quarta-feira, 13 de julho de 2016

OUTROS CONTOS

«O Urso», por William Faulkner.
«O Urso»
Conto de William Faulkner

831- «O URSO»

Tinha dez anos. Mas aquilo já começara antes, muito antes do dia em que – afinal – escreveu a idade com dois algarismos e viu pela primeira vez o campo de caça onde seu pai, o Major Spain, o velho General Compson e os outros passavam duas semanas todo mês de novembro e outras duas todo mês de junho.

Então, já herdara deles – sem nunca o ter visto sequer – o medonho urso da pata aleijada numa armadilha. O urso que, numa área de quase cento e cinquenta quilómetros de circunferência, ganhara direito a um nome, a um tratamento, como um homem.

Há muitos anos que ele ouvia a história, a lenda dos celeiros roubados, de leitões e cevados, de vitelos levados inteiros para a floresta e devorados; de armadilhas e fossos desfeitos e cães mutilados ou mortos; de chumbadas de caçadeiras e até de carabinas atiradas quase à queima-roupa com menos resultado do que se fosse um punhado de ervilhas atirado por uma criança. Histórias de um corredor de ruína e destruição, que começava antes do seu nascimento e através do qual corria, não muito depressa mas com a deliberação implacável e irresistível de uma locomotiva, o vulto hirsuto e medonho. O urso.

Já antes de ver o urso ele lhe surgia tal como era, especialmente nos sonhos. Muito antes de ter sequer avistado os bosques onde o animal deixava a sua pegada torta, era capaz de descrevê-lo, felpudo, enorme, de olhos vermelhos, antes grande do que maldoso, grande demais para os cães que tentavam acossá-lo, para os cavalos que tentavam derrubá-lo, para os homens e as balas que o perseguiam, grande demais para a própria região a que estava limitado. Parecia vê-lo inteiro, muito antes de ter visto a solidão selvagem e condenada, de orlas constantemente e covardemente cortadas e roídas por homens com machados e arados, que tinham medo dela por ser selvagem, homens que sem conta e sem nome uns para os outros na região onde o próprio urso ganhara um nome. Viu-o, mesmo, muito antes de imaginar a região através da qual corria não só um animal mortal mas um sabe Deus o quê, indomável e invencível, vindo de um tempo já morto; um fantasma, epítome e apoteose daquela vida selvagem que o enxame de homens covardes lacerava numa fúria de ódio e de terror, como pigmeus em torno das patas de um elefante sonolento, e sobre o velho urso solitário, indomável e só, viúvo sem filhos e só, absolvido da mortalidade e só.

Até os dez anos de idade, quando chegava o mês de novembro, o rapaz via o carroção com os cães, as camas, a comida, as armas, o pai, o negro Jim da Tennie e o índio Sam Fathers (filho de uma escrava e de um chefe de índios Chicksaw), todos partindo pela estrada para a vila, para Jefferson, onde o Major e os outros se reuniam. No entender do rapaz, aos sete, oito e nove anos, eles não iam ao Vale Fundo para caçar ursos ou veados. Iam para ter um encontro com o urso, que nem sequer pensavam em matar. Tanto é que voltavam após duas semanas de caça, sem troféus, sem peles nem cabeças. Nem ele esperava por elas. Nem temia que o carroção trouxesse alguma coisa. Acreditava que quando fizesse dez anos e o pai o levasse também à caça nas duas semanas de novembro, ele seria apenas um dos participantes, com o pai, o Major e o General Compson, com os outros, com os cães que tinham medo de o acossar e as caçadeiras que nem sangue lhe faziam: seria mais um no cortejo anual de homenagem à imortalidade do velho urso.

Até que ouviu os cães. Foi na segunda semana da sua primeira caçada. Ficou parado ouvindo, com o Sam Fathers, de encontro a um enorme carvalho, ao lado do cruzamento que vigiava já por nove manhãs. Ouvira-os já uma vez antes disso, numa das manhãs da semana anterior. Ouvira um murmúrio que ecoava pelos bosques molhados, crescendo em vozes separadas, possíveis de reconhecer e chamar pelo nome. Levantou a arma com o dedo no cão – tal como Sam ensinara – e de novo ficou imóvel, enquanto o alarido, a corrida invisível, se aproximava, passava, morria ao longe. Quase lhe parecia ver o veado macho, fulvo, cor de fumo, retesado pela velocidade, voando, desaparecendo, os bosques, a solidão cinzenta ainda a vibrar mesmo depois da algazarra dos cães ter desaparecido.

– Agora solte o cão – disse Sam.

– Você já sabia que eles não vinham pra´qui.

