sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

OUTROS CONTOS

«O Mortal Imortal», por Mary Shelley.

«O Mortal Imortal»
Conto de Mary Shelley

1218- «O MORTAL IMORTAL»

Dezasseis de Julho de 1833. Este é um aniversario especial para mim, cumpro trezentos e vinte três anos!

O judeu errante? Decerto que não, por ele já passaram mais de oito séculos. Em comparação com ele sou um imortal muito jovem.
Serei imortal? Isso é o que me tenho perguntado dia e noite durante os últimos trezentos anos, e ainda não fui capaz de responder. Precisamente hoje descobri um cabelo branco entre meus fartos morenos, e isso certamente significa que começo a envelhecer. Ainda que também poderia já estar ali escondido durante trezentos anos, pois algumas pessoas têm o cabelo completamente branco antes de cumprir os vinte.

Vou contar a minha história; e logo, deixarei que os leitores julguem por mim. Assim, enquanto a conto, irão passando umas tantas horas desta longa eternidade que me está sendo tão insuportável. Para sempre! É isso possível? Viver para sempre! Tenho escutado sobre encantamentos em que as vítimas foram entregues a um profundo sono e despertaram cem anos depois, frescas coma uma rosa. Ouvi falar, por exemplo, dos Santos dormentes e do feliz que foi o lendário Nourjahad. Ser imortal dessa maneira não seria cansativo porém, ai, que insuportável se faz o peso do tempo eterno, o lento passo das horas sucedendo-se sem fim! Mas sigo com meu relato.

Todo o mundo ouviu falar de Cornelius Agrippa. A sua memória é tão imortal como sou eu, por causa da sua sabedoria. Todo o mundo ouviu também falar daquele discípulo seu que, sem querer, invocou o Inimigo na ausência do mestre e foi destruído por ele. O relato deste acidente, verdadeiro ou falso, pôs em apuros o célebre filósofo. Abandonaram-no todos alunos seus, e os seus serventes desapareceram. Não tinha quem mantivesse o lume aceso enquanto dormia ou quem prestasse atenção às mudanças de cor das suas poções enquanto estudava. Um após outro, estragavam-se todos seus experimentos, já que duas mãos não bastavam para ter conta deles. Os espíritos das trevas riam-se dele por não conseguir reter um só mortal a seu serviço.

Eu era naquela época mais novo, muito pobre e estava muito apaixonado namorado. Fora discípulo de Cornelius durante um ano mais ou menos, porém estava ausente quando ocorreu o acidente. Quando regressei, os meus amigos pediram-me que não voltasse àquela casa. Tremia quando me contaram aquela arrepiante história e não esperei por um segundo aviso; assim que, quando Cornelius me veio oferecer uma bolsa de ouro para ficar sob seu tecto, senti como se o próprio Satanás me estivesse a tentar. Estava arrepiado, batiam-me os dentes e sai correndo tão rápido quanto me permitiam as minhas debilitadas pernas.

Desfalecido, deixei que os meus passos me levassem ao lugar onde me dirigira cada serão dos dois últimos anos: a uma fonte da qual brotava suavemente uma água pura e limpa, perto da qual aguardava uma moça de cabelos mouros com olhos fixos no caminho pelo qual eu acabava de chegar. Não recordo o tempo em que não amava Bertha: fomos vizinhos e companheiros de jogos desde crianças; os seus pais, como os meus, eram de condição humilde porém honrados, e nosso amor era fonte de alegria para eles. Mas um funesto dia, uma febre maligna levou seu pai e sua mãe, e Bertha ficou órfã. O meu pai a acolheria de bom grado sob nosso tecto, porém, desgraçadamente, a dona do castelo vizinho, rica, solitária e sem filhos, declarou a sua intenção de apadrinhá-la. Daí em diante, Bertha vestiria roupas de seda, moraria num palácio de mármore e todos a veriam como aquela a quem sorria a fortuna. Realmente, apesar da sua nova situação e os seus novos amigos, Bertha seguia fiel a seu amigo de tempos mais humildes. Visitava amiúde a casa do meu pai, e quando lhe proibiram ir ali, desviava-se para um caminho próximo para encontrar-se comigo na sombria a fonte.
Dizia amiúde que com a sua nova protectora não tinha um compromisso tão sagrado como o que a unia comigo. E como eu não era bastante rico para poder casar, ela começava a estar farta de viver atormentada por causa minha. Era orgulhosa porém também impaciente, e exasperava-se pelos obstáculos que impediam a nossa união. Ela estivera muito aflita enquanto eu estava fora, e agora lastimava-se com amargura e me reprovava por ser pobre. Respondi-lhe sem pensar: “Sou pobre porém honrado! Não te preocupes, quem sabe logo serei rico!”

