele sofria com o cheiro desagradável, a inquietação das
feras à noite, a passagem dos pedaços de carne crua, o ruído na hora de serem
alimentados, coisas que o deprimiam profundamente. Mas não ousava queixar-se.
Afinal de contas, devia aos animais a afluência de tantas pessoas e sempre
podia haver alguém que o notasse e lembrasse de sugerir lugar mais isolado para
a gaiola, caso ele chamasse atenção para sua existência e para o fato de, na
realidade, nada mais ser do que um obstáculo à passagem do público.
Pequeno obstáculo, não havia dúvida, e que cada vez menor se
tornava. As pessoas familiarizavam-se com a estranha ideias de que delas se
esperava, nestes tempos, que se interessassem pelo artista da fome, e esta
familiaridade era justamente o veredito contra ele. Poderia jejuar à vontade e
era o que fazia, mas nada agora o salvaria. O povo passava, indiferente. Fosse
alguém explicar a arte do jejum! Quem não a apreciasse espontaneamente, jamais
chegaria a compreendê-la. Os belos cartazes foram tornando-se sujos e ilegíveis
e acabaram sendo em parte arrancados. A pequena tabuleta indicando o número de
dias, havia muito marcava a mesma data, pois nem mesmo este pequeno esforço
parecia útil aos funcionários. Assim sendo, o artista continuava jejuando e
jejuando, como antes fora seu sonho. Isto não o incomodava, como ele soubera,
que não o incomodaria. Mas ninguém mais contava os dias, ninguém; nem mesmo o
artista sabia que recorde estaria ele batendo e seu coração se confrangia.
Quando, de vez em quando, um passante se detinha e zombava do velho deitado ali
no chão, falando em fraude, tratava-se da mais estúpida mentira jamais
inventada pela indiferença e malícia humanas. Não era o artista que estava
trapaceando. Ele trabalhava honestamente; o mundo, sim, o lograva, privando-o
da merecida recompensa.
Muitos dias se passaram e também aquilo chegou ao fim. Um
fiscal apareceu ali e perguntou aos funcionários por que se desperdiçava uma
jaula que continha apenas um monte de palha suja. Ninguém soube responder até
que um deles, notando o cartaz com o número de dias, lembrou do artista da
fome. Enfiaram um pau na palha e o descobriram.
– Ainda está jejuando?... perguntou o inspector. Quando, em nome
dos céus, pretende parar?
– Perdoem-me todos… murmurou o artista. Somente o fiscal,
que tinha o ouvido perto das grades, conseguiu entendê-lo.
– Claro que o perdoamos!... respondeu, batendo na testa, como a
indicar aos empregados o estado mental do jejuador.
– Sempre desejei que admirassem minha resistência.
– Claro que a admiramos!... disse o fiscal, amavelmente.
– Mas não deviam admirar.
– Está certo, não admiramos, então, mas por que diz isto?
– Porque tenho que jejuar, não posso evitá-lo.
– Que tipo você é!?... exclamou o inspector. Por que não pode
evitá-lo?
– Porque não consegui encontrar comida a meu gosto…
respondeu o artista, erguendo um pouco a cabeça e falando junto ao ouvido do
outro, para que não se perdesse uma sílaba. Se a tivesse encontrado, creia que
não teria feito nada disto e me empanturraria como o senhor ou qualquer outro.
Foram estas suas últimas palavras, mas não olhos apagados
restava a firme, embora não mais orgulhosa, certeza de que continuaria a
jejuar.
– Pois bem, limpem isto aqui!... ordenou o fiscal.
Enterraram o artista da fome, com palha e tudo. Em seu
lugar, puseram uma jovem pantera. Até mesmo as pessoas mais insensíveis acharam
agradável ver o animal selvagem pulando na jaula que durante muito tempo tão
lúgubre parecera. A pantera ia muito bem. A comida que lhe convinha era trazida
pontualmente pelos empregados e nem ela mesmo dava impressão de sentir a
ausência de liberdade. Aquele nobre corpo, provido ao máximo de todo o
necessário, parecia trazer em si a própria liberdade. A alegria de viver fluía
de suas faces com tal ardor, que aos espectadores não era difícil suportar o
choque. Mas enchiam-se de coragem, comprimindo-se à volta da jaula, e acabavam
não querendo mais se afastar.
Franz Kafka
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