– Sabia. Quero que aprenda o que deve fazer quando não disparar. É depois que se perde a oportunidade de atirar que acontecem desastres aos homens e aos cães. Seja como for – disse depois – não passava de um veado.

E agora, na décima manhã, ouviu outra vez os cães. Aprontou a espingarda comprida e pesada – como Sam ensinara – ainda antes que o índio desse ordem. Mas desta vez não havia veado, nem coro de cães a correr sobre um rastro fácil. Era um latir fatigante, uma oitava acima, com qualquer coisa de indeciso e até de abjeto; que parecia não se mover e levava tempo enorme para ficar longe do alcance do ouvido. E que então deixava no ar um eco agudo, levemente histérico, quase lamentoso, humano. Aquilo não podia ser a perseguição a qualquer animal fugitivo, cor de fumo, herbívoro. E o Sam, que lhe ensinara a armar a espingarda antes de mais nada, a tomar posição de onde pudesse ver tudo e depois não se mexer nem bulir na espingarda, viera para o lado dele. O rapaz ouvia o índio respirando sobre o seu ombro e via a curva arqueada das narinas do velho.

– Ah – disse Sam – nem se dá ao trabalho de correr. Vem andando.

– É o velho Ben – a voz do rapaz estava excitada. – Mas tão aqui em cima?

– Faz isso todos os anos – disse o índio. – Uma vez. Provavelmente para ver quem veio este ano, se é gente que sabe atirar ou não. Para ver se já temos o cão capaz de acossá-lo e meter-lhe os dentes. Vai levar os cães todos ao rio e depois mandá-los para trás.

O menino ficou ouvindo. Sam disse vamos voltar e depois disse, mais para si próprio:

– Vai ver o aspecto deles, quando chegarem de volta ao acampamento.

Quando chegaram ao acampamento os cães já estavam lá, dez deles, encolhidos atrás da cozinha. O rapaz e o índio acocoraram-se para espreitar na escuridão onde estavam amontoados, silenciosos, de olhos reluzentes que acendiam e apagavam. E nem um único som. Só aquele pressentimento de qualquer coisa mais forte do que um cão e não apenas um animal ou fera. Nada houvera diante daquele latir abjeto e quase doloroso senão a solidão selvagem.

E quando o undécimo cão chegou, ao meio-dia, todos olharam, até o velho tio Ash – que se dizia cozinheiro antes de mais nada. E Sam tratou-o com terebentina e massa de untar os eixos, passando mãos cheias na orelha em tiras e na espádua. E para o rapaz, o autor de tudo aquilo continuou a ser a solidão selvagem que castigara com uma pancada leve a temeridade do cão.  Aquilo não parecia obra de uma criatura viva, mortal.

– Tal e qual um homem – disse Sam. – Tal e qual. Foi demorando, demorando o mais possível, adiando a ocasião de ter coragem, sabendo perfeitamente que mais tarde ou mais cedo teria de ganhar coragem para poder continuar merecendo o nome de cão; e sabendo antecipadamente o que lhe aconteceria, quando a coragem chegasse.

Nessa tarde, montado na mula caolha do carroção, que não se importava com o cheiro de sangue (nem, como lhe contaram, com o dos ursos), e com Sam ao lado montado na outra, cavalgaram durante mais de três horas naquele dia de inverno. Não seguiram nenhuma senda, nenhum atalho que ele percebesse. Em pouco tempo estavam num lugar desconhecido para eles. Então, compreendeu porque é que Sam lhe dera a mula menos espantadiça. A outra parou, tentou voltar a fugir. Mesmo quando o índio desceu e agarrou as rédeas, bem curto, ela continuou bufando, puxando, querendo voltar. Sam incitava a mula a correr, gritando com ela, porque não queria arriscar amarrá-la. 

Finalmente, ela avançou, bufando sempre. O rapaz não teve dificuldade com a sua, mas também desceu e segurou as rédeas, curto.

De pé, ao lado de Sam, no escuro da tarde que morria, olhos no tronco apodrecido e virado, estripado e riscado de marcas de garras, o rapaz viu na terra molhada, ao lado, a pegada da enorme pata de dois dedos, torta. Agora sabia que cheiro sentira quando fora olhar os cães encolhidos debaixo da cozinha. Pela primeira vez compreendeu que o urso que via antes, que aparecia nos seus sonhos desde que se conhecia como gente e que devia ter existido antes nos sonhos do pai, do Major e até do velho General Compson, que esse urso era um animal mortal. E que – pensou – se eles tinham partido todos os anos no mês de novembro para a caçada sem esperanças de voltar com o troféu, não era porque este não pudesse ser abatido, mas porque até aqui eles não tiveram ainda verdadeiras esperanças de caçá-lo.

