«Uma Estranha Charada»
Conto de Agatha Christie
708- «UMA ESTRANHA CHARADA»
— E esta — disse Jane Helier, completando suas apresentações
— é misse Marple!
Como actriz, ela conseguiu atingir seu intento. Era
claramente o clímax, o gran finale triunfal! Seu tom era uma mistura
de admiração reverente e triunfo.
O estranho é que o objecto tão orgulhosamente proclamado era
apenas uma velhota
solteirona, afável, detalhista. Os olhos dos dois jovens que
haviam sido recém-apresentados a
ela pelos bons ofícios de Jane, mostraram incredulidade e um
traço de desalento.
Eram pessoas de boa aparência; a moça, Charmian Stroud,
esbelta e morena; o homem,
Edward Rossiter, um jovem gigante, amável e de cabelos
loiros.
— Oh! Estamos muito felizes de conhecê-la! — Charmian disse
de um fôlego.
Mas havia dúvida em seus olhos. Ela lançou um olhar rápido e
inquiridor a Jane Helier.
— Querida — disse Jane respondendo ao olhar —, ela é
absolutamente maravilhosa.
Deixe tudo com ela. Eu lhe disse que a traria aqui e trouxe
— e acrescentou para misse Marple:
— Você vai resolver para eles, eu sei. Vai ser
fácil para você.
Misse Marple virou seus plácidos olhos azul-turquesa para
mr. Rossiter.
— Poderia me dizer — ela perguntou — do que se trata tudo
isso?
— Jane é uma amiga nossa — interrompeu Charmian ardendo de
impaciência. —
Edward e eu estamos numa encrenca. A Jane disse que se
pudéssemos vir à sua festa, ela nos
apresentaria a alguém que ia... que iria... que poderia...
Edward veio em seu socorro:
— A Jane nos contou que a senhora é a fina flor dos
detetives, miss Marple!
Os olhos da velha senhora reluziram, mas ela protestou
modestamente:
— Oh, não, não! Nada disso. Ocorre que vivendo numa
cidadezinha como a que eu vivo,
a gente acaba conhecendo bem a natureza humana. Mas vocês me
deixaram realmente curiosa.
Contem-me qual é o problema de vocês.
— Temo que seja terrivelmente banal... apenas um tesouro
enterrado — disse Edward.
— Mesmo? Mas isso parece muito excitante!
— Eu sei. Como A Ilha do Tesouro. Mas nosso problema
não tem os toques românticos
usuais. Nenhum ponto num mapa indicado por uma caveira e
ossos cruzados, nenhuma
orientação como “quatro passos para a esquerda, oeste por
norte”. É terrivelmente prosaico...
indica apenas onde nós devemos cavar.
— Vocês já tentaram?
— Posso dizer que cavamos cerca de oito quilômetros
quadrados! O local está pronto
para virar uma horta comercial. Só estamos discutindo se
vamos plantar abobrinhas ou
batatas.
Charmian o cortou bruscamente:
— Que acha de lhe contar logo tudo sobre o caso?
— Mas, claro, minha querida.
— Então vamos encontrar um lugar calmo. Venha, Edward.
Ela abriu caminho pela sala apinhada de gente e repleta de
fumaça, e eles subiram a
escada até uma saleta de estar no segundo andar.
Mal eles se sentaram, Charmian começou intempestivamente:
— Bem, aí vai! A história começa com o tio Mathew, tio, ou
melhor, tio-avô de nós dois.
Ele era muito velho. Edward e eu éramos seus únicos
parentes. Ele gostava de nós e sempre
declarou que quando morresse deixaria seu dinheiro para nós
dois. Bem, ele morreu em março
passado e deixou tudo que tinha para ser dividido igualmente
entre Edward e eu. O que acabei
de dizer parece rude... não quis dizer que foi bom que ele
tenha morrido... na verdade, nós
éramos muito afeiçoados a ele, mas já fazia algum tempo que
ele estava doente.
— A questão é que o “tudo” que ele deixou se revelou, na
prática, absolutamente nada. E
isso, francamente, foi um pequeno golpe para nós dois, não
foi, Edward?
O amável Edward concordou.
— Sabe — ele disse —, nós contávamos um bocado com isso.