Esta afirmação deixou-a cheia de perguntas. Tinha medo de assustá-la se lhe confessasse a verdade. Porém conseguiu que eu contasse; e então, com um olhar de desprezo, disse: “Diz que me ama, não obstante tem medo de enfrentar o diabo por mim!”

Assegurei-lhe que só temia ofendê-la, porém ela teimava que receberia uma magnífica recompensa. Assim, alentado e envergonhado por ela, cego pelo amor e pela esperança e rindo-me dos meus temores, voltei com passo rápido e coração ligeiro para aceitar a oferta do alquimista, quem me devolveu imediatamente o meu antigo posto.

Passou um ano e ganhei uma soma considerável de dinheiro. O costume espantou os meus temores. Ainda que estava à espreita em todo momento, nunca achei nenhuma pegada de bode na nossa casa, nem se viu nunca a tranquilidade do nosso estudo perturbada por gritos demoníacos. Segui vendo Bertha às escondidas e a esperança renasceu em mim; esperança sim, mas não felicidade completa, pois que Bertha cuidava que a segurança era inimiga do amor e se comprazia-se fazendo-me elixir entre eles. Ainda que fiel, era bastante coquete e fazia-me adoecer de ciúmes. Desprezava-me de mil maneiras e nunca se desculpava, fazia-me gemer de raiva e logo obrigava-me a suplicar-lhe perdão. Às vezes, quando cuidava que não era submisso o bastante, inventava alguma historia dum rival que era o preferido da sua protectora. Vivia rodeada de moços vestidos de seda, ricos e galantes, que oportunidade poderia ter o esfarrapento discípulo de Cornelius comparado com eles?

Numa ocasião, o filósofo tinha-me tão ocupado que não pude encontrar-me com ela tal como combináramos. Cornelius andava enredado em trabalho muito importante, e tive que ficar alimentando o forno e vigiando os preparados químicos dia e noite, enquanto Bertha esperava em vão na fonte. Era orgulhosa, e zangou-se muito por isso. Quando por fim pude escapar durante os escassos minutos que tinha para dormir, esperava que ela me confortasse; contudo, recebeu-me com indiferença e desprezo, e assegurou-me que não havia concedido sua mão a um homem que não fosse capaz de estar em dois lugares ao mesmo tempo por ela. Jurou que se vingaria, e decerto que o fez. Enquanto eu sofria em silêncio minha derrota, escutei dizer que ela estivera caçando acompanhada de Albert Hoffer. Hoffer era o preferido da sua protectora, e um dia passaram os três cavalgando diante de minha casa. Pareceu-me que mencionavam o meu nome, seguido duma risada burlesca, enquanto Bertha cravava os seus olhos escuros, cheios de desprezo, na minha velha casa.

Todo o veneno e o desassossego dos céus assolou meu coração. Primeiro derramei um rio de lágrimas pensando que nunca chegaria a ser minha, e logo reneguei da sua veleidade. Porém ainda assim tinha que seguir atiçando o lume e vigiando as mudanças das ininteligíveis mezinhas do alquimista.