– Amanhã – disse ele.

– Tentaremos amanhã – emendou Sam. – Mas ainda não temos cão.

– Temos onze. Contamos esta manhã.

Só é preciso um. Mas não está aqui. Talvez não esteja em parte alguma. A única maneira é ele dar de cara, por acidente, com alguém que esteja armado.

– Não seria comigo. Seria o Walter, ou o Major, ou…

– Podia ser – disse o índio. – Amanhã tenha muito cuidado. Porque ele é matreiro. É por isso que ainda não morreu. Se estiver cercado e tiver de escolher alguém a quem atacar, escolherá você.

– Por quê? – perguntou o rapaz.

– Como é que ele vai saber… Você quer dizer que ele já me conhece, sabe que é a primeira vez que venho, que ainda não tive tempo de… – parou novamente e olhou para Sam bem nos olhos. O rosto do velho nada revelava, a não ser quando sorria. Depois disse humildemente, sem espanto algum: – Foi a mim que ele veio observar. E não foi preciso vir aqui mais de uma vez, não é?

Na madrugada seguinte saíram do acampamento três horas antes de amanhecer o dia. Desta vez foram montados, porque era muito longe para ir a pé. Até os cães foram na carripana. Mais uma vez o nascer do dia cinzento o surpreendeu em um lugar que nunca vira antes. Sam indicou o lugar onde devia ficar, e depois o deixou. Com a espingarda na mão – a espingarda que era grande demais para ele porque não era dele e sim do Major, e que apenas disparara uma vez, num cepo, no primeiro dia, para conhecer o coice e aprender a carregá-la – encostou-se a uma árvore-de-borracha, ao lado de um riacho cuja água negra e tranquila escorria sem ruído através de um canavial, atravessava uma aberta e se metia outra vez entre as canas onde, invisível, um pássaro (o enorme pica-pau que os negros chamam senhor-pra-deus) matraqueava num tronco morto.

Era um posto como qualquer outro, apenas incidentalmente diferente do que ocupara todas as manhãs durante dez dias. Um território novo para ele e, no entanto, tão estranho quanto esse outro que, ao fim de duas semanas começara a acreditar que conhecia ligeiramente. O mesmo isolamento, a mesma solidão que seres humanos apenas atravessaram sem alterar, sem deixar marcas, nem cicatrizes, que se mantinha exatamente como a devia ter encontrado no primeiros dos antepassados índios de Sam, ao chegar e olhar em volta, de cacete ou machado de pedra, ou zagaia de osso em punho. Diferente apenas porque, acocorado ao pé da cozinha, sentira o cheiro dos cães encolhidos e acovardados diante dela. E porque vira em tiras a espádua e a orelha do que fora obrigado a ter coragem para merecer (segundo Sam) o nome de cão. E porque, na véspera, vira na terra úmida ao lado do tronco riscado, a marca da pata.

Não ouviu os cães. Não chegou a ouvir o latido deles. Ouviu apenas o matraquear do pica-pau parar de repente. E soube que o urso estava olhando para ele. Não chegou a vê-lo. Não podia saber se ele estava à sua frente ou nas costas. Não se mexeu. Nas mãos a inútil espingarda, que nem sequer armara e que agora não valia a pena armar, sentindo na saliva aquele travo metálico que conhecia agora porque sentira o cheiro do urso quando espreitara os cães encolhidos debaixo da cozinha.

Depois, foi-se embora. Tão repentinamente como se interrompera, o martelar seco e monótono do pica-pau recomeçou. E depois de algum tempo o rapaz pensou que ouvia os cães, mas só pensou, sem ouvir. Vinha da floresta um murmúrio, quase que nenhum ruído, mas de repente aquele ruído encheu a floresta até o alcance do ouvido do rapaz e de novo se afastou, morrendo ao longe.

Não se aproximaram dele. Se era um urso o que perseguiam, seria outro urso.

Sam saiu do canavial e atravessou o riacho, seguido pelo cão ferido na véspera. O bicho vinha sem fazer barulho, quase rastejando, como um perdigueiro. Veio e agachou-se junto à perna de Sam, tremendo, os olhos bem abertos para o canavial.

– Não o vi. – disse o rapaz; e repetiu – não o vi, Sam.

Sua voz não tremia, mas havia um tom estranho, emocionado. Sam respondeu, calmo:

– Eu sei. Quem veio aqui foi ele mesmo. E você nem pode dizer de que lado ele veio, não é?

– Não, eu…

– Ele é matreiro – explicou Sam – matreiro demais.