Isto é, quando a gente
sabe que vai receber uma bolada de dinheiro, a gente...
bem... não se empenha para ganhar a
vida por conta própria. Eu estou no Exército e não recebo
nada além do meu soldo, a
Charmian não tem um tostão. Trabalha como contrarregra num
teatro de repertório. Muito
interessante, e ela gosta, mas dinheiro que é bom, nada. Nós
contávamos em nos casar, mas
não estávamos preocupados com o lado pecuniário porque
sabíamos que ficaríamos muito
bem de vida algum dia.
— E agora, como vê, não ficamos! — disse Charmian. — Além
disso, Ansteys é a
propriedade da família, e Edward e eu a amamos, e
provavelmente teremos que vendê-la. E
Edward e eu sentimos que não conseguiremos suportar isso!
Mas se não acharmos o dinheiro
do tio Mathew, teremos de vender.
— Sabe, Charmian, ainda não chegamos ao ponto vital — disse
Edward.
— Bem, fale você, então.
Edward virou-se para misse Marple.
— É o seguinte. À medida que envelhecia, o tio Mathew foi
ficando cada vez mais
cismado. Ele não confiava em ninguém.
— Muito sábio da parte dele — disse misse Marple. — A
depravação da natureza humana
é inacreditável.
— Bem, a senhora pode ter razão. Seja como for, o tio Mathew
pensava assim. Ele tinha
um amigo que perdeu todo seu dinheiro em um banco, e outro
que foi arruinado por um
advogado fujão, e ele próprio perdeu algum dinheiro numa
companhia fraudulenta. Ele chegou
ao ponto de sustentar, durante muito tempo, que a única
coisa segura a fazer era converter seu
dinheiro em lingotes sólidos e enterrá-lo.
— Ah — exclamou misse Marple —, começo a entender.
— Sim. Amigos discutiram com ele, apontaram que ele não
receberia nenhum juro dessa
maneira, mas ele sustentava que isso realmente não tinha
importância. O grosso do seu
dinheiro, ele dizia, deveria ser “mantido numa caixa debaixo
da cama ou enterrado no
jardim”. Essas foram suas palavras.
— E quando ele morreu — Charmian prosseguiu —, não deixou
quase nada em ações,
embora fosse muito rico. De modo que nós pensamos que foi
isso que ele deve ter feito.
— Descobrimos que ele tinha vendido ações e sacado grandes
somas de dinheiro de
tempos em tempos, e ninguém sabe o que fez com elas. Mas
parece provável que ele tenha
vivido de acordo com seus princípios, comprado ouro e o
enterrado — Edward explicou.
— Ele não disse nada antes de morrer? Deixou algum papel?
Alguma carta?
— Essa é a parte desesperadora da coisa. Não deixou. Ficou
inconsciente por alguns
dias, mas se reanimou antes de morrer. Ele olhou para nós e
deu uma risadinha... uma
risadinha fraca, apagada. Ele disse “Vocês ficarão bem,
meu lindo casal de pombinhos”. E aí
ele deu um tapinha no olho, seu olho direito, e piscou para
nós. E logo em seguida... morreu.
Pobre tio Mathew.
— Ele deu um tapinha no olho — disse misse Marple pensativa.
Edward disse ansiosamente:
— Isso faz algum sentido para a senhora? Me fez lembrar uma
história de Arsène Lupin
em que havia alguma coisa oculta no olho de vidro de um
homem. Mas o tio Mathew não tinha
um olho de vidro.
Misse Marple abanou a cabeça.
— Não... não consigo pensar em nada por enquanto.
— A Jane nos disse que a senhora indicaria na hora onde
cavar! — Charmian disse,
decepcionada.
Misse Marple sorriu.
— Não sou tão feiticeira, sabe. Não conheci o seu tio, ou
que tipo de homem ele era, e
não conheço a casa ou o terreno.
— E se os conhecesse? — Charmian disse.
— Bem, deve ser bem simples, de fato, não deve? — disse misse
Marple.
— Simples! — disse Charmian. — Venha até Ansteys e veja se é
simples!
É possível que ela não tenha feito o convite a sério, mas
misse Marple disse prontamente:
— Bem, minha querida, é muita gentileza sua. Eu sempre quis
ter a chance de procurar
um tesouro escondido. E — acrescentou, olhando para eles com
um sorriso pudico radiante —
com um interesse amoroso, também!
— Viu só! — disse Charmian, gesticulando dramaticamente.
