«A Gota de Água»
Conto de Hans Christian Andersen
843- «A GOTA DE ÁGUA»
Tu conheces, com certeza, uma lupa de aumentar, assim como
uma lente redonda de óculos que torna tudo cem vezes maior do que é? Quando se
pega nela e se a põe diante da vista e se observa uma gota de água do lago,
vêem-se milhares de animais estranhos, como nunca se vêm na água, mas estão lá
e isso é real. Parece quase como um prato cheio de camarões. Saltam uns entre
os outros e são vorazes, arrancam braços e pernas, pontas e bicos uns aos
outros e assim estão alegres e contentes, à sua maneira.
Pois era uma vez um velho homem a quem toda a gente conhecia
como Comichão-Coceira, porque era assim que se chamava. Queria sempre tirar o
maior proveito de qualquer coisa, e quando não o conseguia, obtinha-o por
feitiço.
Estava um dia sentado, segurando a sua lupa de aumentar
diante dos olhos, a observar uma gota de água que fora tirada de uma valeta.
Oh! Que comichões e coceiras aí havia! Todos os milhares de animaizinhos
pulavam e saltavam, puxavam uns pelos outros e comiam-se uns aos outros.
– Mas isto é horrível! – disse o velho Comichão-Coceira. –
Não se consegue levá-los a viverem em paz e sossego e deixar a cada um o que é
seu! – E pensou, e pensou, mas não dava resultado, e assim teve de fazer um
feitiço. – Tenho de lhes dar cor para que se tornem mais distinguíveis! – disse
ele. Então, verteu como que uma gota de vinho tinto na gota de água, mas que
era sangue de bruxa, do mais fino, a dois xelins. E assim se tornaram todos os
estranhos animais, rosados em todo o corpo. Parecia uma cidade de selvagens
nus.
– Que tens tu aí? – perguntou um outro feiticeiro velho que
não tinha nome, e era isso que o tornava fino.
Se conseguires adivinhar o quê – disse o Comichão-Coceira –,
dar-to-ei de presente. Mas não é fácil de descobrir, quando não se sabe.
E o feiticeiro que não tinha nome olhou através da lupa de
aumentar. Parecia, verdadeiramente, como se fosse toda uma cidade, onde os
homens andavam sem roupa! Era horrível mas ainda mais horrível, era ver como
cada um empurrava e impelia o outro, como se beliscavam e se agarravam, se
mordiam uns aos outros e se arrastavam uns aos outros. O que estava por baixo
de tudo tinha de ir para cima de tudo e o que estava acima de tudo tinha de ir
para baixo de tudo! Vede! Vede! A perna dele é maior do que a minha! Baf! Fora
com ela! Está ali um que tem uma borbulhinha por detrás da orelha, uma
borbulhinha inocente, mas tortura-o e assim a borbulha vai atormentá-lo mais! E
cortaram nele e arrastaram-no e comeram-no por causa da borbulhinha. Está ali
um, sentado tão sossegado, como uma donzela, e que só desejava paz e
tranquilidade, mas a donzela teve de vir cá para fora e puxaram por ela e rasgaram-na
e comeram-na!
– É extraordinariamente divertido! – disse o feiticeiro.
– Sim, mas que pensas tu que é? – perguntou o Comichão-
-Coceira. – És capaz de descobrir?
– É bem de ver! – disse o outro. – É com certeza Copenhaga
ou outra grande cidade, são parecidas todas umas com as outras. É uma grande
cidade!
– É água do charco! – respondeu o Comichão-Coceira.
Hans Christian Andersen
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