domingo, 4 de maio de 2014

OUTROS CONTOS

«A Prova de Força», por António Branquinho da Fonseca.

«A Prova de Força»
Navio, por William Turner

136- «A PROVA DE FORÇA»

 – O senhor também gosta de ver os navios?…

Era um velho de cabelos brancos e olhos azuis, com as mãos enfiadas nos bolsos dum casaco de boa fazenda escocesa, onde uns traços mais escuros formavam grandes quadrados. Mas as calças desbotadas esfiampavam-se de velhas. Também o casaco.

Ao sorriso amargo da sua interrogação respondi com a contrariedade de quem vai ouvir um pedido de esmola justificado numa história vulgar.

- Trabalha-se a valer… — respondi, numa evasiva à pergunta, como se não quisesse confidenciar gostos a um desconhecido.

Meti a mão no bolso das calças, para tirar o porta-moedas, mas hesitei, reparando melhor naquele homem que me fitava com um olhar vago, como se já não estivesse a ver-me. Agora o seu sorriso era longínquo e irónico, talvez reflectido duma memória antiga, onde estava verdadeira essa expressão de superioridade. E acrescentei:

- Isto é interessante. Tem cor e movimento…

Achei-me ridículo ao dizer esta frase que não significava nada para aquele homem. Para mim também não eram só isso, aqueles navios e comboios, as docas, os guindastes, o formigar de gente, que se via daquele jardim como um terraço sobre o rio.

- Já andei naqueles barcos… Naqueles, não; noutros como aqueles… Fez bem em não falar de aventuras… (Esta expressão «Fez bem» colocou-o de repente numa posição de superioridade em relação a mim.) Em não falar de sonhos de países desconhecidos, dessas coisas que são mentiras… Vamos lá para ganhar dinheiro, roubar, jogar dobrado contra singelo, fugir às leis… E às vezes até parecemos uns homens fortes… No fim de contas é só o dinheiro e o amor.

Fez uma pausa. E eu olhei em volta, a procurar nas caras das pessoas que estavam por ali perto uma informação a respeito deste “filósofo” que falava comigo. Talvez estivessem a rir-se dele, ou de mim, que o ouvia com atenção. Era, com certeza, um maníaco já bem conhecido dos frequentadores daquele jardim público onde eu tinha parado por acaso, nessa tarde em que passeava sem destino. Mas os três ou quatro homens que estavam encostados às grades, olhavam também lá para baixo, para os navios atracados às muralhas, ao longo do rio, ou amontoados nas docas. Vinha um martelar estridente e com­passado, dum velho cargueiro onde faziam reparações e pinturas; ao lado de um outro, de porões abertos, dois guindastes descarregavam lingadas de sacos. Ao longe, pequenos barcos pintados de branco atra­vessavam o rio cinzento. E as gaivotas, em voos serenos, pairavam, atentas, sobre os lugares onde descarregavam peixe ou desaguavam os canos de esgoto. Nos topos dos mastros, bandeiras de várias cores caíam sem vento. E um grande paquete estrangeiro dormia encostado ao cais, abandonado.

Um grupo de rapazes invadiu o jardim e numa das ruas bran­cas de saibro começou a jogar a bola.

Eu não me tinha esquecido do velho, mas julgava que ele não tivesse mais nada para me dizer. E seguia as primeiras fases da luta desportiva, quando lhe ouvi a voz, que continuava:

- …Ou tudo ou nada: de cada coisa que temos na mão. Ou tudo ou nada. Puxar de um lado, não. Os outros têm de largar. Por exemplo: as mulheres…

Olhei-o com desconfiança. Era um louco. Não porque falar de mulheres seja uma loucura. Mas é uma fraqueza ou uma vaidade… E um velho não tem essas fraquezas nem essas vaidades. Ou então era um poeta.

Compreendi que para o seu monólogo íntimo precisava de ter na frente outra pessoa. Por isso falava diante de mim, que lhe tinha calhado na hora própria. E percebi na sua voz serena um tom de fina ironia para consigo mesmo.

- As mulheres não são como uma maçã que se pode comer toda. As mulheres pensam… E o pensamento foge. É preciso descobrir-lhe a direcção e fazê-lo esbarrar. E a nossa prova de força… Filósofo, filósofo, diz bem…

Com um sorriso de condescendência deixei-o imaginar o que eu não dizia nem pensava. De repente mudou de tom e perguntou-me com uma voz tranquila de indiferença:

- O senhor é casado?

- Não.