Eles haviam terminado um grande giro por Ansteys. Haviam
contornado a horta,
totalmente revirada. Haviam atravessado os pequenos bosques,
onde o entorno de cada árvore
importante fora escavado, e observado entristecidos a
superfície esburacada do antes liso
gramado. Haviam subido até o sótão, onde velhos baús e arcas
haviam sido pilhados de seus
conteúdos. Haviam descido aos porões, onde ladrilhos do piso
haviam sido arrancados
deliberadamente de seus encaixes. Haviam feito medições e
dado pancadinhas em paredes, e
haviam mostrado a misse Marple cada peça de mobília antiga
que continha ou poderia ser
suspeita de conter uma gaveta secreta.
Sobre uma mesa na sala de desjejum havia uma pilha de
papéis, todos os papéis que o
falecido Mathew Stroud havia deixado. Nenhum fora destruído,
e Charmian e Edward criaram
o hábito de voltar a eles a todo momento, vasculhando
atentamente contas, convites e
correspondência comercial na esperança de topar com uma
pista que passara despercebida.
— Consegue pensar em algum lugar que não olhamos? —
perguntou Charmian,
esperançosa.
Misse Marple abanou a cabeça.
— Parece que vocês foram muito meticulosos, minha querida.
Talvez, se posso dizer, um
tantinho meticulosos demais. Sabem, eu sempre penso que
é preciso ter um plano. É como
minha amiga, mrs. Eldritch, ela tinha uma ótima criadinha
que lustrava lindamente o linóleo,
mas ela era tão meticulosa que lustrava demais o piso do
banheiro, e, um dia, quando mrs.
Eldritch estava saindo do banho o capacho de cortiça
escorregou sob seus pés, e ela teve uma
queda muito feia, aliás, quebrou a perna! Muito embaraçoso,
porque a porta do banheiro
estava trancada, é claro, e o jardineiro teve de pegar uma
escada e entrar pela janela...
terrivelmente angustiante para mrs. Eldritch, que sempre foi
uma mulher muito recatada.
Edward se remexia sem parar.
— Por favor, me perdoe — misse Marple disse rapidamente. —
Tenho a mania, eu sei, de
sair pela tangente. Mas uma coisa puxa outra. E às vezes
isto é útil. O que eu estava tentando
dizer é que talvez se nós tentássemos aguçar nossa
sagacidade e pensar num lugar provável...
Edward cortou sua fala:
— Pense em um, misse Marple. Os cérebros da Charmian e o meu
agora são lindos
vazios!—
Querido, querida. É claro... é estafante para vocês. Se não
se importam, vou dar uma
espiada em tudo isso — ela apontou para os papéis sobre a
mesa. — Isto é, se não houver
nada privado... não quero parecer uma bisbilhoteira.
— Oh, tudo bem. Mas temo que não encontrará nada.
Ela sentou-se à mesa e examinou metodicamente o maço de
documentos. Ao recolocar
cada um no lugar, ela os separava automaticamente em
montículos. Quando terminou, ficou
sentada olhando para frente por alguns minutos.
Edward perguntou, não sem um traço de malícia:
— E então, misse Marple?
Misse Marple voltou a si com um pequeno sobressalto.
— Desculpe-me. Muito proveitoso.
— Descobriu alguma coisa relevante?
— Oh, não, nada disso, mas acredito que sei que tipo de
homem era seu tio Mathew.
Muito parecido com meu próprio tio Henry, eu creio. Gosta de
piadas bem óbvias. Um
solteiro, evidentemente... me pergunto por quê... talvez uma
decepção antiga? Metódico até
certo ponto, mas não muito afeito a se amarrar... poucos
solteiros são assim!
Pelas costas de misse Marple, Charmian fez um sinal para
Edward. O sinal dizia: Ela está
gagá.
Miss Marple continuara a falar alegremente de seu falecido
tio Henry.
— Gostava muito de trocadilhos, e como. E, para algumas
pessoas, trocadilhos são uma
chatice. Um mero jogo de palavras pode ser muito irritante.
Era um homem desconfiado,
também. Estava sempre convencido de que a criadagem o estava
roubando. E, às vezes, é
claro, ela estava, mas não sempre. A coisa se apoderou dele,
pobre homem. Perto do fim, ele
suspeitava que estivessem adulterando a sua comida, e
finalmente se recusou a comer qualquer
coisa exceto ovos cozidos! Querido tio Henry, ele foi uma
alma tão alegre numa época.