Olhou para o cão, que tremia fraca e continuamente junto ao joelho do rapaz. Da espádua retalhada escorriam algumas gotas de sangue fresco. Tornou a falar:

– É grande demais. Ainda não temos cão para ele. Talvez um dia, e não acredito que seja ainda na próxima primavera. Mas um dia…

Então, tenho de ver esse bicho, tenho de vê-lo, pensou o rapaz.

Se, pelo menos, visse o urso… Porque se não visse, parecia a ele que aquilo continuaria sempre como continuara com o pai e o Major (que era mais velho do que o pai), e até com o velho General Compson (que em 1865 já tinha idade suficiente para comandar uma brigada). Se não o visse agora, aquilo continuaria sempre da mesma maneira, na próxima vez e na seguinte, e depois, e depois, e depois. Não queria admitir ele próprio e o urso mergulhados no limbo de onde emergia o tempo, tornando-se eles próprios tempo: o velho urso, absolvido da mortalidade, e ele, partilhando um pouco, bastante, dessa absolvição. E agora sabia qual era aquele cheiro dos cães encolhidos e aquele travo na saliva. Reconhecia o medo. Tenho de ver esse bicho, tenho de ver, pensou de novo. Sem medo mas sem muita esperança.

Foi em julho do ano seguinte. Tinha onze anos. Estavam outra vez no acampamento, festejando os aniversários do Major e do General Compson. Embora o primeiro tivesse nascido em setembro e o outro pertinho do inverno e dez anos depois, encontravam-se sempre durante duas semanas para pescar, atirar aos esquilos e ao peru selvagem e perseguir com os cães, à noite, os texugos e os gatos bravos. Isto é: o rapaz, mais Boon Hogganbeck e os negros é que faziam isso; não só o Major e o General (que passavam as duas semanas sentados numa cadeira de balanço, diante de uma enorme panela de ferro, mexendo e provando e discutindo com o velho Ash a melhor maneira de fazer a panelada, e vendo o Jim da Tennie passando aguardente do garrafão para a caneca de lata e da caneca de lata para o estômago), mas até o pai e o Walter Ewell, que ainda eram bastante moços, desdenhavam esses passatempos e apenas atiravam aos perus selvagens para fazer apostas de pontaria.

Ou, pelo menos, o pai e os outros julgavam que ele ia à caça dos esquilos. Até o terceiro dia pensou que o Sam Fathers também o julgava. Saía do acampamento todas as manhãs logo depois do almoço, agora, com a sua própria espingarda, presente de Natal. Voltou à árvore da beira do riacho, onde estivera naquela manhã. Olhando a bússola que o velho General Compson lhe dera, partiu deste ponto, em círculos. Sem saber, estava aprendendo a ser um batedor melhor do que o vulgar. No segundo dia encontrou até o tronco gadanhado onde vira pela primeira vez a pegada torta. A madeira estava agora quase completamente desfeita.  E voltara com inacreditável rapidez e um abandono apaixonado e quase visível para a terra que dera origem à árvore.

Percorria agora os bosques de verão, verdes e frondosos (se havia diferença era por causa da obscuridade maior do que a nebulosidade cinzenta de novembro). O sol, mesmo quando estava a pino, apenas salpicava a terra aqui e ali, que nunca secava por completo e por isso vivia coberta de serpentes: cobras-d´água, mocassins, cascavéis, todas da cor da sombra malhada e que portanto ele nem sempre via, a não ser quando se moviam, se se moviam. E cada vez ele voltou mais tarde. No terceiro dia, ao passar ao crepúsculo pela pequena estacaria que cercava o estábulo de madeira onde Sam dava guarda aos cavalos, preparando-os para a noite, o índio disse:

– Ainda não procurou como deve ser.

Parou. Durante um momento não respondeu. Depois, calmamente, cedendo pacificamente como aquelas represas em miniatura que as crianças fazem nos riachos, disse:

– Fui até a árvore. Cheguei a encontrar outra vez aquele tronco. Eu…

– Acho que fez bem. Se calhar, ele tem até andado a espiá-lo. Não viu a pegada dele?

– Não – confessou o rapaz – não vi. Não pensei…

– É a arma – explicou Sam.

Parou ao lado da sebe; imóvel, o velho, o índio de ganga desbotada e puída e com o chapéu de palha de cinco cêntimos que fora a marca da escravidão da raça negra e agora era a insígnia de sua liberdade, estava olhando firme. O acampamento, o terreno desbravado, a casa, o barracão, e o seu pequeno equipamento com que o Major esgravatava de leve a solidão selvagem, tudo se dissolvia no crepúsculo, voltando à escuridão imemorial da floresta.

A arma, a arma – pensou o rapaz.

