«Uma Garota de Lindas Pernas»
BD/ Milo Manara
854- «UMA GAROTA DE LINDAS PERNAS»
A primeira vez que a vi foi num bar na rua Alvarado. Lisa
era o nome. Na época eu tinha 24 anos e ela aparentava uns 35. Ela estava lá
sentada no centro do bar e os dois bancos ao seu redor estavam vazios. Achei um
tanto estranho não haver nenhum cara lhe penteando, tentando conseguir uma boa
trepada.
Comparada com a maioria das mulheres que frequentavam aquele antro, ela
realmente bonita. Seu rosto era meio arredondado e seu cabelo aparentemente
nada tinha de excepcional, mas havia uma espécie de quietude e paz no modo como
se sentava. Algo confortante que só as pessoas em paz conseguem passar. Sentia
também um pouco de tristeza e timidez no seu jeito de olhar.
Levantei de meu banco para ir ao banheiro e tanto na ida como na volta passei
ao seu lado; dei uma boa olhada nela. Era pequena, miúda, um pouco atarracada,
mas com ancas perfeitas, bem formadas. No entanto a parte mais exuberante de
seu corpo eram as pernas: tornozelos roliços, barrigas de pernas perfeitas,
joelhos que imploravam para serem tocados, quase gritando, e coxas
maravilhosamente torneadas.
Era como se aquela parte de seu corpo não tivesse sentido o peso do tempo,
enquanto o resto dele se definhara.
Seu queixo era redondo como uma rosca e seu rosto bastante fofo. Parecia estar
bêbada.
Ela usava sapatos de salto alto, pretos e brilhantes; em seu braço esquerdo
havia três pulseiras de ouro falsificado e vagabundo e um pouco acima do pulso
uma escura pele de toupeira, ou outra porra qualquer morta. Fumava um cigarro
comprido e seu olhar estava fixo no copo de bebida. Parecia estar tomando
whisky junto com uma garrafa de cerveja pra suavizar o baque.
Voltei par ao meu banco, acabei com meu whisky e pedi outro ao barman. Quando
ele trouxe a bebida eu perguntei-lhe sobre as lindas pernas.
— Oh! — Exclamou ele — é a Lisa.
— Ela é bem bonita, — comentei — por que nenhum
dos homens se senta ao seu lado?
— Isso é simples, — ele respondeu. — Ela é louca.
Depois disso retirou-se. Peguei o meu copo e fui até Lisa. Sentei-me no banco à
sua esquerda, acendi um cigarro e tomei um gole da minha bebida. Eu já estava
parcialmente bêbado. Peguei meu whisky e virei-o de uma só vez. Chamei o barman
de novo:
— Repita a dose pra nós dois, e traga também duas cervejas.
Ao ouvir isso, Lisa acabou com sua bebida.
Quando as novas chegaram, cada um de nós tomou um gole do
seu. Em seguida ficamos ambos olhando para o infinito.
Acho que alguns segundos se passaram até que ela disse:
— Não gosto das pessoas, e você?
— Também não.
Ela secou sua bebida e tomou um gole de cerveja. Fiz o
mesmo.
— Sou louca — disse ela.
— Você é louco? Perguntou.
— Sim.
Chamei o barman.
— Eu pagarei a próxima — ela disse.
Encomendou as bebidas como se aquele acto fosse a coisa mais quotidiana em sua
vida, como se fosse tudo que ela havia feito nos últimos dez anos ou quinze
anos. Quando elas chegaram eu disse:
— Obrigado Lisa.
— É um prazer... Qual o seu nome?
— Hank.
— É um prazer, Hank.
— Tomou um gole e olhou pra mim de um jeito estranho.
— Você é louco o bastante pra quebrar o espelho de um bar?
— Acho que já fiz isso.
— Onde foi?
— O Orchoid Room.
— O Orchoid Room é um lugar estúpido e bobo.
— Não o frequento mais.
Em seguida, Lisa, num só gole, bebeu quase toda a garrafa e suspirou.
— Cara, eu vou quebrar o espelho deste bar.
— Vá em frente — eu sugeri.
Acabou com a bebida levantou-se e pegou a garrafa de cerveja vazia. Levantou-se
e colocou-a atrás da cabeça.
Num impulso repentino eu saltei tentando segurar seu braço,
mas foi tarde demais.
A garrafa de cerveja, em trajectória de arco, voou até o espelho enquanto minha
mente disse rapidamente:
— Não, não, merda!
Houve um aguçado estrondo de coisas se partindo, e
estilhaços de vidros voaram como gigantes pingentes de gelo. Por alguma razão
estranha as luzes se apagaram.
Foi assustador, mágico e lindo.
Acabei com meu whisky.
No escuro vi algo branco se aproximar. Era o barman que se reduzira a camisa e avental. Estava se mexendo rapidamente.
— Sua puta louca! — ele gritou.
— Vou te matar!
Posicionei Lisa atrás de mim. Tacteei no escuro e achei a minha garrafa de cerveja. Quando o barman se aproximou dei sorte de acertá-lo na têmpora esquerda. No entanto, o desgraçado não caiu, ficou ali de pé no escuro com aquela roupa branca. Parecendo um desses porteiros de hotel chique esperando um táxi.