Gostava muito de seu café após o jantar. Ele sempre dizia
“Este café é bem mourisco”,
querendo dizer, entendem, que gostaria de um pouco mais.
Edward sentiu que se ouvisse mais alguma coisa sobre o tio
Henry ficaria louco.
— Gostava de pessoas jovens também — prosseguiu misse Marple
—, mas tendia a
arreliá-las um pouco, se entendem o que eu digo. Costumava
pôr sacos de doces onde uma
criança simplesmente não conseguiria alcançá-los.
Deixando a polidez de lado, Charmian disse:
— Ele me parece horrível!
— Oh, não, querida, apenas um velho solteirão, sabe, e pouco
acostumado com crianças.
E ele não era nada estúpido, aliás. Costumava guardar uma
boa quantia de dinheiro na casa, e
tinha um cofre para colocá-lo. Fazia um estardalhaço sobre
ele... sobre como ele era seguro.
De tanto ele falar, ladrões entraram uma noite e abriram um
buraco no cofre com um
dispositivo químico.
— Bem feito para ele — disse Edward.
— Oh, mas não havia nada no cofre — disse misse Marple. —
Percebem, ele na verdade
guardava o dinheiro em alguma outra parte... atrás de alguns
volumes de sermões na
biblioteca, aliás. Dizia que as pessoas jamais tiravam um
livro daquele tipo da estante!
Edward a interrompeu excitadamente:
— Eu digo, é uma ideia e tanto. Que tal a biblioteca?
Mas Charmian abanou a cabeça com desdém.
— Acha que não pensei nisso? Verifiquei todos os livros na
terça-feira da semana
passada, quando você foi a Portsmouth. Tirei-os para fora,
sacudi cada um. Nada ali.
Edward suspirou. Depois, levantando-se, ele tratou de se livrar
diplomaticamente de sua
decepcionante convidada.
— Foi extrema bondade sua ter vindo como veio e tentado nos
ajudar. Pena que tenha
sido tudo um fracasso. Sinto termos tomado tanto tempo seu.
Mas... vou tirar o carro, e a
senhora poderá pegar o trem das três e meia...
— Oh — disse misse Marple —, mas nós precisamos encontrar o
dinheiro, não é? Não
deve desistir, mr. Rossiter. “Se de inicio não consegues,
tenta, tenta, tenta de novo.”
— Quer dizer que vai... continuar tentando?
— Estritamente falando — disse miss Marple —, ainda não
comecei. “Primeiro pegue
sua lebre...”, como diz mrs. Beaton em seu livro de
culinária... um livro maravilhoso, mas
extremamente caro; a maioria das receitas começa com “Pegue
um quarto de creme de leite e
uma dúzia de ovos”. Deixe-me ver, onde é que eu estava? Oh,
sim. Bem, por assim dizer, nós
pegamos nossa lebre, sendo a lebre, é claro, seu tio Mathew,
só nos restando decidir agora
onde ele teria escondido o dinheiro. Deve ser bem simples.
— Simples? — perguntou Charmian.
— Oh, sim, querida. Estou certa de que ele teria feito a
coisa óbvia. Uma gaveta secreta,
esta é a minha solução.
Edward disse secamente:
— Não se podem pôr barras de ouro numa gaveta secreta.
— Não, não, claro que não. Mas não há razão para acreditar
que o dinheiro esteja em
barras de ouro.
— Ele sempre costumava dizer...
— O mesmo fazia meu tio Henry sobre o seu cofre! De modo que
eu deveria suspeitar
fortemente de que isso era apenas um subterfúgio.
Diamantes... estes sim poderiam estar
facilmente numa gaveta secreta.
— Mas nós olhamos em todas as gavetas secretas. Chamamos um
carpinteiro para
examinar os móveis.
— Chamaram, querida? Foi muito inteligente da sua parte. Eu
sugeriria que a
escrivaninha pessoal de seu tio seria o mais provável. Seria
aquela alta encostada lá na
parede?
— Sim. E vou lhe mostrar — Charmian foi até o móvel e abriu
o tampo. Dentro havia
escaninhos e pequenas gavetas. Ela abriu então uma
portinhola no centro e tocou numa mola
dentro da gaveta da esquerda. O fundo do recesso central deu
um estalo e deslizou para frente.
Charmian o puxou para fora, revelando um pequeno espaço oco
embaixo.
Ele estava vazio.