– Assuste-se – disse o índio. – Isso não se pode evitar. Mas não tenha medo. Não há bicho nenhum na floresta que nos possa fazer mal, desde que não esteja cercado ou que não fareje que estamos com medo. Um urso ou um veado, tal qual como um homem corajoso, precisam do medo dos covardes.

A arma, a arma – pensou o rapaz.

– Você tem de escolher – disse Sam.

Deixou o acampamento antes de nascer o dia, muito antes de tio Ash acordar nos seus cobertores do chão da cozinha e acender o fogo para fazer o almoço. Levou só a bússola e a vara para as serpentes. Sabia o caminho até um quilômetro antes de precisar da bússola. Sentou-se num cepo, com a invisível bússola na mão (também ainda invisível), enquanto os ruídos secretos da noite – interrompidos com os seus movimentos – de novo se esgueiravam e se interrompiam de vez. E os mochos se calaram para dar lugar ao despertar dos pássaros da manhã. Ah, já vi a bússola. Continuou rápida e silenciosamente a caminhada. Conhecia cada vez melhor a floresta, mas não tinha consciência disso.

Ao nascer, o sol levantou um veado e a fêmea, fazendo-os sair da cama. Ficaram a uma distância curta, e ele viu bem até o reflexo nos olhos deles, e ouviu o barulho que os rabinhos brancos faziam batendo no mato. Depois viu a fêmea saltar e o veado saltar atrás dela mais velozmente do que julgara possível. Batia a floresta na direcção devida, contra o vento, como Sam ensinara. Não era que isto agora tivesse alguma importância. Abandonara a espingarda. De sua própria vontade e resolução não aceitaria compromissos, escolhas, mas sim uma condição em que tinham sido anulados não só o até agora inviolável anonimato do urso como todas as antigas regras e vantagens do caçador e da presa.

Não teria medo, nem mesmo no momento em que o terror o tomasse por completo, sangue, pele, entranhas, ossos, memória da eternidade antes de se tornar memória sua – tudo, menos a lucidez aguda, clara, imortal, que o distinguia daquele urso e de todos os outros ursos e veados que havia de matar com a humildade e o orgulho da sua perícia e resistência. A lucidez a que Sam se dirigira quando se encostara à estacaria, na véspera, à boca da noite.

Ao meio-dia ultrapassara de muito o pequeno riacho. Nunca penetrara até tão longe na região nova e desconhecida. Já não caminhava só pelo velho relógio de prata, pesado, volumoso, que pertencera ao avô. Quando finalmente parou, foi a primeira vez que o fez depois de se ter levantado, de madrugada, do tronco em que estivera sentado quando consultara a bússola. Estava bastante longe. Saíra do acampamento fazia nove horas. Dali a nove horas a noite teria caído há uma hora. Mas não pensava nisso. Pensou: “Bom; está bem; mas então?” E parou durante um momento, parecendo estranho e minúsculo no meio da solidão verde e sobranceira, respondendo à própria pergunta antes de ela se ter formulado e terminado. Era o relógio, a bússola, a vara – os três aparelhos inanimados que durante nove horas ele usara contra a solidão selvagem. Pendurou cuidadosamente o relógio e a bússola num arbusto, encostou o pau ao lado deles e entregou-se completamente a ela.

Durante as últimas duas ou três horas não caminhara muito depressa. Não andava mais depressa agora, já que a distância não tinha importância. E estava tentando não perder o rumo da árvore em que deixara a bússola, procurando descrever um círculo que o fizesse voltar a ela ou, pelo menos, se interceptasse a si próprio, já que a direção não tinha importância agora. Mas não encontrou a árvore, e fez o que Sam lhe ensinara: descreveu novo círculo na direção oposta, para que os dois percursos se interceptassem mais longe. No entanto, não cruzou as suas próprias pegadas e acabou encontrando a árvore mas num lugar errado, sem o arbusto, a bússola, o relógio; e nem a árvore era a mesma, porque ao lado dela havia um cepo baixo. Fez o que Sam Fathers lhe ensinara a fazer em seguida e em último lugar.

Ao sentar-se no cepo viu a pegada torta, o medonho corte aleijado que se enchia de água, mesmo diante dos seus olhos. Quando olhou para cima a solidão uniu-se, solidificou-se,  e a clareira, a árvore procurada, o arbusto, o relógio, a bússola, refulgiam batidos por um raio de sol.

E viu então o urso.

Não apareceu de parte alguma: estava ali, simplesmente imóvel, sólido, firmado nas manchas quentes da tarde verde e sem brisa, não tão grande como o sonhara, mas tão grande como esperava, desmedido, recortado na obscuridade pintalgada, olhando para o rapaz que, sentado no cepo, lhe devolvia o olhar.