- Eu sou. – Tinha tirado o cachimbo e carregava-o devagar, com o dedo curto e largo como uma barbatana, lentamente, como se praticasse um acto de ritual que deve demorar certo tempo. - Sou…legalmente. Quer dizer: separei-me. Era escriturário na Alfândega e conheci-a no Jardim Zoológico, num domingo no Verão, quando estávamos a ver um hipopotamozinho que tinha lá nascido. Não gosto dos hipopótamos. Têm um ar estúpido. Compare com os ursos: esses, sim, são inteligentes e têm graça. Eu vou ao Jardim Zoológico só pelos ursos. E pelos pássaros… Também tenho pássaros. Andam pela casa toda. Sempre é uma gaiola maior. Pus redes nas janelas.

- Sujam tudo.

Olhou-me com desconfiança.

- O senhor também tem a mania das limpezas?

- A mania, não. Mas há coisas que têm de estar limpas.

- Sim. Há coisas que têm de estar limpas. E estão. É fácil. Bem vê, é como se vivesse na gaiola dos pássaros. – E riu-se com bom humor. – Tenho as minhas coisas guardadas nuns armários. E o resto é todos os dias limpo como uma boa gaiola. Das coisas que gostamos de fazer porque não havemos de fazer, ao menos, as que podemos? Eu não defendo os exageros de liberdade. Só para certas pessoas, para haver progresso…Mas o hipopotamozinho era feio. E eu disse em voz alta: «Irra, que é feio!» Como uma opinião pode modificar a nossa vida! Ela olhou para mim e vi que era bonita. Casámos e as minhas teorias começaram a bater certas: domínio e mitologia. Na Grécia os deuses estavam no Olimpo. Quando desciam, eram homens. Nas outras religiões são invisíveis. A distância engrandece tudo, porque deixa o espaço para a imaginação. O espaço e o tempo. Eu era escriturário da Alfândega: não dá prestígio para muito tempo: um conto e duzentos. E tudo sempre mais caro… De tal maneira que um dia começou a falar de navios e das fardas dos oficiais. Quando uma mulher começa a falar de navios, não tenha dúvidas, está tudo perdido. Então todos os nossos passeios passaram a ser aqui pelas docas, pelos cais, visitávamos os navios, gran­des e pequenos, tudo… Era infalível. Pó de carvão, berros, obsceni­dades. Desiludiu-se. E eu deixei a Alfândega e arranjei um lugar de convés, no «Zoavo», um petroleiro que andava na carreira da Vene­zuela. Tinha uma farda e fiz os meus negócios… Atirei-a para o luxo. Evitar as distâncias… Bem sabia o perigo, bem sabia… E contava-lhe histórias. Histórias com moral…

Eu observava-o com atenção, com a curiosidade que pode des­pertar uma figura estranha, que nos vem contar uma história extrava­gante. Puxou-me pelo braço e indicou, ao longe, um ponto no meio do rio:

- O passeio de barco. Era um simples passeio por causa do calor. Agradável… «Aqui sou eu o “capitão!”», berrei. E pus-me em pé no barco. Deu um grande balanço e ela começou a gritar. É negra, a água do rio… Se eu não tivesse caído de costas no meio do barco, tal­vez não tivesse acontecido mais nada. Mas levantei-me, furioso. Quer dizer, fiquei de joelhos, a bater no peito com o punho fechado e a gri­tar «O “capitão” sou eu! Aqui sou eu!»…

Vi-lhe os olhos vidrados de lágrimas. E batia no peito, com murros que soavam a oco. De repente passou-lhe aquele ataque de fúria e, olhando para mim, com uma expressão de humildade, disse numa voz doce:

- Choro com facilidade… Não quer dizer nada… Porque é que fiquei ali de joelhos, diante dela, a chorar? Para lhe provar a minha autoridade e a minha força, meti-lhe medo e fiz-me ridículo… Nem tinha provas de que ela fosse amante do tal capitão… Mas nun­ca mais podia ser o mesmo homem que tinha sido até ali. E quando me pus em pé o barquito virou-se…

Com as duas mãos enclavinhadas na grade do jardim, olhava lá para baixo como se estivesse agarrado à borda do barco que se virava. Depois de um longo silêncio, apontou para o cais onde formigavam homens que deixavam o trabalho, camiões e bicicletas, e com o dedo, numa voz natural, como se eu dali pudesse distingui-lo:

- O Rola… Anda no «Guiné»…

E piscou-me o olho, como quem sabe coisas. Ainda tinha na mão o cachimbo apagado. Meteu-o entre os dentes e rosnou:

- Tem um fósforo?

Dei-lhe a caixa e enquanto, com a mão, protegia a chama e puxava as primeiras fumaças, ia resmungando:

- Então o senhor também gosta de navios… (Lá vem o Rola… Já traz a «coca»…) Também gosta de navios… Faz bem à alma… faz bem…

António Branquinho da Fonseca

Sem comentários: