«Vestida de Preto»
Trabalho de Egon Schiele
894- «VESTIDA DE PRETO»
Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou
contar é conto ou não, sei que é verdade. Minha impressão é que tenho amado
sempre. Depois do amor grande por mim que brotou aos três anos e durou até os
cinco mais ou menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie de prima
longínqua que frequentava a nossa casa. Como se vê, jamais sofri do complexo de
Édipo, graças a Deus. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito bons amigos, sem
nada de amores perigosos.
Maria foi o meu primeiro amor. Não havia nada entre nós, está claro, ela como
eu nos seus cinco anos apenas, mas não sei que divina melancolia nos tomava, se
acaso nos achávamos juntos e sozinhos. A voz baixava de tom, e principalmente
as palavras é que se tornaram mais raras, muito simples. Uma ternura imensa,
firme e reconhecida, não exigindo nenhum gesto. Aquilo aliás durava pouco,
porque logo a criançada chegava. Mas tínhamos então uma raiva impensada dos
manos e dos primos, sempre exteriorizada em palavras ou modos de irritação.
Amor apenas sensível naquele instinto de estarmos sós.
E só mais tarde, já pelos nove ou dez anos, é que lhe dei nosso único beijo,
foi maravilhoso. Se a criançada estava toda junta naquela casa sem jardim da
Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia Velha evitava
correrias e estragos. Brinquedo aliás que nos interessava muito, apesar da
idade já avançada para ele. Mas é que na casa de Tia Velha tinha muitos
quartos, de forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles
cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e cada par fugia
logo, indo viver no seu quarto. Os melhores interesses infantis do brinquedo,
fazer comidinha, amamentar bonecas, pagar visitas, isso nós deixávamos com
generosidade apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e
ficávamos vivendo lá. O que os outros faziam, não sei. Eu, isto é, eu com
Maria, não fazíamos nada. Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com
ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não havia não,
mas sempre como que havia um perigo iminente que ajuntava o seu crime à
intimidade daquela solidão. Era suavíssimo e assustador.
Maria fez uns gestos, disse algumas palavras. Era o aniversário de alguém, não
lembro mais, o quarto em que estávamos fora convertido em dispensa, cômodas e
armários cheios de pratos de doces para o chá que vinha logo. Mas quem se
lembrasse de tocar naqueles doces, no geral secos, fáceis de disfarçar qualquer
roubo! estávamos longe disso. O que nos deliciava era mesmo a grave solidão.
Nisto os olhos de Maria caíram sobre o travesseiro sem fronha que estava sobre
uma cesta de roupa suja a um canto. E a minha esposa teve uma invenção que eu
também estava longe de não ter. Desde a entrada no quarto eu concentrara todos
os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como
um danado dentro de mim e virou crime. Crime não, "pecado" que é como
se dizia naqueles tempos cristãos... E por causa disso eu conseguira não pensar
até ali, no travesseiro.
— Já é tarde, vamos dormir — Maria falou.
Fiquei estarrecido, olhando com uns fabulosos olhos de imploração para o
travesseiro quentinho, mas quem disse travesseiro ter piedade de mim. Maria,
essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos do convite:
olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma
toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. Pôs o
travesseiro no lugar da cabeceira, cerrou as venezianas da janela sobre a
tarde, e depois deitou, arranjando o vestido pra não amassar.
Mas eu é que nunca havia de pôr a cabeça naquele restico de travesseiro que ela
deixou pra mim, me dando as costas. Restico sim, apesar do travesseiro ser grande.
Mas imaginem numa cabeleira explodindo, os famosos cabelos assustados de Maria,
citação obrigatória e orgulho de família. Tia Velha, muito ciumenta por causa
duma neta preferida que ela imaginava deusa, era a única a pôr defeito nos
cabelos de Maria.
— Você não vem dormir também? — ela perguntou com fragor, interrompendo o meu
silêncio trágico.
— Já vou — que eu disse — estou conferindo a conta do armazém.
Fui me aproximando incomparavelmente sem vontade, sentei no chão tomando
cuidado em sequer tocar no vestido, puxa! também o vestido dela estava
completamente assustado, que dificuldade! Pus a cara no travesseiro sem a menor
intenção de.