Cornelius levava três dias e três noites de vigília sem sequer cerrar olhos. As poções dos seus alambiques progrediam a um ritmo mais lento do que ele esperava. Apesar de sua preocupação, já não podia manter os olhos abertos; custava-lhe um tanto sacudir o sono que lhe cegava uma e outra vez os sentidos. Por fim, olhou melancólico os crisóis e murmurou: “Ainda não está pronto, terá que passar ainda outra noite antes de que a obra esteja pronta. Winzy, filho, tu que és arguto e leal e dormiste pela noite, vigia este vaso. Contém um líquido duma cor ligeiramente rosada; quando começar a mudar de tom, acorde-me, até então deixa-me fechar um pouco os olhos. Primeiro põe-se branco, e depois despende faíscas douradas; porém não esperes até que passe disso, quando a cor rosa começar a sumir, acorda-me”. Estas últimas palavras, murmuradas enquanto adormecia, já quase não as escutei. Mas, nem sequer então se deixou dobrar pelas leis da natureza e seguiu dizendo: “Winzy, filho, não toques o vaso, não se te ocorra levá-lo aos lábios. É um filtro que cura o amor, e tu não queres deixar de amar a tua Bertha, não é? Pois muito cuidado com ele!”

Repousou a venerável testa no peito e caiu no sono, apenas se escutava a sua respiração. Observei o vaso durante uns minutos, porém o tom rosa do líquido não mudou. Então, a minha mente começou a vagar, vi-me na fonte, em lembrando cenas encantadoras que nunca haviam de voltar, nunca! Quando a palavra “nunca” começou a tomar forma nos meus lábios encheu-me o coração de veneno. Traidora!, traidora e cruel! Nunca tornaria a olhar como olhava Albert. Mulher detestável e odiosa! A coisa não podia ficar assim, como vingança havia de dar morte a Albert a seus pés… mataria a ela com minhas próprias mãos… Sorria triunfante e altiva, consciente da minha aflição e o seu poder. Mas, que poder tinha ela sobre mim? O poder de provocar minha ira, o meu desprezo mais absoluto, a minha… qualquer coisa menos indiferença! Se pudesse conseguir isso! Se pudesse olhá-la com olhos indiferentes e entregar-lhe esse amor não correspondido a outra mais pura e sincera, isso seria, sem dúvida, uma vitória!

De repente, uma luz intensa cintilou ante meus olhos. Já me esquecera da poção do mestre. Contemplei-a com assombro: a superfície do líquido refulgia com beleza admirável, despendia umas faíscas mais brilhantes que as produzidas pelos raios de sol ao passar através de um diamante. Uma fragrância deliciosa embebeu meus sentidos, o vaso parecia uma bola luminosa e brilhante, fascinante para a vista e cativante para o olfato. A minha primeira reacção, inspirada instintivamente pelos sentidos, foi: “quero beber! tenho que beber!” Levei o vaso aos lábios e murmurei: “Curara-me deste amor, desta tortura!” Quando o filósofo acordou, já eu engolira a metade do licor mais delicioso que provou o paladar humano. Assustei-me e deixei cair o vaso, o liquido derramou cintilando pelo chão e começou a arder. Entretanto, senti como Cornelius me apertava a garganta berrando: “Desgraçado, destruíste o trabalho de toda a minha vida!”

Não se deu conta de que eu bebera parte da poção. Cria que pegara o vaso por curiosidade e que o deixara cair, assustado pelo resplendor e a intensa luz que desprendia; versão que eu admiti implicitamente. Nunca lhe contei a verdade. Apagamos o lume e o resto da poção foi-se esvaecendo, Cornelius recuperou a serenidade, como deve fazer todo filósofo ante as maiores adversidades, e deu-me permissão para descansar.

Seria inútil tentar descrever o sono celestial que elevou a minha alma ao paraíso do gozo durante as restantes horas daquela noite inesquecível. As palavras seriam simples representações banais da satisfação e da alegria que assolavam o meu coração quando despertei. Flutuava no ar, o meu pensamento vagava pelas nuvens. A terra parecia o céu, e o meu legado desse paraíso era viver num êxtase de gozo. “Isto é estar curado do amor”, pensei. “Hoje irei visitar a Bertha e mostrar-me-ei frio e distante, demasiado feliz como para tratá-la com desprezo, porém completamente indiferente ante ela!”

As horas voavam e Cornelius, certo de que se o conseguira a primeira vez também o havia lograr uma segunda, começou de novo a elaborar a sua poção. Fechou-se com os livros e as ervas, e deu-me uns dias de descanso. Vesti-me cuidadosamente e olhei-me num escudo velho porém brilhante que me serviu de espelho; parecia que o meu aspecto melhorara extraordinariamente, com bom ânimo e rodeado de toda a beleza do céu e da terra, saí para fora dos limites da cidade. Fui ao castelo, chegando lá, dei-me conta de que era capaz de ver suas grandiosas torres com espírito leve, porque já estava curado do amor. Bertha viu-me ao longe quando subia pelo caminho, e não sei que repentina força despertou no seu peito que, ó verme, desceu a escada de mármore brincando com uma corça e começou a correr para mim. Mas também me viu a velha bruxa fidalga que se fazia chamar sua protectora e, na realidade, era a sua tirana; subia abafada e coxeando para o pórtico, enquanto um pajem, tão feio como ela, lhe sustentava o vestido. Foi ele que deteve minha linda amiga dizendo: “Onde vais com tanta pressa, desvergonhada? Volta à tua gaiola, que fora revoam os falcões”.

Podem apreciar como Bertha apertava as mãos, com olhos ainda voltados para mim. Como aborrecia a velha harpia que teimava em reprimir os nobres impulsos da minha amada quando por fim começava a comover-se! Até então, eu sempre evitara defrontar-me com a senhora do castelo por respeito, porém naquele momento não reparei em considerações tão triviais. Já curara do amor e estava por cima de qualquer temor humano, assim apurei o passo e cheguei em seguida ao pórtico. Bertha estava preciosa! Brilhavam-lhe os olhos e ardiam de impaciência e raiva, estava mais garrida e encantadora que nunca, porém eu já não a amava Oh, não! Adorava!, Venerava! Idolatrava!

Aquele dia pressionara-a com mais insistência que nunca para que consentisse em casar de imediato com meu rival. Reprovava-lhe que lhe tivesse dado azos, e ameaçava-a com expulsá-la da casa envergonhada e desonrada. Ela, orgulhosa, rebelou-se contra a tal ameaça; mais, ao lembrar todos os desprezos que me fizera, e que, quiçá por isso, perdera o que agora considerava o seu único amigo, rompeu a chorar com raiva e remorsos. Nesse momento apareci. “Oh, Winzy!”, exclamou. “Leva-me em seguida a cabana do teu pai. Renego todos os luxos desta sumptuosa casa que não me trouxe mais que desgraças, leva-me de volta à pobreza e à felicidade!”

Colhi-a nos braços, extasiado. A velha ficou muda de raiva, e quando começou a proferir impropérios já estávamos longe, caminho da casa dos meus pais. A minha mãe recebeu com ternura e alegria a coitadinha refugiada, que acabava de escapar duma gaiola de ouro buscando a liberdade na singeleza; e o meu pai, que lhe queria coma a uma filha, deu-lhe as boas-vindas de todo coração. Foi um dia de júbilo, o meu coração pulava de alegria sem necessidade de nenhuma poção mágica.

Pouco depois daquele dia tão agitado casei com Bertha. Deixei de ser discípulo de Cornelius, porém segui sendo seu amigo. Sempre lhe estive agradecido por permitir, sem saber, tomar um gole daquele elixir divino que, em vez de curar-me do amor –triste cura!, um remédio cheio de saudade e dor contra uma coisa que hoje se assemelha a uma bênção– infundiu em mim a coragem e resolução necessárias para conquistar o inestimável tesouro que resultaria ser Bertha.

Com frequência, recordo aquela época de embriaguez quase hipnótica. A beberagem de Cornelius não cumprira o cometido para o que ele afirmava que fora preparada, mas não há palavras que possam expressar os efeitos tão maravilhosos que produziu em mim. Ainda que o efeito se ia esvaecendo, durou muito tempo e encheu-me a vida de delícia. Às vezes, Bertha abraçava-se ao me ver tão alegre e entusiasmado, algo inusitado em mim já que antes era mais bem sério, mesmo tristonho. Agora, com meu novo caráter, ainda me queria mais, e nas nossas vidas não havia lugar para a tristeza.

