«A Morte do Porteiro»
Enterro/ Portinari
702- «A MORTE DO PORTEIRO»
Os vendedores dos jornais da tarde anunciavam que a invasão
dos ratos tinha parado. Mas Rieux encontrou o seu doente meio deitado para fora
do leito, com uma das mãos no ventre e a outra em volta do pescoço, vomitando,
com grandes arrancos, uma bílis rosada numa lata de lixo. Após grandes
esforços, sem fôlego, o porteiro voltou a deitar-se. A temperatura era de
trinta e nove e meio, os gânglios do pescoço e os membros tinham inchado, duas
manchas escuras alastravam-se pelo flanco. Queixava-se agora de uma dor
interna.
- Está ardendo - dizia ele -, esta porcaria está ardendo.
A boca fuliginosa obrigava-o a mastigar as palavras e voltava para o médico uns
olhos protuberantes, dos quais a dor de cabeça fazia correr lágrimas. A mulher
olhava com ansiedade para Rieux, que continuava mudo.
- Doutor - perguntou ela -, que é isto?
- Pode ser uma série de coisas. Mas não há ainda nada de certo. Até esta noite,
dieta e depurativo. Deve tomar bastante líquido.
Precisamente, o porteiro sentia-se devorado pela sede. Ao voltar à casa, Rieux
telefonou ao seu colega Ríchard, um dos médicos mais importantes da cidade.
- Não - dizia Richard -, não vi nada de extraordinário.
- Nem febre com inflamações locais?
- Ah! Sim, na verdade, dois casos de gânglios muito inflamados.
- Anormalmente?
- Sim - respondeu Richard -, o normal, você sabe. . .
A noite, de qualquer forma, o porteiro delirava e, com quarenta graus,
queixava-se dos ratos. Rieux tentou um abcesso de fixação. Sob a queimadura da
teribintina, o porteiro berrou:
- Ah, são uns safados.
Os gânglios tinham aumentado, estavam duros e fibrosos ao tacto.
A mulher do porteiro afligia-se:
A mulher do porteiro afligia-se:
- Fique junto dele - ordenou o médico - e, se for necessário, pode me chamar.
No dia seguinte, 30 de Abril, uma brisa já morna soprava sob um céu azul e húmido. Trazia um cheiro de flores que vinha dos bairros mais afastados. Nas
ruas, os ruídos da manhã pareciam mais vivos, mais alegres do que
habitualmente. Em toda a nossa pequena cidade, liberta da apreensão em que
tinha vivido durante a semana, esse era o dia da renovação. O próprio Rieux,
tranquilizado por uma carta da mulher, desceu até a casa do porteiro. E na
verdade, de manhã, a febre caíra para trinta e oito graus. Enfraquecido, o
doente sorria no leito.
- Está melhor, não é verdade, doutor? - perguntou a mulher.
- Vamos esperar um pouco.
Ao meio-dia, porém, a febre subira bruscamente a quarenta graus, o paciente
delirava sem cessar e os vômitos tinham recomeçado. Os gânglios do pescoço eram
dolorosos ao tato, e o doente parecia querer manter a cabeça o mais afastada
possível do corpo. A mulher estava sentada aos pés da cama, segurando levemente
os pés do doente. Olhava para Rieux.
- Ouça - disse ele -, é preciso isolá-lo e tentar um tratamento mais radical.
Vou telefonar para o hospital e vamos levá-lo de ambulância.
Duas horas depois, na ambulância, o médico e a mulher curvavam-se sobre o
doente. Da boca, coberta de fungosidades, saíam fragmentos de palavras: ”Os
ratos”, dizia ele. Esverdeado, com lábios descorados, pálpebras pesadas,
respiração entrecortada e breve, dilacerado pelos gânglios, abatido no fundo da
maca, como se quisesse fechá-la em torno dele ou como se qualquer coisa, vinda
do fundo da terra, o chamasse sem descanso, o porteiro sufocava sob um peso
invisível. A mulher chorava.
- Não há mais esperança, doutor?
- Está morto - disse Rieux.
A morte do porteiro, pode-se dizer, marcou o fim desse período, cheio de sinais
desconcertantes, e o início de outro, relativamente mais difícil, em que a
surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a pouco, em pânico. Nossos
concidadãos - a partir de agora eles se davam conta disso - nunca tinham
pensado que nossa pequena cidade pudesse ser um lugar particularmente designado
para que os ratos morressem ao sol e os porteiros perecessem de doenças
estranhas. Sob esse ponto de vista, era evidente que estavam errados e que suas
ideias precisavam ser revistas. Se tudo tivesse ficado por aí, os hábitos, sem
dúvida, teriam vencido. Mas outros concidadãos nossos, que nem sempre eram
porteiros nem pobres, tiveram de seguir o caminho que Michel fora o primeiro a
tomar. Foi a partir desse momento que começou o medo e com ele a reflexão.
Albert Camus
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