quinta-feira, 13 de outubro de 2016

OUTROS CONTOS

13 de Outubro de 2016, morre o escritor, dramaturgo e comediante italiano, Prémio Nobel da Literatura em 1997, Dario Fo.

«Cabeças Trocadas», por Dario Fo.

«Cabeças Trocadas»
Judite com a cabeça de Holofernes
(Lucas Cranach, o Velho)

897- «CABEÇAS TROCADAS»

Numa fábula satírica da Idade Média conta-se a história de uma jovem mulher casada com um rico mercador que se encontra, por motivos de negócios, longe de casa há mais de um ano, em Jassafath, no Oriente Médio. A mulher, que sofre com essa distância, implora ao marido que lhe permita ir encontrá-lo. A jovem, depois de alguns dias de viagem num navio, desembarca em Jassafath e abraça o marido, que a conduz a uma casa luxuosa; almoçam, ela tem mil coisas para lhe contar, pergunta-lhe sobre sua vida e seus negócios. Mas o marido, que parece não estar bem, não diz nem ouve nada. Por fim, os dois se deitam.

A jovem gostaria de exprimir sua alegria com abraços e jogos amorosos, mas o homem, mal acabou de se deitar, já dorme feito uma pedra. Desiludida e bastante contrariada, a jovem se levanta com as primeiras luzes da manhã, sai do palácio e passeia sem rumo pelo bairro. Topa com um mercado magnífico, onde se vende de tudo: macacos amestrados, colares de ouro, serpentes, pássaros que cantam e falam. Mas sua curiosidade é atraída por uma banca onde estão expostos, dentro de gaiolas de diversos tamanhos, órgãos humanos vivos e pulsantes. Numa gaiolinha há inclusive um falo juvenil que dança sobre os próprios testículos.

"Desculpe-me", pergunta a jovem, perturbada, ao mercador, "estou enganada ou esse estranho animal tem o ar de ser um aparato viril?". "Senhora", responde o mercador com um sorriso cativante, "garanto que este animal não só possui o ar do aparato em questão, mas também a substância!". "Ah, sim? E está à venda?" "Certamente, e a um bom preço, mesmo sendo novo em folha." "Mas para que serve?" "Pode ser aplicado no próprio amante ou marido, depois de extirpado o membro defeituoso."

A mulher perde o fôlego, enquanto o vendedor lhe indica outras mercadorias: "Aqui temos uma colecção de cabeças verdadeiramente excepcionais -observe esta, senhora. Parece a cabeça de um marajá, e veja como ele a observa... com que expressão apaixonada!". "Mas como se faz a substituição?" "O aparato e o crânio são extirpados com esta especial espada de cristal. O objecto a ser substituído não sentirá nenhuma dor: tirada a cabeça, tirado o falo, aplica-se a nova mercadoria. Cabeça e falo começam a funcionar imediatamente. A senhora só precisa estar atenta para não se confundir na hora da aplicação." "Vou levá-los!", grita a jovem cheia de entusiasmo. Negocia o preço, paga e volta para casa com as duas gaiolas. As duas aquisições se agitam, dançam, cantam e fazem festa para a sua nova senhora.

Chegando ao quarto de dormir, a jovem vê que o marido ainda está em pleno sono. Vibra a espada, a cabeça voa e ela rapidamente aplica sobre o pescoço a cara de marajá. E então... zap! Arranca fora o aparato e em seu lugar ajusta o falo saltitante sobre as esferas. O marido, redimensionado, acorda instantaneamente, sorri com malícia, enlaça a jovem e a possui com exagerada volúpia... diríamos: à maneira turca. Mas, no dia seguinte, o marido recém-montado sai de casa e volta com duas jovens esplêndidas: "Estou aqui, querida; estas são minhas novas mulheres. Vá para a cozinha preparar-nos o almoço". A jovem fica indignada e protesta, com toda a razão. O marido pega um bastão e a golpeia com violência, como se fosse um animal, insultando-a e humilhando-a diante das novas esposas. Por fim, atira-a para a cozinha e fecha a porta.

