«A Maçã»
As Três Graças/ Raphael Sanzio
852- «A MAÇû
- Preciso desfazer-me dela! – falou, rompendo bruscamente o
silêncio, o homem que estava sentado a um canto do compartimento.
Não tendo ouvido bem, Hinchcliff levantou a cabeça. Até
então tinha estado absorto a contemplar sua borla de estudante, atada com um
cordão às calças da maleta de viagem, como um sinal exterior e visível da sua
posição pedagógica recém-adquirida; deixara-se ficar imerso no deslumbramento
que lhe causavam aquela borla e as agradáveis perspectivas que ela lhe
desvendava, Hinchcliff acabara de matricular-se na Universidade de Londres e ia
ocupar um lugar de segundo assistente no Colégio de Holmwood, situação essa
bastante invejável. Fitou, intrigado, o seu companheiro de viagem.
- Por que não me desfazer dela? – repetiu o desconhecido. –
dá-la!... Por que não?
Era um homem alto, moreno, de tez queimada pelo sol, o rosto
pálido. Conservava os braços estreitamente cruzados sobre o peito e apoiava os
pés em um pequeno banco à sua frente. Alisava o bigode negro, enquanto olhava
fixamente para os bicos dos sapatos.
- Porque não? – tornou a dizer.
Hinchcliff tossiu.
O desconhecido ergueu os olhos – uns olhos de cor cinzenta
escura, penetrantes – e durante coisa de um minuto fitou Hinchcliff como se não
o visse. Depois seu rosto pareceu assumir uma expressão de interesse.
- Sim, - disse lentamente, - por que não? E acabar de uma
vez com isto?
- Penso que não o estou compreendendo muito bem – disse
Hinchcliff, tossindo novamente.
- O senhor não está me compreendendo? – perguntou,
maquinalmente, o desconhecido, enquanto seus olhos iam de Hinchcliff para a
maleta, onde se ostentava a borla acadêmica, e voltavam a examinar o rosto
penugento de Hinchcliff.
- O senhor falou um pouco de repente – disse Hinchcliff , à
guisa de desculpa.
- E não haveria de falar? – replicou o desconhecido, como a
seguir o curso de seus pensamentos. – O senhor é estudante, não?
- Sou estudante por correspondência da Universidade de
Londres – respondeu Hinchcliff com indisfarçado orgulho e levando nervosamente
a mão à gravata.
- Anda em busca do saber – falou o desconhecido. E com um
rápido movimento tirou os pés de cima do banco, pôs a mão sobre os joelhos e
fitou Hinchcliff como se nunca em sua vida tivesse visto um estudante. – Anda,
sim! – e apontou para ele com o dedo em riste.
Depois levantou-se, tirou do porta-bagagem a sua maleta e
abriu-a. Sem dizer uma palavra, apanhou lá dentro um objeto de forma
arredondada, envolvida em grande quantidade de papel prateado, que desdobrou
cuidadosamente. Estendeu o objeto a Hinchcliff: era um pequena fruta de cor
dourada, muito macia ao tato.
Hinchcliff permaneceu um instante boquiaberto, os olhos
arregalados. Não fez nenhum gesto para pegar no objeto – se é que lhe estava
sendo oferecido.
- Isto aqui – disse o desconhecido, articulando lentamente
as palavras – é a Maçã da Árvore da Ciência do Bem de do Mal. Olhe para ela:
pequenina, brilhante, maravilhosa... A Ciência do Bem e do Mal!... E vou lhe
dar.
Hinchcliff teve um minuto de penoso esforço mental, depois
lhe ocorreu a explicação evidente, que esclarecia toda a situação: estava
diante de um louco – um louco de temperamento galhofeiro. Inclinou a cabeça,
num gesto de condescendência.
- A Maçã da Árvore da Ciência do Bem e do Mal, hein? – falou
Hinchcliff, olhando para a fruta e simulando um profundo interesse: tornou a
encarar o seu interlocutor. – Mas por que não a come o senhor mesmo? E, além
disso, como é que ela veio ter às suas mãos?