Depois moveu-se. Não fez barulho. Não se apressou. Atravessou a clareira caminhando durante um instantinho sob a luz crua do sol. Quando chegou ao outro lado parou outra vez e olhou-o por cima do ombro, enquanto o rapaz, no seu respirar tranquilo, inspirou e expirou três vezes.
E desapareceu.

Não caminhou para a floresta, para o mato. Desvaneceu-se, voltou a dissolver-se na solidão, como um peixinho que o rapaz vira um dia afundar-se e desaparecer na fundura negra da lagoa sem um único movimento das barbatanas.

Será no próximo outono – pensou.

Mas não foi no próximo outono, nem no seguinte, nem no outro. Tinha então 14 anos. Matara o seu primeiro veado e Sam Fathers marcara-lhe a cara com o sangue; e no ano seguinte matou um urso. Mas já antes disso tornara-se tão competente na floresta como muitos adultos que tem experiência. Num raio de 50 quilómetros, a partir do acampamento, não havia território que não conhecesse, riacho, outeiro, árvore ou atalho. Era capaz de conduzir qualquer pessoa a qualquer ponto sem hesitação, e trazê-la de volta. Conhecia pistas de caça que nem mesmo Sam Fathers conhecia. Aos 13 anos descobrira a cama de um veado, às escondidas do pai pediu a carabina a Walter Ewell, deitou-se à espera de o sol raiar e matou o veado quando ele voltava à cama, pois Sam lhe contara como faziam os velhos índios Chicksaw.

Mas não o urso velho. Embora agora já lhe conhecesse melhor as pegadas do que as suas próprias, e não só a pegada da pata aleijada. Quando via uma das outras três era capaz de reconhecê-la imediatamente. Não só pelo tamanho – havia outros ursos dentro desses 50 quilómetros, capazes de deixar marcas tão grandes – era mais do que isso.

Se Sam Fathers fora o seu aio e os coelhos e esquilos do quintal da casa o seu jardim de infância, então a solidão selvagem percorrida pelo velho urso era para ele o colégio e o próprio urso velho, há tanto tempo viúvo e sem filhos que se tornara o ingénito pai dele próprio, a sua universidade. Mas nunca mais vira o urso.

Sabia agora encontrar a pegada torta quase sempre que bem entendesse, a vinte, quinze ou dez quilómetros, e por vezes nesses três anos, enquanto esperava, ouvira os cães na pista do urso, por acaso. Na segunda vez pareceram seguir a pista, ladrando alto, abjectamente, quase humanos de histerismo, como naquela primeira manhã de dois anos atrás. Mas nunca o urso. Lembrava-se daquela tarde de três anos atrás, a clareira, ele, o urso, imóveis na terra pintalgada e quieta; e parecia-lhe que aquilo nunca acontecera, que também aquilo fora sonho. Mas tinha acontecido. Tinham-se olhado, emergidos daquela solidão velha como a terra, sincronizados naquele instante por qualquer coisa mais forte do que a carne e os ossos que os envolviam. E tinham tocado, afiançado e afirmado qualquer coisa mais duradoura do que a frágil teia de ossos e carne que um breve acidente podia destruir.

Até que tornou a vê-lo.

Precisamente pelo fato de não pensar noutra coisa, já se esquecera de procurar por ele. Andava ainda com a carabina de Walter Ewell: viu o urso atravessar o fundo de um comprido túnel, corredor que um tornado varrera, atravessando mais por entre a rede de troncos e ramos do que correndo sobre eles, como faria uma locomotiva, correndo com uma rapidez de que nunca o julgara capaz, quase tão depressa como um gamo, porque um gamo passaria a maior parte daquele tempo no ar; mais rápido do que faz uma pessoa para acertar as miras da carabina. E compreendeu então qual fora o seu erro durante aqueles três anos. Sentou-se num cepo, vacilante e trêmulo, como se nunca tivesse visto a floresta, nem o que havia dentro dela, perguntando a si mesmo, com um espanto incrédulo, como pudera ter esquecido o que o velho índio lhe dissera e o urso confirmara no dia seguinte e voltara a reafirmar agora, depois de passados três anos.

Agora sim, compreendia o que lhe disseram Sam Fathers a respeito do cão necessário, de um cão em que a importância não estava no tamanho. E quando sozinho em abril (não havia escola nessa altura: os filhos dos lavradores trabalhavam no cultivo da terra e o pai dera-lhe, finalmente, licença, com a condição de voltar em quatro dias), quando voltou, tinha o cão. Era dele o animal, um rafeiro da espécie que os negros chamavam fyce, caçador de ratos, ele próprio não muito maior do que um rato e possuidor daquela valentia que há muito tempo deixara de ser coragem para ser temeridade.

