«Retrato de uma Londrina»
Amadeo Modigliani
717- «RETRATO DE UMA LONDRINA»
Ninguém pode se considerar expert sobre Londres se
não conhecer um verdadeiro cockney¹; se não dobrar numa rua lateral, longe
das lojas e dos teatros, e bater em uma porta particular numa rua de casas
particulares.
Casas particulares em Londres têm tendência a serem muito
parecidas. A porta se abre para um vestíbulo escuro, ergue-se uma escada
estreita; do patamar superior abre-se uma dupla sala de estar e nessa dupla
sala de estar vê-se dois sofás, um de cada lado de um fogo crepitante, seis
poltronas e três compridas janelas dando para a rua. Sempre é matéria de
considerável conjectura o que acontece na segunda metade da sala dos fundos
debruçando-se para os jardins de outras casas. Mas é com a sala de estar da frente
que estamos preocupados; pois era ali que mrs. Crowe sentava-se sempre
numa poltrona junto ao fogo; era ali que sua existência transcorria; era ali
que ela servia o chá.
Que tenha nascido no campo, embora estranho, parece ser um
fato; que ela às vezes deixasse a cidade, naquelas semanas de verão em que
Londres não é Londres, também é verdade. Mas para onde ia ou o que fazia quando
saía de Londres, quando sua poltrona estava vazia, sua lareira apagada e a mesa
desfeita, ninguém sabia ou podia imaginar. Pois conceber mrs. Crowe
com seu vestido preto, seu véu e seu chapéu caminhando num campo de nabos ou
subindo um monte de pasto está além da mais desvairada imaginação.
Ali, junto à lareira no inverno ou à janela no verão,
sentara-se ela por 60 anos — mas não sozinha. Havia sempre alguém na poltrona
oposta, fazendo uma visita. E antes que o primeiro visitante estivesse sentado
por dez minutos, a porta sempre se abria e a criada Maria, de olhos e dentes
proeminentes, que por 60 anos abrira a porta, abria-a mais uma vez e anunciava
um segundo visitante; e a seguir um terceiro, e logo depois um quarto.
Nunca se soube de um tête-à-tête com mrs. Crowe. Ela
não gostava de tête-à-têtes. Era uma peculiaridade que compartilhava com muitas
anfitriãs, a de nunca ser especialmente íntima de alguém. Por exemplo, havia
sempre um homem idoso no canto junto ao armário; e que parecia tanto fazer
parte daquela admirável mobília do século XVIII quanto seus pegadores de
bronze. Mas mrs. Crowe sempre se dirigia a ele como mr. Graham; nunca
John, nunca William; embora, às vezes, o chamasse de “caro mr. Graham”
como para sublinhar que já o conhecia havia 60 anos.
A verdade é que não desejava intimidade, desejava conversa.
A intimidade é um dos caminhos para o silêncio, e mrs. Crowe abominava o
silêncio. Era preciso haver conversa, e que esta fosse geral e que abarcasse
tudo. Não devia ser profunda demais nem inteligente demais, pois se progredisse
muito nessas direcções alguém certamente se sentiria de fora, e ficaria sentado
ali, balançando a xícara de chá, sem dizer nada.
Portanto, a sala de estar de mrs. Crowe tinha pouco em
comum com os celebrados salões dos memorialistas. Gente inteligente ia lá com
frequência — juízes, médicos, membros do parlamento, escritores, músicos,
viajantes, jogadores de pólo, actores e completos anónimos —, mas se alguém
dissesse uma coisa brilhante isto era sentido quase como uma gafe, um acidente
que se ignorava, como um acesso de espirros ou alguma catástrofe com um
bolinho. A conversa de que mrs. Crowe gostava e que a inspirava era uma
versão glorificada do mexerico da cidade. A cidade era Londres, e o mexerico
era sobre a vida de Londres. Mas o grande dom de mrs. Crowe consistia em
tornar a grande metrópole tão pequena quanto uma aldeia, com uma igreja, um
solar e 25 chalés. Mrs. Crowe tinha informação de primeira mão sobre cada
peça, cada exposição de pintura, cada julgamento, cada caso de divórcio. Ela
sabia quem estava casando, quem estava morrendo, quem estava na cidade e quem
estava fora. Ela mencionava o fato de que acabara de ver o carro de lady Umphleby
passar, e arriscava o palpite de que ia visitar a filha cujo bebê nascera na
noite anterior, exactamente como uma mulher da aldeia fala sobre a esposa do
juiz de paz dirigindo até a estação para receber mr. John, que estaria
voltando da cidade.
E enquanto mrs. Crowe fazia essas observações pelos
últimos 50 anos ou algo assim, adquiria um surpreendente arquivo sobre a vida
de outras pessoas. Quando mr. Smedley, por exemplo, disse que sua filha
estava noiva de Arthur Beecham, mrs. Crowe observou imediatamente que
nesse caso ela seria uma prima em terceiro grau de mrs. Pirebrace, e num
certo sentido sobrinha de mrs. Burns, pelo primeiro casamento com mr. Minchin
de Blackwater Grange. Mas mrs. Crowe não era nem um pouco snobe. Era
apenas uma cultivadora de relações; e sua surpreendente habilidade nesse campo
servia para dar um carácter familiar e uma personalidade doméstica às suas
colheitas, pois muitas pessoas se espantariam de serem primos em vigésimo grau,
se soubessem disso.
Portanto, ser admitido na casa de mrs. Crowe
significava tornar-se membro de um clube, e o pagamento exigido era a
contribuição com um número de tópicos de mexerico por ano. O primeiro
pensamento de muita gente quando a casa incendiava ou os canos rebentavam ou a
criada fugia com o mordomo deve ter sido: “Vou correr até mrs. Crowe e lhe
contar isso.” Mas nisso também as distinções precisavam ser observadas. Certas
pessoas tinham o direito de aparecer na hora do almoço; outras, em maior
número, podiam ir entre cinco e sete horas. A classe que tinha o privilégio de
jantar com mrs. Crowe era pequena. Talvez somente mr. Graham e mrs.