- Nunca se estraga! Há três meses que a possuo e está sempre
brilhante, lisa, madura e apetitosa, como a vê agora.
Pôs de novo a mão sobre o joelho e contemplou a maçã com ar
sonhador, depois começou a embrulhá-la de novo no papel prateado, como se
tivesse abandonado a idéia de oferecê-la.
- Mas como foi que a arranjou? – insistiu Hinchcliff, que
tinha seu lado polêmico. – E como sabe que é o fruto da Árvore?
- Recebi este fruto – disse o desconhecido – há três meses,
em troca de um gole d’água e de uma côdea de pão. O homem de quem o ganhei, por
lhe ter salvo a vida, era um armênio. A Armênia! Aquele país de maravilhas, o
primeiro de todos os países, onde a Arca de Noé permanece até o dia de hoje,
sepultada nas geleiras do monte Arará! Aquele homem, como lhe dizia, ao fugir
com outros diante dos curdos, que haviam caído sobre eles, foi ter a lugares
desertos no alto das montanhas, lugares que ninguém na terra conhece. Fugindo
diante de seus perseguidores, chegaram a uma encosta entre os picos das
montanhas. Crescia ali uma erva verde, cujas hastes eram como lâminas que
cortavam e dilaceravam impiedosamente todos aqueles que se aventuravam a
atravessá-las. Os curdos iam-lhes no calcanhar e não lhes restava outra
esperança de salvação a não ser embrenharem-se naquele ervaçal. E o pior foi
que os atalhos que eles abriram à custa do próprio sangue serviram aos curdos
para os seguirem. Todos os fugitivos foram mortos, exceto aquele armênio e um
outro. Ele ouviu os gritos e gemidos dos companheiros e o farfalhar das ervas
em volta daqueles que os perseguiam, pois essas ervas eram da altura de um homem.
Ouviu então um brado e respostas e, quando ele enfim parou de correr, tudo
estava em silêncio. Continuou em frente, sem nada compreender, com o corpo
dilacerado e sangrando, até que chegou a uma escarpa que dava para um
precipício. Dali pôde ver, atrás de si, o ervaçal incendiado e a fumaça
erguendo-se com um véu entre ele e os inimigos.
O desconhecido calou-se por um instante.
- Bem, e depois? – quis saber Hinchcliff.
- Lá estava ele, pois, o corpo todo rasgado pelas ervas
cortantes. Os rochedos escaldavam ao sol da tarde – o céu como latão fundido –
e a fumaça do incêndio caminhando para ele. Não ousou permanecer ali. A morte
não o atemorizava; mas a tortura! Ao longe, para lá da fumaça, ouviu gritos e
súplicas. Eram as vozes das mulheres. Então ele começou a subir por uma
garganta nos penhascos, por entre moitas de arbustos cujos ramos secos o
espetavam como espinhos, até chegar ao topo da rocha, onde se ocultou.
Encontrou ali o companheiro, um pastor, que também havia escapado. Como o frio,
a fome e a sede eram nada em comparação com os curdos, ambos continuaram a
escalada em meio à neve e ao gelo. Assim erraram durante três dias.
“No terceiro, tiveram uma visão. Sei que é comum as
pessoas famintas terem visões, mas no caso que lhe estou contando temos esta
fruta aqui. – E mostrou na mão a fruta envolta em papel prateado. – Ouvi também
esta narração da boca de outros montanheses, que conheciam algo da lenda.
“Súbito, o vale iluminou-se ao longe, muitas milhas ao
longe, com uma chama dourada que vinha se aproximando pouco a pouco, fazendo as
árvores parecerem negras como a noite, e envolvendo as encostas e suas próprias
figuras num resplendor de ouro. Perante essa visão, os dois homens, que
conheciam as lendas das montanhas, adquiriram a certeza de que estavam diante
do Éden, ou da sentinela do Éden, e prostraram-se com o rosto no chão, como
fulminados de morte.
Quando ousaram levantar os olhos, o vale estava de novo na
escuridão; logo a claridade reapareceu, e era como âmbar ardente.