Não precisou de quatro dias. De novo sozinho encontrou a pista, na primeira manhã. Não era uma cilada; antes uma emboscada. Contou o tempo do encontro quase como se se tratasse de um compromisso com um ser humano. Na madrugada seguinte foram à pista, contra o vento; ele agarrando no rafeiro amordaçado com uma saca e o Sam Fathers com dois cães amarrados por um bocado de corda. Chegaram tão perto dele que o urso voltou sem correr – como se estivesse surpreendido pelo alarido agudo e frenético do rafeiro solto – voltando-se em defensiva, encostado ao tronco de uma árvore, plantado sobre as patas traseiras. O rapaz pensou que ele nunca mais acabaria de se erguer, de tão alto. E até os dois cães pareceram ganhar uma coragem desesperada ao acompanharem o rafeiro que ia na corrida.

Só aí o rapaz compreendeu que o cão não ia parar. Saltou, atirou fora a arma e correu. Quando alcançou e agarrou o rafeiro, que rodopiava freneticamente tentando escapar, pareceu-lhe que estava debaixo dos pés do urso. Sentia o cheiro muito forte, quente, espesso, do urso. Agachado, levantou os olhos para o vulto que se elevava sobre ele, alto, forte e pesado como uma carga de chuva e escuro como uma trovoada, familiar, tranquila e até lucidamente familiar; até que se lembrou: fora assim que sempre sonhara com ele.

Depois, desapareceu. Não o viu desaparecer. Ajoelhou-se agarrando com as mãos o rafeiro frenético, ouvindo o vergonhoso latir dos cães a afastar-se ao longe. Até que Sam veio para perto dele.

– Esta é a segunda vez que o urso vê você com uma espingarda na mão. Desta vez não podia ter falhado o tiro.

O rapaz levantou-se, ainda agarrando o rafeiro. Mesmo nos seus braços e longe do chão o animal gania furiosamente, aos puxões e repelões para seguir o alarido longínquo dos dois cães, como um feixe de molas de aço. O rapaz ofegava ligeiramente, mas desta vez não vacilava nem tremia.

– E não disparaste – disse o pai, espantado. – A que distância estavas?

– Não sei, pai. Vi uma grande cicatriz na perna direta do bicho. Isso vi. Mas então não tinha a espingarda.

– E quando tinhas a espingarda também não fizeste fogo. Por quê?

Mas o rapaz não respondeu. E o pai não esperou que ele respondesse. Atravessou o quarto por cima da pele do urso que o filho matara há dois anos e da pele do outro maior que ele próprio matara antes de o seu filho ter nascido; atravessou o quarto e foi em direcção à estante que ficava por baixo da cabeça embalsamada do primeiro veado que o moço abatera. O pai chamava aquele quarto de escritório e era ali que tratava todos os negócios da plantação. Fora ali que o rapaz, aos 14 anos de idade, ouvira as mais interessantes de todas as conversas. O Major ia lá e às vezes o velho General Compson também; e Walter Ewell, Boon Hogganback, Sam Fathers e o Jim da Tennie, que eram caçadores, conheciam os bosques e toda a caça que havia neles.

O rapaz ouvia a conversa, sem falar nem um pouquinho, mas à escuta. E a conversa era a solidão selvagem, a enorme floresta, maior e mais velha do que qualquer documento dos brancos, convencidos vaidosamente de que tinham comprado parte dela, maior e mais velha do que qualquer documento dos índios, inflexivelmente convencidos de que alguma vez tinham transmitido parte dela. Mas a floresta pertencia aos homens, não brancos nem negros ou vermelhos, mas simplesmente aos homens, aos caçadores com vontade e audácia para resistir e a humildade para sobreviver; e aos cães e aos ursos e aos veados justapostos e aliados contra ela, ordenados e impelidos pela solidão, na luta antiquíssima e inadiável regida por antiquíssimas e inatingíveis regras que anulavam o remorso e não permitiam quartel. As vozes eram tranquilas, graves, deliberadas pela retrospecção, pela recordação, pela lembrança exata, enquanto ele se acocorava ao pé do fogo com o Jim da Tennie, que só se metia para jogar mais lenha e passar a garrafa de uns copos para os outros. Porque a garrafa estava sempre presente: o passado um bocado parecia-lhe que aqueles duros instantes de ânimo, esperteza, coragem, astúcia, rapidez, se concentravam naquele líquido escuro que as mulheres, os rapazes, as crianças não bebiam, só os caçadores, bebendo nele o sangue derramado, mas uma condenação do espírito mortal e ardente, bebendo-o moderada, humildemente até, não com a baixa esperança do pagão de obter as virtudes da astúcia, da força e da velocidade, mas em saudação a elas.