Uns cinco anos depois, Cornelius mandou-me chamar a seu leito de morte requerendo a minha presença imediata. Achei-o deitado no leito cunha febre altíssima; a faísca de vida que lhe restava brilhava-lhe no penetrante olhar, fixo num vaso de vidro que continha um líquido rosado.

—Notaste do insignificante que é a vontade humana? –disse com voz entrecortada e como para si. Pela segunda vez estão a ponto de ver-se cumpridas as minhas esperanças, e uma segunda vez me escapam. Vês essa poção? Lembra que há uns cinco anos preparei a mesma beberagem com mesmo resultado: daquela, como agora, esperava poder saciar a minha sede com elixir da imortalidade então, entregá-lo a ti e agora, já é tarde demais!

Falava com dificuldade e tinha que recostar-se contra a almofada. Mas não pude evitar dizer-lhe:

—Porém, venerado mestre, como pode um remédio contra o amor devolver-lhe a vida?

—Um remédio para o amor e para tudo: o Elixir da Imortalidade! Ai, se pudesse bebê-lo agora viveria para sempre! –disse, de maneira case ininteligível, enquanto que um vago sorriso lhe iluminava a cara.

E, dizendo isto, do vaso surgiu um resplendor dourado, e uma fragrância bem conhecida por mim espalhou-se no ar. Apesar de débil que estava, ergueu-se e estendeu o braço, a força parecia retornar a seu corpo como por arte de magia. A mim assustou um forte estalo, o elixir despendeu fagulhas e o vaso quebrou em mil cacos. Olhei para o filósofo: caíra de costas e tinha os olhos vidrados e as feições rígidas, estava morto!

Porém eu estava vivo e ia viver para sempre! Isso disse o desafortunado alquimista, e durante uns dias acreditei nas suas palavras. Recordava a felicidade embriagadora que me inundou depois de tomar aquele trago às escondidas. Passei a observar as mudanças que se produziram no meu corpo e na minha alma: a exultante elasticidade do primeiro e o eufórico entusiasmo da última. Examinei o meu rosto detalhadamente no espelho, e não notei que se tivesse produzido nenhuma mudança nas minhas feições durante os últimos cinco anos. Recordava a luminosa cor e o aroma daquela deliciosa bebida, dignos do poder que possuía. Portanto, eu era Imortal!

Uns dias mais tarde, eu mesmo ria da minha credulidade. O velho provérbio que diz que “ninguém é profeta na sua terra” resultou ser verdade tocante a mim e meu defunto mestre. Eu apreciava-o como pessoa e respeitava-o como mestre, porém a ideia de que pudesse ter algum poder sobre as forças das trevas parecia-me ridícula e ria-me do medo supersticioso com que o olhavam. Era um filósofo sábio, mas não conhecia outros espíritos que não fossem os recobertos de carne e osso. Os seus conhecimentos eram puramente humanos; e o saber humano, conseguiu convencer-me, nunca chegaria a dominar as leis da natureza até o ponto de poder encerrar a alma para sempre na sua morada carnal. Cornelius elaborara uma bebida que restabelecia o espírito, uma bebida mais embriagadora que vinho e mais doce e olorosa que nenhuma fruta, e que provavelmente tinha poderes medicinais: proporcionava alegria ao coração e vigor aos membros. Porém os seus efeitos acabariam desaparecendo, no meu corpo já começavam a minguar. Considerava-me um tipo afortunado porque o meu mestre me obsequiara com boa saúde e alegria e quiçá uma longa vida. Porém a minha boa fortuna acabava ai, a longevidade era bem diferente da imortalidade.

Segui abrigando esta crença durante muitos anos, ainda que às vezes me passava uma ideia pela cabeça: estava realmente equivocado o alquimista? Mas, em geral, seguia a crer que chegaria a minha hora como a qualquer cristão, talvez um pouco tarde porém, a uma idade normal. Mas não havia dúvida que tinha uma aparência extraordinariamente juvenil. As pessoas riam de minha vaidade por olhar-me no espelho com tanta frequência. Porém era tudo debalde, já que na minha fronte não se via uma ruga; as madeixas, os olhos, tudo eu seguia tão jovem como aos vinte anos.