“O pastor pôs-se de pé e, soltando um grande grito, deitou a
correr para a luz, mas o outro estava assombrado demais para segui-lo.
Deixou-se ficar, aturdido, estupefato, aterrorizado, vendo o companheiro
atirar-se na direção daquele clarão que avançava. Mal porém o pastor dera os
primeiros passos, ouviu-se um estrondo como de trovão, e um bater de asas
invisíveis por sobre o vale – e desceu um grande e terrível medo; o homem que
me deu esta fruta se voltou, para ver se ainda podia fugir. Tornou a subir a
encosta o mais depressa possível, sentindo aquele tumulto atrás de si e, ao se
chocar com uma daquelas árvores enfezadas, uma fruta madura caiu-lhe na mão.
Esta fruta. Imediatamente desabou sobre ele o rumor de asas e de trovões. Rolou
por terra e desmaiou. Quando voltou a si, achava-se entre as ruínas enegrecidas
de sua aldeia, onde eu e alguns outros socorríamos os feridos. Fora uma visão?
Mas ele ainda apertava na mão o fruto dourado da árvore. Havia ali outras
pessoas que conheciam a lenda, e que sabiam que fruto podia ser esse.
Fez uma pausa.
- Ei-lo aqui.
Era sem dúvida uma história extraordinária para se contada
num vagão de terceira classe da linha de Sussex. Era como se o real fosse
apenas um véu do fantástico, e aqui o fantástico transbordava.
- É ele mesmo? – foi tudo quanto Hinchcliff pôde murmurar.
- Conta a lenda – prosseguiu o desconhecido – que aquelas
árvores raquíticas que crescem ao redor de um jardim provêm da maçã que Adão
segurava quando ele e Eva foram expulsos do paraíso. Sentiu qualquer coisa na
mão, viu que era a maçã meio comida e, enraivecido, atirou-a longe. Desde então
crescem ali aquelas árvores no meio do vale inóspito, rodeado de neves eternas,
e a cuja entrada as espadas de fogo montam guarda até o Dia do Juízo.
- Eu julgava que todas essas histórias... – Hinchcliff fez
uma pausa hesitante – eram apenas fábulas... vamos dizer, parábolas. Então o
senhor quer dizer que na Armênia...
Em resposta à pergunta inconclusa, o desconhecido exibiu o
fruto na mão espalmada.
- Mas o senhor não tem certeza alguma – disse Hinchcliff –
de que este seja o Fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Pode ser que o
homem tivesse visto, digamos, uma espécie de miragem. Vamos supor...
- Olhe para ela, pediu o desconhecido.
Era, sem dúvida, um globo de aspecto estranho, não
exatamente uma maçã, como Hinchcliff bem podia notar, e tinha uma curiosa cor
dourada e brilhante, quase como se a luz fizesse parte de sua substância.
Enquanto a contemplava, começou a ver de maneira mais vívida o vale isolado
entre as montanhas, as espadas de fogo dos guardiões do jardim, de envolta com
as estranhas imagens da Antiguidade que a história lhe suscitava.
Esfregou os olhos com o nó dos dedos.
- No entanto...
- Ela permanece como a recebi há três meses, talvez até
alguns dias mais, lisa e fresca. Sem secar, sem murchar, sem apodrecer.
- Mas o senhor mesmo – disse Hinchcliff – acredita realmente
que...
- É o Fruto Proibido.
Não podia haver dúvida quanto à seriedade nem quanto à
perfeita sanidade mental do homem.
- O Fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal – repetiu
ele.
- Admitamos que seja – disse Hinchcliff, após uma pausa e
sem tirar os olhos da fruta. – Afinal de contas, esse não é o meu gênero de
ciência, a espécie de conhecimento que me interessa. Quero dizer Adão e Eva já
o comeram.
- Nós herdamos o pecado, não a ciência – replicou o
desconhecido. – Comendo-o, tudo voltaria a ser claro e brilhante. Veríamos o
âmago de todas as coisas, através de todas as coisas, até o mais profundo de
todas as coisas.
- Então porque não a come? – indagou Hinchcliff, numa súbita
inspiração.
