«O Passa-Paredes»
Por Marcel Aymé
898- «O PASSA-PAREDES»
[Pequeno Excerto]
“Havia em Montmartre, no terceiro andar do 75-A da Rua
d’Orchampt, um excelente homem chamado Dutilleul que possuía o dom singular de
passar através das paredes sem o menor incómodo. Usava lunetas, uma pequena
barbicha preta, e era funcionário de terceira classe no Ministério dos
Registos. No Inverno ia para o emprego de autocarro, e quando chegava o bom
tempo fazia o trajecto a pé, sob o seu chapéu de coco.
Dutilleul acabara de entrar no quadragésimo-terceiro ano
quando teve a revelação do seu poder. Certa noite, surpreendido no vestíbulo do
pequeno apartamento de solteiro por uma curta falha de electricidade, pôs-se a
tactear nas trevas e, assim que a corrente voltou, viu-se no patamar do
terceiro andar. Como a porta estava fechada por dentro, o incidente fê-lo
reflectir e, desafiando as objecções da razão, decidiu-se a entrar como tinha
saído, passando através da parede. Esta estranha faculdade, que parecia não
responder a nenhuma das suas aspirações, não deixou de o contrariar um pouco e,
no sábado seguinte, aproveitando a semana inglesa, foi ver um médico do bairro
para lhe expor o caso. O médico pôde verificar ser verdade o que lhe dizia e,
depois de o ter examinado, descobriu a causa do mal num endurecimento
helicoidal do revestimento estrangular do corpo tiroideu. Receitou-lhe o
excesso de trabalho e, à razão de dois comprimidos por ano, a absorção de pó de
pireta tetravalente, mistura de farinha de arroz e de hormona de centauro.
Depois de tomar um primeiro comprimido, Dutilleul guardou o
medicamento numa gaveta e não pensou mais no caso. Quanto ao excesso de
trabalho, a sua actividade de funcionário regulava-se por usos que em nada se
prestavam a qualquer excesso, e as horas livres, consagradas à leitura do
jornal e à colecção de selos, tão-pouco o obrigavam a um imoderado dispêndio de
energia. Ao fim de um ano, tinha pois mantido intacta a faculdade de passar
através das paredes, mas nunca a utilizava, a não ser por inadvertência, sendo
pouco dado a aventuras e refractário aos transportes da imaginação. Não lhe
aflorava sequer a ideia de entrar em casa de outro modo que não fosse pela
porta e só depois de devidamente aberta com intervenção da fechadura. Poderia
talvez ter envelhecido na paz dos seus hábitos sem sentir a tentação de pôr à
prova os seus dons, não fosse um acontecimento extraordinário ter vindo
subitamente perturbar-lhe a existência. O Sr. Mouron, sub-chefe da repartição,
chamado a outras funções, foi substituído por um tal Sr. Lécuyer, que tinha a
palavra breve e um bigode à escovinha. Desde o primeiro dia, o novo sub-chefe
não viu com bons olhos que Dutilleul usasse lunetas de corrente e barbicha
preta, e tratava-o ostensivamente como uma velharia importuna e algo
indecorosa. Mas o mais grave é que se propôs introduzir no serviço reformas de
uma certa envergadura e destinadas a perturbar a quietude do subordinado. Havia
já vinte anos que Dutilleul começava as cartas pela fórmula seguinte: “Em
referência à estimada carta de Vª Exª de tantos do corrente e tendo presente a
nossa troca de correspondência anterior, tenho o prazer de informar Vª Exª…”
Fórmula essa que o Sr. Lécuyer entendeu substituir por outra com um ar mais
americano: “Em resposta à sua carta de tantos do tal, temos a informar que…”
Dutilleul não pôde acostumar-se a estes termos epistolares. Mau grado seu,
voltava à sua maneira tradicional, com uma obstinação maquinal que lhe valeu a
inimizade crescente do sub-chefe. A atmosfera do Ministério dos Registos
tornava-se-lhe quase penosa. De manhã, dirigia-se para o trabalho apreensivo, e
à noite, na cama, acontecia-lhe frequentemente ficar a meditar um quarto de
hora inteiro antes de pegar no sono.
Desalentado por esta determinação retrógrada que comprometia
o sucesso das suas reformas, o Sr. Lécuyer relegara Dutilleul para um cubículo
meio às escuras, contíguo ao seu gabinete. Tinha por entrada uma porta baixa e
estreita que dava para o corredor e que exibia ainda em letras maiúsculas a
inscrição: Arrecadação. Dutilleul aceitara de ânimo resignado esta humilhação
sem precedentes, mas em casa, ao ler no jornal o relato de um qualquer episódio
sanguinolento, surpreendeu-se a imaginar o Sr. Lécuyer como sendo a vítima.”
(…)
Marcel Aymé
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