Estava desconcertado, olhava a mirrada beleza de Bertha, e parecia mais a minha mãe. Pouco a pouco, os vizinhos começaram a fazer comentários deste tipo e finalmente, descobri que me chamavam “o rapaz amigado”. Mesmo Bertha começou a inquietar-se, tornou-se zelosa e irritável e, com o tempo, começou a fazer perguntas. Não tínhamos filhos, estávamos completamente sós; porém, assim como tudo, ao ir envelhecendo, o seu carácter leve e esperto acabou por aquietar-se, e a sua beleza começou a murchar. Contudo, eu apreciava-a como a amante que adorara na juventude e a esposa que conquistara com tanta dedicação.

A final, a situação tornou-se insuportável. Bertha tinha cinquenta anos e eu vinte. Envergonhado, adoptei costumes de velho: nos bailes já não me juntava com moços, ainda que o meu coração brincava com eles e tinha que conter os pés para não dançar; fazia uma figura ridícula entre os homens maduros da vila. Porém as coisas já começaram a mudar antes de tudo isso. Rejeitavam-nos todos porque acreditavam que fizéramos, pelo menos eu, um pacto diabólico com algum dos supostos aliados do meu antigo mestre. De mim tinham medo e aborreciam, e a pobre Bertha, ainda que lhe tinham mágoa, abandonaram-na à sua sorte.

Que podíamos fazer? Ficar sentados a frente do lume vendo como a pobreza entrava na nossa casa, já que ninguém queria comprar os produtos da minha granja. Amiúde tinha que fazer vinte milhas de viagem para poder vendê-los em local onde não me conhecessem. Menos mal que tínhamos algo guardado por virem maus tempos.

Ficávamos sós, o moço avelhentado e a sua antiquada mulher sentados diante do fogo. Bertha seguia insistindo em saber a verdade, juntava tudo o que escutara sobre mim e tirava as suas próprias conclusões. Chegou a suplicar-me que desfizesse aquela magia. Tentou convencer-me de quanto mais formosas eram as cãs que meus cabelos castanhos, elogiava o respeito e a veneração que inspira a velhice, comparados com a escassa consideração que se tem com os jovens. Como podem imaginar que o desprezável dom da juventude e a beleza seria mais forte que ódio, o desprezo e a vergonha? Acabariam queimando-me por praticar magia negra, e a Bertha –a que não fora capaz de transmitir nem sequer uma pequena parte da minha boa fortuna– poderiam dilapidá-la por ser a minha cúmplice. Por último, chegou a insinuar que devia compartilhar meu segredo com ela para que pudesse gozar dos mesmos benefícios, se não queria que me denunciasse, e depois começou a chorar.
Vi-me tão encurralado que pensei que o melhor era dizer-lhe a verdade. Contei com todo o tacto que pude, e não lhe falei de imortalidade, senão duma longa vida, que era também o que melhor encaixava com a ideia que eu tinha do assunto. Quando rematei o relato, pus-me de pé e disse-lhe:

—E agora, Bertha, ainda queres denunciar o teu amante de juventude? Sei que não o farás, porém seria injusto que ui, a minha querida esposa, sofresse as consequências da minha má sorte e das artes malditas de Cornelius. Devo-me ir. A ti fica o bastante para viver; e, quando eu partir, voltarão os velhos amigos para dar-te uma mão. Ainda pareço novo e sou forte, posso trabalhar e ganhar o pão onde ninguém me conheça nem suspeite de mim. Amei-te de moço e ponho a Deus por testemunha de que não te abandonaria na velhice, se não fosse pela tua própria segurança e felicidade.

