«Em Louvor das Crianças»
Texto de Eugénio de Andrade
713- «EM LOUVOR DAS CRIANÇAS»
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo
tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse
reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre
demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos
se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres
de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às
crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua
proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade,
mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que
são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas,
as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais
vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem
defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não
diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa
que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina.
Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave
indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que
milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a
terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem
que não somos filhos de Deus.
Eugénio de Andrade
Eugénio de Andrade
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