— Mas não é uma coincidência? — exclamou misse Marple. — O
tio Henry tinha uma
escrivaninha igualzinha a essa, só que a dele era de
nogueira e esta é de mogno.
— Seja como for — disse Charmian —, não há nada ali, como
pode ver.
— Imagino — disse misse Marple — que seu carpinteiro era um
jovem. Ele não sabia
tudo. As pessoas eram muito habilidosas quando faziam
esconderijos naqueles tempos. Havia
como que um segredo dentro de um segredo.
Ela tirou um grampo de seu coque bem arrumado de cabelos
grisalhos. Endireitando-o,
ela enfiou a ponta no que parecia um minúsculo buraco de
cupim em um lado do recesso
secreto. Com alguma dificuldade, ela puxou uma gavetinha.
Nela havia um maço de cartas
desbotadas e um papel dobrado.
Edward e Charmian saltaram juntos sobre o achado. Com os
dedos tremendo, Edward
desdobrou o papel. Ele o deixou cair com uma exclamação de
desgosto.
— Uma droga de receita de culinária. Presunto assado!
Charmian estava desatando uma fita que amarrava o maço de
cartas.
Ela tirou uma e deu uma olhada. — Cartas de amor!
Misse Marple reagiu com entusiasmo vitoriano:
— Que coisa interessante! Talvez a razão porque seu tio
nunca se casou.
Charmian leu em voz alta:
Meu sempre querido Mathew, devo confessar que parece que faz
muito tempo que recebi sua última carta. Tento
me ocupar com as várias tarefas que me foram conferidas, e
amiúde digo a mim que sou mesmo uma afortunada
de ver tanta coisa do globo, embora tivesse pouca ideia de
que quando fosse para a América viajaria para estas
ilhas distantes!
Charmian fez uma pausa:
— De onde ela veio? Oh! Havaí! — e prosseguiu:
Estes nativos, coitados, ainda estão longe de ver a luz.
Ainda vivem num estado selvagem e despidos, e passam a
maior parte do tempo nadando e dançando, adornando-se com
guirlandas de flores. Mr. Gray fez algumas
conversões, mas é um trabalho árduo, e ele e mrs. Gray ficam
tristemente desencorajados. Tento fazer tudo que
posso para animá-lo e encorajá-lo, mas eu também fico com
frequência triste por uma razão que você pode
imaginar, querido Mathew. A ausência é uma provação severa
para um coração que ama. Seus renovados votos e
protestos de afeição me alegraram enormemente. Agora e
sempre você tem meu fiel e devotado coração, querido
Mathew, e eu continuo sendo o seu sincero amor, Betty
Martin.
PS — Endereço minha carta protegida para nossa amiga mútua,
Matilda Graves, como sempre. Espero que
Deus me perdoe esse pequeno subterfúgio.
Edward assobiou:
— Uma missionária! Então era esse o romance do tio Mathew.
Fico tentando imaginar
por que eles nunca se casaram.
— Ela parece ter viajado pelo mundo todo — disse Charmian,
examinando as cartas. —
Ilha Maurício... toda sorte de lugares. Provavelmente morreu
de febre amarela ou algo assim.
Uma risadinha suave os sobressaltou. Misse Marple estava
aparentemente se divertindo
muito.—
Bem, bem — disse ela. — Quem diria!
Ela estava lendo a receita de presunto assado. Ao notar seus
olhares curiosos, ela leu em
voz alta:
— Presunto assado com espinafre. Pegue uma bonita peça de
presunto, recheie-a com
cravos, e cubra com açúcar mascavo. Asse em forno baixo.
Sirva rodeado por puré de
espinafre. O que acham disso, agora?
— Penso que parece horrível — disse Edward.
— Não, não, na verdade seria muito bom... mas o que pensam da
coisa toda?
Um súbito raio de luz iluminou a face de Edward.
— Acha que é um código... algum tipo de criptograma? — ele
comprou a ideia. — Sabe,
Charmian, poderia ser, não é? Se não, por que colocar uma
receita de culinária numa gaveta
secreta?
— Exatamente — disse misse Marple. — Muito, muito
significativo.
— Eu sei o que pode ser — disse Charmian. — Tinta invisível!
Vamos aquecê-lo. Ligue
o fogão elétrico.
Edward assim fez, mas não surgiram sinais de escrita com o
tratamento.
Misse Marple tossiu.