Passei a garrafa para minha mão esquerda e acho que pude sentir fracturar sua têmpora direita. Caiu em direcção ao balcão, mas se segurou com ambas as mãos em um dos cantos.
Ficou assim por alguns instantes para em seguida tombar em
direcção à rua Alvarado.
Quando alcançou o chão as luzes se acenderam. Um sincronismo estranho,
realmente.
Por um segundo parecia que todos no bar estavam congelados: os bêbados, eu,
Lisa e o barman.
Em seguida eu berrei:
— “Vamos embora!”.
Agarrei Lisa pelo braço e a arrastei em direcção à saída. No
instante seguinte estávamos num beco. Eu a puxava.
— Venha, venha rápido!
— Não consigo correr com estes horríveis saltos.
— Então tira essa porra — eu disse.
Ela parou, arrancou-os dos pés, passou-me um, ficou com o outro, e corremos
atravessando o beco. Quando chegamos ao outro lado, olhei para trás. Não
estávamos sendo perseguidos.
— Tudo certo. Coloque os sapatos.
Assim fez. Enfiou o primeiro, apoiou-se no meu ombro e
enfiou o segundo. Ficou em pé balançando aquele rabo divino.
— Pronto, vamos!
— Pra onde? Ela perguntou.
— Pra minha casa.
— Estávamos no final do beco, perto de uma esquina. Vi um ónibus,
ergui meu braço e fiz sinal: puxei Lisa. O motorista já havia fechado a porta,
mas parecia ser um cara legal, e a reabriu. Entrei empurrando Lisa e paguei as
passagens. Tentei fazer com que se sentasse mas não consegui, ela ficou de pé
segurando no encosto do banco.
Olhou-me bruscamente. Através de seus olhos verdes percebi
uma enorme irritação. Ela disse:
— Merda! Quero um táxi. Sou uma dama. Não ando nesta bosta
de transporte.
Lisa parecia uma linda gazela bêbada e sua maravilhosa bunda
balançava com o sacolejar do ónibus.
— Eu quero um táxi. Sou uma senhora. Que foda é essa?
— Bem, são só quatro quadras.
— Merda! — ela berrava — merda!
O próximo ponto era o nosso. Dei o sinal de parada. Na verdade apenas puxei
aquela porra de fio. O ónibus parou. Peguei a mão de Lisa, passei meu braço
pela sua cintura e ajudei-a a descer. Através da porta ainda aberta o motorista
me olhou e disse:
— Boa sorte cara. Vai precisar dela.
— Vá se foder, você está com inveja! — respondi.
Ele riu, fechou a porta e sumiu com o ónibus na escuridão da noite. Eu gostei dele, parecia ser um cara comum, apenas estava dirigindo aquela merda de lata velha tentando mudar a sorte. Simplesmente não dava, e algum dia iria desistir de tudo, assim como eu também.
Lisa aparentava estar cada vez mais bêbada, e eu também não
estava nada bem. Eu lhe ajudava a andar com um dos meus braços em volta de sua
cintura, e o outro segurando seu braço direito ao redor de meu pescoço. Suas
lindas pernas estavam desistindo e se entregando.
— Você não tem uma porra de carro?
— Não.
— Você é um cuzão.
— Sim.
Aos poucos chegávamos perto de meu apartamento.
— Tem alguma coisa para beber lá em cima? Se não tiver eu
não vou entrar nesse lugar.
— Muitas garrafas de vinho... as melhores.
— Estou doente — disse ela, e se inclinou para a esquerda.
Eu estava tão bêbado que não consegui segurá-la. Caímos. A sorte foi que havia
uma cerca do nosso lado, despencamos em cima dela. Caí na folhagem, rolei para
trás e acabei deitado de costas na calçada. Levantei e olhei para baixo. Lá
estava Lisa, deitada ao luar; metade de seu corpo na cerca e a outra metade na
calçada. Sua saia estava levantada expondo as pernas mais lindas do planeta. As
pernas brilhavam pra mim. Fiquei pasmo como que se não acreditando no que via.
Quase gozei. No entanto, logo voltei à realidade.
— Lisa! — eu disse —Lisa, por favor levanta, acorda!
— Annh?
— A polícia vem vindo.
Consegui levantá-la e chegar à porta da frente do prédio. Fomos directamente
para o elevador que já estava lá. Entramos. Enquanto a segurava, apertei o
botão do meu andar. O troço fez um barulho e começou a subir.
— Sinto falta de meu filho. Quero meu bebé.
— É lógico que quer, — retorqui.
Tirei-a de lá e quando abri a porta do apartamento ambos caímos de novo.
Lisa se levantou, deu uma sacudida, arrumou sua saia, apanhou a bolsa e atravessou
a sala para sentar numa cadeira.
Começou a fuçar ali dentro, digo, da bolsa, à procura de seus cigarros. De lá
de fora, o néon mais vermelho de Los Angeles penetrava pela janela.
Abri uma garrafa de vinho para ela e a servi; ao som
discreto e sedutor do esfregar de nylon, ela cruzou as pernas.
Na poltrona à sua frente, eu tinha outra garrafa. Já havia enchido meu copo.
Esvaziei-o e tornei a enchê-lo.
Lisa olhou pra mim. Seus olhos foram ficando cada vez maiores. Parecia estar
ficando doida, maluca. Então disse:
— Você pensa que é grande merda? Você pensa que é o
Sr. Van Bilderass?
Eu já estava de roupa íntima, cueca manchada e rasgada como
sempre. Levantei. Dei um pulo e bati nas minhas coxas.
— Ei, você pensa que tem boas pernas? Olhe para estas.
Voltei para a poltrona e bebi mais meio copo. Ela
simplesmente continuou olhando para mim daquela maneira. Seus olhos iam ficando
maiores e maiores. Imensos.
— Você pensa que é o Sr. Van Bilderass?
— Claro!
Ela se inclinou para pegar a garrafa de vinho, que já havia
tampado e, enquanto me olhava com seus imensos olhos selvagens, elevou a
garrafa até a cabeça. Aquela louca se preparava para atirar a porra da garrafa
em mim. Berrei:
— Espere aí!
Ela ficou imóvel com o braço erguido. Tentei pensar rápido. Eu disse:
— Se você quiser atirar essa filha-da-puta, você pode, mas
se você fizer isso é bom que me desmaie, caso contrário eu vou devolvê-la
arrancando sua cabeça.
Colocou a garrafa no chão com aquele olhar louco. Suspirei
aliviado. Fui até lá, destampei a garrafa, e enchi meu copo; depois fiz o mesmo
com o seu. Voltei para a minha poltrona e me sentei. Sentia-me estranhamente
bem.
— Agora quero que levante sua saia um pouco mais, sua puta.
Fiquei surpreso quando ela o fez. A saia estava agora duas
polegadas acima de seu joelho.
— Agora me dá mais uma polegada. Nada mais do que
isso.
Ela o fez.
Levantei-me e fiquei à sua frente. Cada curva e reentrância
de seu corpo era estupendo. Eu morria de tesão. Seus sapatos reluziam.
— Torça seu tornozelo. Erga a perna um pouco, meu bem.
Lisa obedeceu.
— Agora pare aí! — ela parou.
— Agora quero mais uma polegada, vamos!
Lisa levantou a sai mais um pouco.
— Aah!, assim, assim está bem!
Virei um bicho sedento, ajoelhei-me e acariciei suas pernas,
enfiei a mão por entre as coxas e desci até aos joelho. Ela me olhou
maliciosamente:
— Você é um estúpido fudido. Um maluco.
Peguei seu pé e beijei seu sapato de salto alto. Em seguida
fui subindo até ao tornozelo.
— Você não é um assassino, é? — ela perguntou.
— Uma de minhas amigas foi amarrada por um cara aos pés de
sua cama e o veado a esfaqueou. O cara ia retalhar ela todinha, mas ela gritou
tão alto que os “ratos” ouviram e a salvaram. Você não é...
— Cala a boca!
Levantei e coloquei o pau para fora. Cuspi na palma da mão e
comecei a massageá-lo.
— Você é uma puta fudida! — Eu disse.
Continuei a me esfregar com naturalidade. Não tinha nada a
perder.
— Outra polegada, mostre-me outra polegada!
Continuei esfregando.
— Mais, mostre-me mais, mais!
Era o segredo e o truque e a penetração. A amplitude dos
sentidos.
— Ahhh, meu Deus, consegui!
A substância branca e pastosa jorrou; era o alívio de anos
de frustração e solidão. À medida que eu expelia aquela gosma branca sobre suas
pernas de nylon, parecia sentir em cada gota a angústia dos excluídos, dos
esquecidos e do triste ser que eu era.
Ela berrou e deu um pulo.
— Seu porco! Seu porco fudido, idiota!
Lisa correu até o banheiro. Peguei a ponta de minha camisa e
me limpei com ela. Voltei para a poltrona, enchi um copo e acendi um cigarro.
As coisas pareciam ter algum sentido agora.
Lisa voltou do banheiro, sentou-se e se serviu de um copo. Acendeu um cigarro,
e deu um trago profundo nele. Soltou a fumaça devagar. Sua voz sobressaiu-se
por detrás da nuvem branca.
— Seu pobre miserável fudido!
— Eu te amo, sua puta! — Eu disse.
Ela virou o rosto para a parede.
Mal eu sabia que era o começo dos dois anos mais miseráveis
e fortalecedores de minha vida.
— Esta é a única bebida que tem aí para oferecer? Este vinho
fudido e barato?
— Não é tão ruim assim, Lisa. O que eu faço quando bebo é
pensar em algo bem agradável como cachoeiras, ou uma conta bancária de
quinhentos dólares. Ou às vezes eu imagino que estou num castelo com um fosso
em volta. Ou ainda, finjo ser o dono de uma casa de bebidas finas.
— Você é louco, cara! — Ela disse.
E estava absolutamente certa.
Charles Bukowski
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