- Foi com essa intenção que fiquei com ele. O homem já caiu
em tentação uma vez. Simplesmente comê-lo de novo mal poderia...
- Saber é poder! – falou Hinchcliff.
- Mas será a felicidade? Sou mais velho que o senhor, tenho
mais do dobro de sua idade. Muitas e muitas vezes tenho estado com este fruto
nas mãos, e todas as vezes me faltou coragem, ao pensar em tudo quanto se
poderia saber, naquela terrível lucidez... Suponhamos que de repente o mundo
inteiro se lhe tornasse implacavelmente claro.
- Creio que isso – declarou Hinchcliff – constituiria, de
modo geral, uma grande vantagem.
- Suponhamos que pudesse ler no coração e na mente daqueles
que o rodeiam, até o mais recôndito de suas almas... de pessoas a quem o senhor
ama e a cuja estima dá grande valor.
- Logo descobriria os embustes – disse Hinchcliff,
visivelmente chocado com a idéia.
- E o que é pior, conhecer-se a si mesmo, despido das mais
íntimas ilusões. Olhar para si mesmo com os olhos de ouro. Tudo que os desejos
e as fraquezas o impediram de fazer. Ver-se friamente, sem misericórdia.
- Mas isso, também, seria uma coisa excelente. “Conhecer-te
a ti mesmo”, não é?
- O senhor ainda é jovem – disse o desconhecido.
- Se não pensa em comer a maçã e se ela o incomoda, por que
simplesmente não a joga fora?
- Acho que também neste ponto o senhor não me compreende.
Para mim seria inconcebível jogar fora uma coisa como esta, esplêndida,
maravilhosa. Quem a possui fica preso a ela. Mas, por outro lado, poderia dá-la.
Dá-la a alguém que tenha sede de saber, que não sinta nenhum temor ante a idéia
de uma percepção clara...
- É preciso lembrar – refletiu Hinchcliff - que
poderia tratar-se de uma fruta venenosa.
Nesse momento o seu olhar captou, pela janela, algo imóvel –
a extremidade de uma grande tabuleta branca com letras pretas: ...MWOOD. Pôs-se
de pé num salto, muito aflito.
- Valha-me Deus! Holmwood! – exclamou, e a realidade
palpável imediatamente dissipou as fantasias que sua imaginação começava a
tecer.
Num ápice, estava abrindo a portinhola do carro, a maleta na
mão. Já o guarda-freios agitava a bandeira verde. Hinchcliff saltou.
- Tome! – gritou uma voz atrás dele. Voltou-se e viu os
olhos negros e brilhantes do desconhecido, a fruta dourada na mão estendida
através da portinhola. Hinchcliff apanhou-a instintivamente, quando o trem já
se punha em movimento.
- Não!
Era o desconhecido que gritava, fazendo um gesto como para
reaver a fruta.
- Cuidado! – bradou um empregado da estação precipitando-se
para fechar a portinhola.
O desconhecido, com a cabeça e o braço para fora da janela,
gritava excitadamente qualquer coisa para Hinchcliff, que não entendeu. Depois,
a sombra da ponte encobriu-o e um minuto depois havia desaparecido. Atônito,
com a fruta maravilhosa na mão, Hinchcliff viu o último vagão sumir na curva.
Durante alguns segundos ainda, permaneceu naquele estado de confusão. Depois
reparou que duas ou três pessoas na plataforma o observavam com interesse. Não
era ele o novo professor do Colégio de Holmwood, que ia estrear nas suas
funções? Ocorreu-lhe que aquelas pessoas podiam supor que ele, ingenuamente,
queria refrescar-se chupando uma laranja. Ruborizou-se e escondeu a fruta no
bolso do paletó, onde ela ficou fazendo uma saliência indiscreta. Mas não havia
outro remédio e ele se dirigiu para as pessoas que o observavam, tentando
embalde dissimular o seu embaraço, e indagou onde ficava o Colégio e a maneira
como podia transportar para lá sua maleta e as duas caixas de metal que estavam
na plataforma. – “Que gente imaginosa, capaz de inventar as histórias mais
fantásticas!”