— O que eu realmente penso, sabem, é que vocês estão
complicando demais a coisa. A
receita é apenas um indício, por assim dizer. Creio que as
cartas é que são mais significativas.
— As cartas?
— Em especial — disse misse Marple —, a assinatura.
Mas Edward mal a ouviu e chamou cheio de excitação:
— Charmian! Venha aqui! Ela está certa. Veja... os envelopes
são velhos, isso é fato, mas
as cartas foram escritas muito depois.
— Exatamente — disse misse Marple.
— Elas são falsamente velhas apenas. Aposto qualquer coisa
que o velho tio Mat as falsificou pessoalmente...
— Exatamente — disse misse Marple.
— A coisa toda é um embuste. Nunca existiu uma missionária.
Deve ser um código.
— Minhas caras, caras crianças... não há mesmo nenhuma
necessidade de tornar tudo tão difícil. Seu tio era de fato um homem muito
simples. Ele teve de fazer sua piadinha, apenas isso.
Pela primeira vez eles lhe prestaram inteira atenção.
— O que exatamente quer dizer, misse Marple? — perguntou
Charmian.
— Quero dizer, querida, que você está segurando o dinheiro
em sua mão neste minuto.
Charmian olhou para baixo.
— A assinatura, querida. Isso revela tudo. A receita é
apenas um indício. Retire todos os cravos, o açúcar mascavo e o resto todo. O
que ela é de fato? Ora, presunto e espinafre, é claro! Presunto e
espinafre! Significando... Bobagem! Então está claro que as cartas é que são
importantes. E aí se você levar em consideração o que seu tio fez pouco antes
de morrer. Ele deu uma batidinha no olho, você disse. Bem, aí está... Isso lhe
dá a pista, percebe.
— Nós estamos loucos, ou a senhora está? — Charmian disse.
— Seguramente, minha querida, você deve ter ouvido a
expressão “por fora bela viola, por dentro pão bolorento”, ou ela já terá caído
em desuso? Que incrível!
Edward arquejou, seus olhos fitavam a carta em sua mão:
— Betty Martin...
— Claro, mr. Rossiter. Como disse agora há pouco... Não
havia tal pessoa. As cartas foram escritas por seu tio, e eu imagino que ele se
divertiu um bocado ao escrevê-las! Como diz, a escrita nos envelopes é muito
mais antiga... Aliás, o envelope não poderia pertencer às cartas, de todo modo,
porque o carimbo postal da que você está segurando é de 1851 — ela fez uma
pausa. E prosseguiu enfaticamente: — Mil oitocentos e cinquenta e um. E isso
explica tudo, não é?
— Não para mim — disse Edward.
— Bem, é claro — disse misse Marple. — Ouso dizer que não
significaria para mim não fosse meu sobrinho-neto Lionel. Um garotinho tão
querido e um apaixonado colecionador de selos. Sabe tudo sobre selos. Foi ele
que me contou sobre os selos raros e caros e que uma maravilhosa nova
descoberta fora colocada em leilão. E eu me lembro de ele mencionar um selo —
um azul de dois cents de mil oitocentos e cinquenta e um. Ele saiu
por algo em torno de vinte e cinco mil dólares, creio. Caramba! Eu devia
imaginar que os outros selos são também raros e valiosos. Seu tio seguramente
os comprou por meio de intermediários e
cuidadosamente “encobriu suas pegadas” como dizem em
histórias policiais.
Edward gemeu e enterrou o rosto nas mãos.
— O que foi? — perguntou Charmian.
— Nada. Foi só o pensamento horrível de que, não fosse por
misse Marple, nós poderíamos ter queimado estas cartas por decente
cavalheirismo.
— Ah — disse misse Marple —, é precisamente isso que esses
velhos cavalheiros piadistas não percebem. O tio Henry, lembram, enviou a sua
sobrinha favorita uma nota de cinco libras de presente de Natal. Ele a colocou
num cartão de Natal, selou o cartão com goma, e escreveu nele “Amor e boas
festas. Lamento que isso seja tudo que posso lhe dar este ano”. Ela, pobre
menina, ficou aborrecida com o que achou que fosse sovinice da parte dele e o
atirou direto no fogo; aí, é claro, ele teve de dar-lhe outra.
Os sentimentos de Edward para com o tio Henry haviam sofrido
uma brusca e completa mudança.
Agatha Christie
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