Mas os cabelos de Maria, assim era pior, tocavam de leve no meu nariz, eu podia
espirrar, marido não espirra. Senti, pressenti que espirrar seria muito
ridículo, havia de ser um espirrão enorme, os outros escutavam lá da
sala-de-visita longínqua, e daí é que o nosso segredo se desvendava todinho.
Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os cabelos (mas
juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada,
ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles
cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então
fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos, nem eram
lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou o
pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?... Me ajeitei muito
sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim!
só recordar... Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só
beijava mamães, boca fazendo bulha, contato sem nenhum calor sensual.
Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação pra trás me fez sentir
que Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais houve. Não, nada mais houve.
Durasse aquilo uma noite grande, nada mais haveria porque é engraçado como a
perfeição fixa a gente. O beijo me deixara completamente puro, sem minhas
curiosidades nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus escuridão! Se
fizera em meu cérebro uma enorme luz branca, meu ombro bem que doía no chão,
mas a luz era violentamente branca, proibindo pensar, imaginar, agir. Beijando.
Tia Velha, nunca eu gostei de Tia Velha, abriu a porta com um espanto
barulhento. Percebi muito bem, pelos olhos dela, que o que estávamos fazendo
era completamente feio.
— Levantem!... Vou contar pra sua mãe, Juca!
Mas eu, levantando com a lealdade mais cínica deste mundo!
— Tia Velha me dá um doce?
Tia Velha – eu sempre detestei Tia Velha, o tipo da bondade Berlitz, injusta,
sem método — pois Tia Velha teve a malvadeza de escorrer por mim todo um olhar
que só alguns anos mais tarde pude compreender inteiramente. Naquele instante,
eu estava só pensando em disfarçar, fingindo uma inocência que poucos segundos
antes era real.
— Vamos! saiam do quarto!
Fomos saindo muito mudos, numa bruta vergonha, acompanhados de Tia Velha e os
pratos que ela viera buscar para a mesa de chá.
O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força provocado por Tia
Velha, uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que indiferença,
frieza viva, quase antipatia. Nesse mesmo chá inda achou jeito de me maltratar
diante de todos, fiquei zonzo.
Dez, treze, catorze anos... Quinze anos. Foi então o insulto que julguei
definitivo. Eu estava fazendo um ginásio sem gosto, muito arrastado, cheio de
revoltas íntimas, detestava estudar. Só no desenho e nas composições de
português tirava as melhores notas. Vivia nisso: dez nestas matérias, um, zero
em todas as outras. E todos os anos era aquela já esperada fatalidade: uma,
duas bombas (principalmente em matemáticas) que eu tomava apenas o cuidado de
apagar nos exames de segunda época.
Gostar, eu continuava gostando muito de Maria, cada vez mais, conscientemente
agora. Mas tinha uma quase certeza que ela não podia gostar de mim, quem
gostava de mim!... Minha mãe... Sim, mamãe gostava de mim, mas naquele tempo eu
chegava a imaginar que era só por obrigação. Papai, esse foi sempre insuportável,
incapaz de uma carícia. Como incapaz de uma repreensão também. Nem mesmo
comigo, a tara da família, ele jamais ralhou. Mas isto é caso pra outro dia. O
certo é que, decidido em minha desesperada revolta contra o mundo que me
rodeava, sentindo um orgulho de mim que jamais buscava esclarecer, tão absurdo
o pressentia, o certo é que eu já principiava me aceitando por um caso perdido,
que não adiantava melhorar.
Esse ano até fora uma bomba só. Eu entrava da aula do professor particular,
quando enxerguei a saparia na varanda e Maria entre os demais. Passei bastante
encabulado, todos em férias, e os livros que eu trazia na mão me denunciando,
lembrando a bomba, me achincalhando em minha imperfeição de caso perdido.
Esbocei um gesto falsamente alegre de bom-dia, e fui no escritório pegado,
esconder os livros na escrivaninha de meu pai. Ia já voltar para o meio de
todos, mas Matilde, a peste, a implicante, a deusa estúpida que Tia Velha
perdia com suas preferências:
— Passou seu namorado, Maria.