Vesti o casaco e dirigi-me à porta; porém em seguida senti que os braços de Bertha rodeavam o meu pescoço e os seus lábios bicavam os meus. “Não, meu queridinho, meu Winzy”, disse,”não te irás só, leva-me contigo; deixaremos este lugar e, como ti disseste, entre desconhecidos estaremos seguros e livres de qualquer suspeita. Ainda não sou tão velha para envergonhar-te. Seguramente há-de desaparecer logo o feitiço e, por Deus, envelhecerás como deves. Por favor, não te vás sem mim!”
Abracei-a forte contra o meu peito e disse-lhe: “Não temas, não te deixarei, não o pensara nem por um momento. Seguirei sendo o teu maridinho fiel e cuidarei de ti até que Deus te chame a seu lado”.
No dia seguinte preparamo-nos em segredo para a partida. Teríamos que renunciar a muitas coisas, era inevitável. Reunimos a soma de dinheiro necessária para manter-nos pelo menos enquanto Bertha vivesse e, sem dizer adeus a ninguém, deixamos nossa terra natal para refugiar-nos num lugar remoto do oeste de França.

Foi cruel afastar a pobre Bertha da sua vila natal e os seus amigos de juventude e levá-la a um país com outra língua e outros costumes. Para mim, a partida era algo sem demasiada importância devido ao segredo do meu insólito destino. Compadecia-me profundamente dela e alegrava-me comprovar que encontrava consolo para as suas desgraças em pequenas casualidades ridículas. Longe de todos os conhecidos, ela tentava ocultar a evidente diferença de idade que nos separava mediante milhares de truques femininos: punha carmim nos lábios, usava roupa juvenil e comportava-se coma uma mocinha. Não podia aborrecer-me com ela, não levava eu também uma máscara? Por que havia de discutir com ela se os seus truques não funcionavam tão bem como os meus? Uma tristeza infinita assolava o meu coração quando lembrava que essa era a minha Bertha, a que eu amara tão apaixonadamente, a que tanto me custara conquistar. Aquela garota de cabelos mouros e olhos escuros, com sorriso pícaro e cativador, que saltitava como uma corça, convertera-se nessa velha mexeriqueira e zelosa. Deveria venerar as suas cãs e rugas! Sabia que era o meu dever.

Porém esse tipo de decadência não era o que me aborrecia nela. A sua desconfiança não tinha limite. 
A sua principal ocupação era descobrir que, apesar da aparência externa, eu também estava a envelhecer. Creio que, no fundo, a pobre amava-me de verdade; mas nunca conheci uma mulher com forma tão opressiva de mostrar o seu carinho. Descobria rugas no meu rosto e debilidade no meu andar, enquanto eu brincava com vitalidade juvenil e parecia o mais novo dos moços do lugar. Nunca se me ocorreria falar a outra mulher; porém, numa ocasião, ela, crendo que a beleza da vila me via com bons olhos, comprou-me uma peruca cinza. O tema habitual de conversação com suas amizades era que, ainda que parecesse tão novo, o meu corpo estava a deteriorar-se e o pior sintoma, afirmava, era essa aparente saúde. Dizia que a minha juventude era uma enfermidade e que devia estar preparado, se não para uma morte repentina e horrível, quando menos para espertar uma manhã com o cabelo todo branco, curvado e com todos os achaques da velhice. Deixava-a falar e amiúde mesmo corroborava as suas conjecturas, que concordavam com minhas eternas especulações sobre o meu estado. Até cheguei a tomar um sério ainda que doloroso interesse por escutar tudo o que o seu rápido engenho e a sua imaginação exaltada podiam discorrer sobre o tema.

Para que estender em mais detalhes? Ainda vivemos juntos muitos anos. Bertha ficou paralítica e prostrada numa cama. Cuidei dela como uma mãe cuidaria um filho. Com o tempo, tornou-se ainda mais raivosa e obsessiva, sempre cismando sobre quanto tempo eu ia sobreviver. Consola-me saber que cumpri escrupulosamente o meu dever para com ela. Foi a minha companhia na juventude e foi também na velhice e, afinal, quando enterrei o seu corpo, chorei desconsolado pela perda do único elo que realmente me unia a este mundo.

Desde então, quantas foram as minhas preocupações e pesares e que poucas e vãs as alegrias! Vou deixar a minha história neste ponto, não paga a pena seguir. Um marinheiro sem temor nem compaixão, sacudido por um mar tormentoso; um viajante perdido num monte imenso, sem luzes nem estrelas que o guiem: isso é o que eu sou e estou mais perdido e desesperado que nenhum deles. Um barco próximo ou a luz d’alguma casa ao longe poderiam salvá-los, porém para mim não há outro farol que a esperança da morte.