A jovem cai em prantos, volta ao mercador e conta-lhe sua desventura. O mercador a consola: "Nada está perdido, houve apenas um erro -que aliás pode ser facilmente reparado. Ao fazer a aplicação, a senhora deveria ter invertido a posição dos elementos a serem trocados". A jovem volta para casa. Já entra brandindo a espada de cristal. O marido está dormindo, prostrado entre as duas jovens. Zap, zap! Arranca a cabeça e o falo! Troca! O marido ressurge imediatamente com o falo e seus apêndices entre os ombros. A cabeça -com nariz, olhos, boca e orelhas -, grudada no lugar do sexo. "Oh, loucura falaz!" Mas tudo funciona à perfeição. O marido logo se mostra gentil e condescendente: cheio de atenções para com as boas regras da sociedade, com o sentido da família, respeitoso com os costumes e a autoridade. Tiveram muitos filhos e viveram felizes, contentes e reverenciados.

Com certeza, todos terão entendido prontamente a moral sarcástica desta fábula: a derrisão da lógica normal e o consequente aplauso, quase obsceno, da inversão da norma. Mas o que mais espanta nessa fábula é a incrível actualidade do tema desenvolvido, sua modernidade. Aqui já se debate o hiperfantástico das manipulações genéticas, bem como a moral e a ética da troca de órgãos. E até se ultrapassa o primeiro estádio genético -como, por exemplo, o recente projecto de criar porcos enxertados de células humanas, a fim de que os órgãos ali desenvolvidos possam ser posteriormente transplantados, sem perigo de rejeição, em corpos humanos.

Nesse conto medieval chega-se ao transplante directo e quase se alude à possibilidade de desfrute de um nosso duplo. E, sejamos sinceros, quem não vibra de alegria com a ideia de poder dispor de um clone pessoal, mantido numa geladeira, pronto para fornir eventuais transplantes sem perigo de rejeição? Mesmo que os cientistas, aptos a nos fornecerem irmãozinhos sem cérebro (não no sentido metafórico), nos causem uma grande ânsia (de vómito). Não se trata de um paradoxo cómico, nem de veio satírico, embora por ofício eu seja um autor de sátiras: diante desta hipótese, já oficial e endossada por ilustres pesquisadores, os grandes pensadores não têm dúvidas.

Vejam o que escreve o jurista (norte-americano, obviamente) John Robertson: "A ideia mesma de pôr no mundo um gémeo idêntico para que seja criado como um filho é uma terrível afronta, seja no plano psicológico ou social". Porém, logo em seguida, ele nos tranquiliza e apazigua as multinacionais que fizeram grandes investimentos nesse gémeo biotecnológico: "Basta", sugere o bioético norte-americano, "uma regulamentação que tutele os interesses do clone, assegurando-lhe um decoroso ambiente familiar e protegendo-o de qualquer abuso" -sobretudo abusos sexuais, diríamos nós, subtraindo rapidamente o clone ao pedófilo de família.

Já imaginaram? O irmãozinho sem cabeça, guardado no freezer, quem sabe no compartimento dos miúdos, protegido de quiproquós e erros técnicos (entre eles o risco de ir parar na panela), pronto a fornecer rins, fígado, pulmões, coração e aparatos esféricos para a reprodução (que me perdoem as senhoras). Afinal, esses seres semivivos, como assevera o rei das clonagens, o professor Lee Silver, um Frankenstein da Universidade Princeton, esses clones acéfalos são "seres carentes de qualquer vestígio de consciência", portanto "não-pessoas", tanto que seria perfeitamente legal mantê-los vivos como pura fonte de órgãos.

Além de ocuparem o freezer, os preciosos órgãos gémeos poderiam ser arrumados numa valise térmica e levados em viagem, como peças de reposição, socorrendo o turista em casos de enfarto, insuficiência renal ou outros acidentes de percurso. Você teve um enfarto no deserto mauritano? E agora? Pronto! É só abrir a valise térmica e zap! Troca! Só não vá se esquecer de ter sempre à mão o manual do bom manipulador genético.

Em suma, basta de tantos escrúpulos: a ciência avança, as biotecnologias franqueiam ao homem "magníficos e progressivos recursos". Se, para chegarmos a isso, for preciso manter o irmãozinho no freezer, dos males o menor: a civilização e o progresso exigem algum sacrifício. E nós vamos nos opor ao progresso? Queremos correr o risco de sermos tachados de obtuso obscurantismo genético? Não! E aqui declaramos oficialmente: somos fanáticos defensores do clone, da livre manipulação genética, do livre mercado de órgãos e da múltipla troca pela vida eterna... Amém!

Dario Fo

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