— Não caso com bombeado — ela respondeu imediato, numa voz tão feia, mas tão
feia, que parei estarrecido. Era a decisão final, não tinha dúvida nenhuma.
Maria não gostava mais de mim. Bobo de assim parado, sem fazer um gesto, mal
podendo respirar.
Aliás um caso recente vinha se ajuntar ao insulto pra decidir de minha sorte.
Nós seríamos até pobretões, comparando com a família de Maria, gente que até
viajava na Europa. Pois pouco antes, os pais tinham feito um papel bem
indecente, se opondo ao casamento duma filha com um rapaz diz-que pobre mas
ótimo. Houvera um rompimento de amizade, mal-estar na parentagem toda, o caso
virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de jantar.
Tudo por causa do dinheiro.
Se eu insistisse em gostar de Maria, casar não casava mesmo, que a família dela
não havia de me querer. Me passou pela cabeça comprar um bilhete de loteria.
"Não caso com bombeado"... Fui abraçando os livros de mansinho,
acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa, suja de pó suado,
retirei a boca sem desgosto. Naquele instante eu não sabia, hoje sei: era o
segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o
cheiro desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois.
Não tive mais coragem pra voltar à varanda e conversar com... os outros. Estava
com uma raiva desprezadora de todos, principalmente de Matilde. Não, me parecia
que já não tinha raiva de ninguém, não valia a pena, nem de Matilde, o insulto
partira dela, fora por causa dela, mas eu não tinha raiva dela não, só
tristeza, só vazio, não sei... creio que uma vontade de ajoelhar. Ajoelhar sem
mais nada, ajoelhar ali junto da escrivaninha e ficar assim, ajoelhar. Afinal
das contas eu era um perdido mesmo, Maria tinha razão, tinha razão, tinha
razão, que tristeza!
Foi o fim? Agora é que vem o mais esquisito de tudo, ajuntando anos pulados.
Acho que até não consigo contar bem claro tudo o que sucedeu. Vamos por ordem:
Pus tal firmeza em não amar Maria mais, que nem meus pensamentos me traíram. De
resto a mocidade raiava e eu tinha tudo a aprender. Foi espantoso o que se
passou em mim. Sem abandonar o meu jeito de "perdido", o cultivando
mesmo, ginásio acabado, eu principiara gostando de estudar. Me batera, súbito,
aquela vontade irritada de saber, me tornara estudiosíssimo. Era mesmo uma
impaciência raivosa, que me fazia devorar bibliotecas, sem nenhuma orientação.
Mas brilhava, fazia conferências empoladas em sociedadinhas de rapazes, tinha
ideias que assustavam todo o mundo. E todos principiavam maldando que eu era
muito inteligente mas perigoso.
Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o mundo, aos
vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico, noivado que durou três meses e
se desfez de repente, pra dias depois ela ficar noiva de outro, um diplomata
riquíssimo, casar em duas semanas com alegria desmedida, rindo muito no altar e
partir em busca duma embaixada européia com o secretário chique seu marido.
Às vezes meio tonto com estes acontecimentos fortes, acompanhados meio de
longe, eu me recordava do passado, mas era só pra sorrir da nossa infantilidade
e devorar numa tarde um livro incompreensível de filosofia. De mais a mais,
havia Rose pra de-noite, e uma linda namoradinha oficial, a Violeta. Meus
amigos me chamavam de "jardineiro", e eu punha na coincidência
daqueles duas flores uma força de destinação fatalizada. Tamanha mesmo que
topando numa livraria com The Gardener de Tagore, comprei o livro e comecei
estudando o inglês com loucura. Mário de Andrade conta num dos seus livros que
estudou o alemão por causa dum emboaba tordilha... eu também: meu inglês nasceu
duma Violeta e duma Rose.
Não, nasceu de Maria. Foi quando uns cinco anos depois, Maria estava pra voltar
pela primeira vez ao Brasil, a mãe dela, queixosa de tamanha ausência,
conversando com mamãe na minha frente, arrancou naquele seu jeito de gorda
desabrida:
— Pois é, Maria gostou tanto de você, você não quis!... e agora ela vive longe
de nós.