Foi informado de que a bagagem podia ser levada num carrinho
de mão, por meio xelim, e que ele próprio podia ir à frente, a pé. Pareceu-lhe
haver uma nota de ironia na voz do seu informante. Devia estar causando uma
impressão bem pouco lisonjeira.
A curiosa seriedade do seu companheiro de viagem e o
fascínio de sua história haviam, por um momento, desviado o curso dos
pensamentos de Hinchcliff, interpondo como que uma névoa que o fizera esquecer
suas preocupações imediatas. Chamas que corriam de um alado para o outro...
Voltou a concentrar suas idéias sobre as novas funções que assumira e sobre a
impressão que deveria causar a Holmwood em geral e ao Colégio em particular.
Antes de deixar a estação, sua mente já estava de novo serena.
Mas é extraordinário como uma fruta de um dourado brilhante,
com apenas oito centímetros de diâmetro, pode prejudicar a boa aparência de um
rapaz circunspecto. Dentro do bolso do casaco preto ela fazia uma protuberância
que lhe estragava completamente a linha. Cruzou com uma velhinha miúda, toda de
preto, cujo olhar caiu imediatamente sobre aquela excrescência no seu bolso.
Como tivesse uma das mãos enluvada e levasse na outra a bengala, não havia como
segurar a fruta. Em determinado trecho do caminho, propiciamente deserto,
tirou-a do bolso e tentou metê-la no chapéu. Mas era grande demais, o chapéu
ficou dançando de um modo grotesco; quando ia tirá-la, dobrou a esquina um
empregado do açougue em seu veículo.
- Com todos os diabos! – exclamou Hinchcliff.
Podia comê-la sem mais delongas e entrar na posse da
onisciência. Mas certamente o tomariam por um néscio se entrasse na cidade
comendo uma fruta a escorrer suco – pois tudo indicava que era uma fruta
sumarenta. Se acontecesse passar um dos alunos, poderia ir por água abaixo a
disciplina que lhe caberia impor. O suco poderia também sujar-lhe o rosto e
manchar-lhe os punhos. Ou talvez fosse ácido como o do limão e, caindo na
roupa, a desbotasse.
Numa volta do caminho, divisou duas bonitas moças,
iluminadas pelo sol. Caminhavam devagar, tagarelando, na direção da cidade; a
qualquer momento poderiam olhar para trás e ver um rapaz de rosto afogueado
levando na mão uma espécie de tomate amarelo e fosforescente. Certamente
desatariam a rir.
- Para o diabo que o carregue! – e Hinchcliff, com gesto
rápido, atirou aquele fruto incômodo por cima do muro de pedra de um pomar que
margeava a estrada. Quando o viu desaparecer, sentiu um leve arrependimento,
que não durou mais que alguns segundos. Logo tornou a segurar a luva e a
bengala com a maior elegância e, a passos firmes, muito empertigado e senhor de
si, ultrapassou as duas jovens.
Porém naquela mesma noite, tarde da noite, Hinchcliff teve
um sonho. Viu o vale e as espadas flamejantes, as árvores raquíticas e
retorcidas, e soube que aquele fruto que ele levianamente jogara fora era
realmente da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Acordou muito deprimido.
No correr da manhã, a penosa sensação foi desaparecendo,
porém mais tarde o arrependimento veio de novo atormentá-lo. Contudo, o fato
não lhe vinha à mente quando ele estava bem ou mergulhado em suas ocupações.
Por fim, numa noite de lua, por volta das onze horas, quando
toda Holmwood estava adormecida, os remorsos acordaram dentro dele com
redobrada intensidade e o impeliram à aventura. Saiu do colégio às
escondidas, galgou o muro do pátio de recreio e, atravessando a cidade
silenciosamente, chegou ao caminho da estação, e pulou para dentro do pomar
aonde havia atirado a fruta. Mas nada encontrou por entre a erva molhada e os
frágeis e intangíveis glóbulos dos dentes-de-leão.
H. G. Wells
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