Burke realmente jantassem com ela, pois mrs. Crowe não era rica. Seu
vestido preto estava um tanto gasto; seu broche de diamante era sempre o
mesmo broche de diamante. Sua refeição favorita era chá, porque a mesa do chá
pode ser suprida economicamente, e há uma elasticidade no chá que combinava com
o temperamento gregário de mrs. Crowe. Mas fosse almoço ou chá, a refeição
mostrava um carácter distinto, exactamente como um vestido ou a joia que usava
combinavam com ela à perfeição, traziam em si uma moda própria. Haveria um bolo
especial, um pudim especial, algo peculiar à casa e tanto parte dela quanto
Maria, a velha criada, ou mr. Graham, o velho amigo, ou o velho chintz da
poltrona, ou o velho carpete no assoalho.
É verdade que mrs. Crowe deve ter saído algumas vezes,
convidada para almoços e chás de outras pessoas. Mas em sociedade ela parecia
furtiva, fragmentária e incompleta, como se tivesse meramente passado para uma
espiada no casamento ou na reunião noturna ou no funeral, a fim de recolher as
migalhas de notícias de que precisava para completar seu próprio estoque. Por
isso, era raramente induzida a sentar-se; estava sempre voando. Parecia
deslocada entre as mesas e cadeiras dos outros; precisava ter seus próprios chintzes,
seu próprio armário e seu próprio mr. Graham junto a ele a fim de ser
completamente ela própria. À medida que os anos foram passando, as pequenas
incursões no mundo exterior praticamente cessaram. Mrs. Crowe construiu
seu ninho de modo tão compacto e completo que o mundo exterior não tinha uma
pena ou um graveto a lhe acrescentar.
Além disso, seus próprios camaradas lhe
eram tão fiéis que podia confiar neles para transmitir qualquer noticiazinha
que ela devesse acrescentar à sua coleção. Era desnecessário que abandonasse a
própria poltrona junto ao fogo no inverno, ou junto à janela no verão. E com a
passagem dos anos seu conhecimento não se tornou mais profundo — a profundidade
não era a linha de nossa anfitriã — e sim mais redondo e completo. Deste modo,
se uma nova peça fazia um grande sucesso, mrs. Crowe conseguia no dia
seguinte não só registar o facto com uma pitada de mexerico divertido dos
bastidores, como também podia remeter-se a outras estreias, nos anos 1880,
1890, e descrever o que Ellen Terry usara, o que Duse tinha feito, o que o
querido mr. Henry James comentara — nada muito notável talvez; mas
enquanto falava, era como se todas as páginas da vida de Londres nos últimos 50
anos fossem levemente folheadas para sua diversão. Havia muitas, e suas
ilustrações eram vivas e brilhantes, e de pessoas famosas; mas mrs. Crowe
de modo nenhum vivia no passado, de modo nenhum o exaltava acima do presente.
Na verdade, era sempre a última página, o momento presente
que mais importava. O delicioso de Londres era que sempre dava ao indivíduo
algo novo para observar, algo fresco sobre o que falar. Era preciso apenas
manter os olhos abertos e sentar em sua própria poltrona das cinco às sete
horas todos os dias da semana. Enquanto mrs. Crowe sentava-se com os
convidados em torno de si, dava de tempos em tempos uma rápida olhadela de
pássaro por sobre o ombro para a janela, como se tivesse meio olho na rua, meio
ouvido para os carros e ônibus e os gritos dos jornaleiros lá fora. Ora, algo
novo podia estar acontecendo naquele mesmo instante. Não se podia passar tempo
demais no passado: não se devia dar uma atenção total ao presente.
Nada era mais característico e talvez um pouco
desconcertante do que a ansiedade com a qual mrs. Crowe erguia os olhos e
interrompia a frase no meio quando a porta sempre se abria e Maria, que se
tornara muito corpulenta e um pouco surda, anunciava uma nova visita. Quem
estaria prestes a entrar? O que teria a acrescenta à conversa? Mas sua
habilidade em extrair fosse o que fosse que poderiam oferecer e sua destreza em
atirar a notícia no quotidiano, eram tais que nenhum dano ocorria; e fazia parte
de seu peculiar triunfo que a porta jamais se abrisse com demasiada frequência;
o círculo nunca ultrapassava sua possibilidade de controle.
Assim, para conhecer Londres não apenas como um espectáculo
deslumbrante, um mercado, uma corte, uma colmeia de indústria, mas como um
lugar onde pessoas se encontram, conversam, riem, casam-se e morrem, pintam,
escrevem e actuam, mandam e legislam, era essencial conhecermos. Crowe. Era em
sua sala de estar que os inúmeros fragmentos da vasta metrópole pareciam
juntar-se num todo animado, compreensível, divertido e agradável. Viajantes
ausentes por anos, homens esgotados e ressecados pelo sol, recém-chegados da
Índia ou da África, de remotas viagens e aventuras entre selvagens e tigres,
iam directo para a casinha na rua quieta para serem conduzidos novamente ao
coração da civilização numa única pernada. Mas nem a própria Londres podia
manter mrs. Crowe viva para sempre. E é fato que um dia ela já não estava
sentada na poltrona junto ao fogo quando o relógio bateu cinco horas; Maria não
abriu a porta; mr. Graham separara-se do armário. Mrs. Crowe está
morta; e Londres, embora Londres ainda exista, jamais será de novo a mesma
cidade.
Virginia Woolf
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