«Almas no Jardim»
Pintura de Jan Brueghel, o Velho
861- «ALMAS NO JARDIM»
Cercada por uma muralha de morros negros e tristes,
silenciosa e limpa, a pequena praça fica num bairro distante, no fim de uma rua
nova mas abandonada. Tem dois mesquinhos repuxos ao gosto municipal,
quatro tabuleiros ingleses de grama dum verde que o vento e o sol fustigam e
queimam, e vários ficos, ostentando, tesos, figuras recortadas por tesouras de
reduzida originalidade. Tem duas pérgulas também, duas ridículas pérgulas
de madeira pintada de branco, onde umas trepadeiras, que se abrem em agressivos
cachos solferinos, se enroscam mais ou menos raquiticamente. Sob cada pérgula,
um banco. Não são incômodos, mas que fossem! não há bancos incômodos para
os casais de namorados.
Nessa pequena praça, ouvindo a música medíocre dos repuxos ,
ora numa, ora noutra pérgula, diariamente, ao cair da tarde, eu me encontro com
ela, com ela que é branca como uma açucena, que é mansa como uma sombra, que é
doce como um favo, com ela cuja voz é uma fonte cantando e cujo olhar traz para
mim o mesmo mistério do céu noturno.
Por esta hora, nesse bairro distante que o sol custa a
deixar e cujo vento é qualquer coisa de extraordinariamente notável, a pequena
praça é pouco frequentada. Raramente crianças vêm brincar nas retas
ruazinhas de fino saibro, entre os quatro canteiros urbanos, em volta dos
repuxos. Para um casal apaixonado é uma solidão propícia, uma amável
solidão. Lá estamos todas as tardes, eu e ela, tecendo o delicado tecido
das esperanças, frágil teia que não resiste ao menos sopro contrário.
– Você gosta de mim?
– Adoro!
– Se eu morresse…
– Bobo!
– Então eu não posso morrer?
– Não!
Sacudo os ombros:
– Pois morrerei. Morrerás. Morreremos.
Ela — que tem medo da morte! — treme:
– Não tem mais nada para dizer, não?
Tenho. Tenho um mundo de coisas doces e ternas, ó
miragens, ó sonhos, ó devaneios! E tenho um mundo de coisas graves
também. Coisas graves e sérias, mas que jamais sairão, jamais
confessarei, ficarão para sempre dentro do meu peito inquieto, turbilhonantes, confusas
— oh, extremamente dolorosamente confusas e opressoras! — porque tudo
crestariam, pior que o vento da pequena praça, como um vento de fogo.
E ela talvez adivinhe as minhas coisas graves e
sérias. Põe em mim os olhos cheios de amor:
– Amo-te com todos os mistérios da tua vida.
E é melhor assim.
– Cai frequentes vezes, ela, num contemplativo
mutismo, o queixo apoiado na mão e o braço apoiado no meu ombro.
– Em que está pensando? — pergunto.
– Em você.
– Ora!… Fala.
– Gosto mais de te ouvir.
Abre o amável sorriso de claros dentes, responde numa
moleza:
– Adoro!…
E o amor é isto: se está triste, amo sua tristeza, se está
alegre, amo a sua alegria; e há palavras que parecem sem sentido, mas que caem
fundo no coração; e há silêncios que valem por todas as palavras; e ora é um
sorriso que nos leva para o céu, ora é um baixar de olhos que nos traz o céu
com mil estrelas.
Além de nós, uma vez por outra, um outro casal ocupa a
pérgula fronteira. Olham para nós, sorriem, compreendendo, e como nós desenrolam
a eterna história dos corações. Mas são casais intermitentes.
Constantes, constantes como o vento, somos nós. Nós, os pardais e Liró.
Os pardais são inumeráveis — ciscam, chilreiam, voam,
brigam, amam… O guarda é um polícia municipal que deve andar pelos
quarenta anos, mas a quem se pode dar muito mais. Tem o porte muito pouco
marcial (o pagamento anda sempre atrasado) e o andar de quem já não tem mais
pernas. Com o seu cinzento capacete colonial, escondendo um rosto
avermelhado, gretado e melancólico, faz olho morto e complacente aos nossos
beijos, aos nossos abraços demasiados. Já que o vento não consente na
primavera dos canteiros, que ao menos nos nossos corações — deve pensar ele —
haja flores e outras manifestações primaveris. Atira pedrinhas aos
esquivos peixinhos vermelhos no tanque, peixinhos japoneses cuja cauda tem a
transparência das medusas, fica horas e horas numa contemplação, não sei se
estúpida ou poética, dos repuxos que não se cansam na sua música monótona,
medíocre, inútil. Com uma continência conivente e frouxa, cumprimenta-nos
quando chegamos às quatro e quando saímos às sete, mais ou menos, hora em que a
pequena praça começa a sofrer a noturna invasão dos namorados do bairro.
Liró é o contraste do guarda. Liró é alegre.
Liró é brincalhão. Liró é saltitante. Mal apontamos, ele
corre ao nosso encontro com os olhos transbordantes de simpatia. Quando
partimos, nos leva religiosamente até a esquina mais próxima. Liró,
sabemos, é realmente nosso amigo. Tem o fraco difícil das verdadeiras e
desinteressadas amizades.
– Hoje não vimos Liró ( o nome foi posto por nós no primeiro
dia que viemos à pequena praça). Perguntamos ao guarda por ele. Com
voz surda, voz gasta, voz sem dentes, respondeu que não sabia. Sumira desde
a véspera., pouco depois de nos termos ido embora.
Ficamos tristes, inquietos (os pardais chilreavam
insensíveis). Se tiver sido apanhado pela carrocinha, combinamos, irei
resgatá-lo no depósito público. Se tiver sido vítima de um automóvel — e ela ficou
com os olhos húmidos — não voltaremos à pequena praça. Porque Liró é a
vida da pequena praça, convence-mo-nos. Toda a vida.
Marques Rebelo
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