Pela terceira vez fiquei estarrecido neste conto. Percebi tudo num tiro de
canhão. Percebi ela doidejando, noivando com um, casando com outro, se
atordoando com dinheiro e brilho. Percebi que eu fora uma besta, sim agora que
principiava sendo alguém, estudando por mim fora dos ginásios, vibrando em
versos que muita gente já considerava. E percebi horrorizado, que Rose! nem
Violeta, nem nada! era Maria que eu amava como louco! Maria é que amara sempre,
como louco: ôh como eu vinha sofrendo a vida inteira, desgraçadíssimo,
aprendendo a vencer só de raiva, me impondo ao mundo por despique, me
superiorizando em mim só por vingança de desesperado. Como é que eu pudera me
imaginar feliz, pior: ser feliz, sofrendo daquele jeito! Eu? eu não! era Maria,
era exclusivamente Maria toda aquela superioridade que estava aparecendo em
mim... E tudo aquilo era uma desgraça muito cachorra mesma. Pois não andavam
falando muito de Maria? Contavam que pintava o sete, ficara célebre com as
extravagâncias e aventuras. Estivera pouco antes às portas do divórcio, com um
caso escandaloso por demais, com um pintor de nomeada que só pintava efeitos de
luz. Maria falada, Maria bêbeda, Maria passada de mão em mão, Maria pintada
nua...
Se dera como que uma transposição de destinos... E tive um pensamento que ao
menos me salvou no instante: se o que tinha de útil agora em mim era Maria, se
ela estava se transformando no Juca imperfeitíssimo que eu fora, se eu era
apenas uma projeção dela, como ela agora apenas uma projeção de mim, se nos
trocáramos por um estúpido engano de amor: mas ao menos que eu ficasse bem
ruim, mas bem ruim mesmo outra vez pra me igualar a ela de novo. Foi a razão da
briga com Violeta, impiedosa, e a farra dessa noite – bebedeira tamanha que
acabei ficando desacordado, numa série de vertigens, com médico, escândalo, e choro
largo de mamãe com minha irmã.
Bom, tinha que visitar Maria, está claro, éramos "gente grande"
agora. Quando soube que ela devia ir a um banquete, pensei comigo: "ótimo,
vou hoje logo depois de jantar, não encontro ela e deixo o cartão". Mas
fui cedo demais. Cheguei na casa dos pais dela, seriam nove horas, todos
aqueles requifes de gente ricaça, criado que leva cartão numa salva de prata
etc. Os da casa estavam ainda jantando. Me introduziram na saletinha da
esquerda, uma espécie de luís-quinze muito sem-vergonha, dourado por inteiro,
dando pro hol central. Que fizesse o favor de esperar, já vinham.
Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de supetão que tinha mais alguém na
saleta, virei. Maria estava na porta, olhando pra mim, se rindo, toda vestida
de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor, não insisto. Mas se eu já
tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida,
fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido.
— Ao menos diga boa-noite, Juca...
"Boa-noite, Maria, eu vou-me embora"... meu desejo era fugir, era
ficar e ela ficar mas, sim, sem que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que
sei que ela estava se entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo
quanto eu queria, naquele se deixar olhar, sorrindo leve, mãos unidas caindo na
frente do corpo, toda vestida de preto. Um segundo, me passou na visão
devorá-la numa hora estilhaçada de quarto de hotel, foi horrível. Porém, não
havia dúvida: Maria despertava em mim os instintos da perfeição. Balbuciei
afinal um boa-noite muito indiferente, e as vozes amontoadas vinham do hol, dos
outros que chegavam.
Foi este o primeiro dos quatro amores eternos que fazem de minha vida uma grave
condensação interior. Sou falsamente um solitário. Quatro amores me acompanham,
cuidam de mim, vêm conversar comigo. Nunca mais vi Maria, que ficou pelas Europas, divorciada afinal, hoje dizem que vivendo com um austríaco interessado
em feiras internacionais. Um aventureiro qualquer. Mas dentro de mim, Maria...
bom: acho que vou falar banalidade.
Mário de Andrade
Mário de Andrade
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