O pai voltou com o livro, sentou-se de novo, começou a abrir as páginas.

– Escuta. – disse ele. Leu alto as cinco estâncias, com a sua voz calma e ponderada, enchendo o quarto em que não havia fogo porque era primavera. Depois levantou os olhos. O rapaz observava.

– Bem. – disse o pai – escuta.

Tornou a ler, mas desta vez só a segunda estrofe, até o fim, até aos dois últimos versos. E fechou o livro, colocando-o a seu lado, na mesa.

– “Ela não pode morrer, embora tu não consigas ser feliz como pretendes; eternamente a amarás e ela será bela” – repetiu.

– Ele fala de uma moça – disse o rapaz.

– De alguma coisa tinha de falar – respondeu o pai. E acrescentou: – Falava da verdade. A verdade é eterna. A verdade é só uma. Abrange todas as coisas sobre a terra. A honra, o orgulho, a piedade, a justiça, a coragem, o amor. Compreendes agora?

O rapaz não sabia bem. Talvez tudo fosse mais simples do que aquilo. Havia um velho urso, duro e implacável, não apenas para continuar a viver, mas com o feroz orgulho da liberdade e da independência, suficientemente orgulhoso para não sentir medo ou alarma ao vê-las ameaçadas. Mais: que “algumas vezes, parecia até arriscar deliberadamente essa liberdade e independência para melhor saborear, para incitar os seus fortes e velhos ossos e a carne a manterem-se ágeis e capazes de as defender e conservar”.

Havia um velho, filho de uma escrava negra e de um rei índio, herdeiro, por um lado, de um povo que aprendera a humildade no sofrimento e a dignidade nessa resistência que sobrevive ao sofrimento e à injustiça; e, pelo outro lado, da história de outro povo, mais antigo sobre aquela terra do que o primeiro, mas que já não existia sobre ela senão na fraternidade solitária do sangue estranho de um negro e do espírito selvagem e invencível de um urso velho.

Havia um rapaz que queria aprender a humildade e o orgulho para poder tornar-se destro e digno da floresta, mas que estava-se adestrando tão rapidamente que temia não chegar nunca a tornar-se digno, por não ter aprendido essa humildade e orgulho (embora tivesse tentado aprender), até que um dia, de repente, descobriu que um velho incapaz de definir qualquer das duas coisas o levara pela mão àquele ponto em que o urso velho e um cãozinho lhe haviam revelado que, possuindo outra, possuiria ambas.

E havia um cãozinho, anónimo, sem raça, filho de todos, adulto mas com menos de dois quilos e meio de peso, como que dizendo para si: “Não posso ser perigoso, porque nada há muito mais pequeno do que eu; não posso mostrar fúria porque diriam que é um ruído sem importância; não posso ser humilde porque já estou demasiadamente próximo do chão para poder ajoelhar; não posso ser orgulhoso, porque estaria demasiadamente longe dele para ser possível ver quem produzia a sombra; e nem sequer sei que não vou para o céu, porque já está decidido que a minha alma não é imortal. Só me resta, portanto, ter coragem. Mas está bem. Terei coragem, mesmo que digam que é um ruído sem importância”.

E pronto. Era simples, muito mais simples do que um homem, num livro, falar da juventude de uma moça por quem nunca precisaria se afligir, porque nunca lhe seria possível aproximar-se mais dela, ou necessário afastar-se. Ouvira falar de um urso, acabara por ter idade para perseguir o urso e por fim, com uma espingarda nas mãos, encontrara o velho urso e não disparara.

Porque um cãozinho… Mas podia ter disparado muito antes de o cãozinho ter corrido os trinta metros até ao urso que esperava; e o Sam Fathers podia ter disparado em qualquer momento durante aquele interminável instante em que o velho Ben estivera em cima deles, de pé nas patas traseiras.

Interrompeu-se. O pai observava-o gravemente através do maduro crepúsculo primaveril do quarto. Quando falou, as palavras foram tão calmas como o crepúsculo; não muito altas, porque seriam duradouras.

– Coragem, honra, dignidade – disse o pai – piedade, amor da justiça e da liberdade. Tudo isso toca o coração; e o que o coração aceita torna-se verdade até onde é possível conhecê-la. Compreendes agora?

O Sam, o velho Ben e o Nip, pensou o rapaz. E ele próprio também tivera razão – o pai assim o dissera.

– Sim, pai. – disse ele.

William Faulkner

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