Morte! misteriosa dama de escuro rosto que alentas os pobres mortais! Por que, entre todos eles, tivestes que me privar a mim do teu abraço protector? Oh, a paz, o profundo silêncio da tumba! Se o meu cérebro se detivesse e o meu coração deixasse de sentir emoções que só variam em novas formas de tristeza!

Então, sou imortal? Volto com a primeira pergunta. Em primeiro lugar, não é mais provável que a poção não concedesse a vida eterna, senão uma longa vida? Isso é o que eu espero. Ademais, só tomei a metade da poção, não teria que bebê-la toda para completar o feitiço? Portanto, tomar a metade do Elixir da Imortalidade só suporia ser semi-imortal e assim, a minha eternidade ficaria truncada e invalidada.

Ora, de todo o modo, quem poderia saber quantos anos são a metade da eternidade? Amiúde, trato de adivinhar segundo que regra se pode dividir o infinito. Às vezes imagino que me acho velho, já encontrei uma cã. Porém sou um tolo!! ainda me lamento? Sim, invade-me com frequência o medo da velhice e morte; e, ainda que aborreço a vida, quanto mais vivo mais me aterra a morte. Ai, o ser humano é um mistério! Nascemos para perecer e teimamos em lutar, como faço eu, contra as leis que regem a nossa natureza.

Maldita contradição, estou certo de que algum dia hei morrer. A poção do alquimista não poderá mais que o fogo, uma espada ou as profundas águas dum rio. Já me tenho visto mais duma vez nas azuis profundidades de um plácido lago ou nos tumultos rápidos dum imenso rio, pensando que a paz reside nas suas águas. Porém, assim mesmo, sempre dei volta para seguir vivendo outro dia mais. Pergunto eu se o suicídio será um pecado para alguém que não tem outra forma de cruzar as portas do outro mundo. Fiz de tudo, excepto apresentar-me voluntário para o exército ou um duelo, porque desta maneira não só destruiria a mim mesmo, não, senão também outros mortais, por isso dei para trás. Os mortais não são os meus iguais. A inesgotável força vital que habita o meu corpo e a sua existência efémera nos faz tão opostos como os pólos. Por isso, eu não seria quem ergueria uma mão nem contra o mais débil nem o mais forte deles.

Assim vivi durante todos estes anos, só e aborrecido de mim mesmo, desejando morrer porém ainda vivo: um mortal imortal, não tenho ambições nem sou cobiçoso, e esse ardente amor que me rói o coração –esse que não voltará nunca, porque nunca encontrei um igual a quem possa entregá-lo –perdura só para atormentar-me.

Precisamente hoje, idealizei um projecto com o qual poderei acabar com tudo sem ter que suicidar-me nem fazer doutro homem um Caim: uma expedição a que nenhum mortal, nem sequer alguém novo e forte como eu, havia sobreviver. Desta maneira, porei à prova a minha imortalidade e descansarei para sempre ou voltarei para converter-me num prodígio da natureza e um benfeitor da humanidade.

Mais antes de partir, a vaidade levou-me a escrever estas páginas. Não quero morrer sem deixar pegada. Já passaram três séculos desde o funesto dia em que bebi aquela poção e não há-de passar outro ano antes de que, enfrentando enormes perigos, lutando contra as forças do céu no seu próprio terreno, açoitado pelo temporal, a fome e a fatiga, abandone a acção da chuva e o vento este corpo que se converteu numa gaiola demasiado resistente para uma alma tão sedenta de liberdade. Porém se sobrevivo, o meu nome será lembrado como um dos mais célebres entre os mortais. E, daquela, hei empregar métodos mais contundentes para dispersar e aniquilar todos os átomos que compõem o meu corpo e liberar a vida encadeada dentro, a que tão cruelmente se lhe impediu ascender deste mundo de trevas a uma esfera mais adequada à sua essência imortal.

Mary Shelley

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