«Eveline»
Mulher à Janela/ Hassam
709- «EVELINE»
Estava sentada à janela, vendo a noite invadir a avenida.
Sua cabeça inclinava-se contra as cortinas e em suas narinas estava o cheiro de
cretone empoeirado. Estava cansada.
Poucas pessoas passavam. O homem da última casa passou
rumo ao lar; ela escutou seus passos sobre o pavimento de concreto e depois
esmagando o trecho cinza que ficava antes das novas casas vermelhas.
Antigamente havia um campo lá, onde eles brincavam todas as tardes com outras
crianças. Então um homem de Belfast comprou a área e construiu casas nela – não
casas pequenas e marrons como as suas, mas radiantes casas com tetos
brilhantes. As crianças da avenida costumavam brincar juntas naquela área – os
Devines, os Waters, os Dunns, pequeno Keogh, o aleijado, ela e seus irmãos e
irmãs. Ernest, no entanto, nunca brincava: ele já era bastante crescido. Seu
pai frequentemente os enxotava do campo com uma vara; mas geralmente o pequeno
Keogh conseguia impedir e os alertava quando via seu pai vindo. Ainda assim,
eles pareciam ter sido felizes então. Seu pai não era tão mau; e, além disso,
sua mãe estava viva. Aquilo foi há muito tempo; ela e seus irmãos e irmãs
estavam agora todos crescidos; sua mãe estava morta. Tizzie Dunn estava morta,
também, e os Waters tinham voltado para a Inglaterra. Tudo muda. Agora ela iria
embora, como os outros, deixaria seu lar.
Lar! Olhou o quarto em volta, revendo todos os objetos
familiares que havia espanado uma vez por semana durante tantos anos. Talvez
ela nunca mais visse novamente aqueles objetos familiares dos quais nunca
sonhara ser separada. E ainda assim, durante todos aqueles anos, ela nunca
descobrira o nome do padre cuja fotografia amarelada pendia na parede, sobre o
harmônio quebrado ao lado de um impresso colorido com promessas à Abençoada
Maria Margarete Alacoque. Ele havia sido um colega de escola de seu pai. Toda
vez que ele mostrava a fotografia a um visitante, falava com casualidade:
– Ele está em Melbourne.
Ela consentira em ir embora, em deixar sua casa. Era
aquela uma decisão inteligente? Tentou pesar os dois lados da questão. Em casa,
de qualquer forma, ela tinha abrigo e comida. Claro, tinha que trabalhar duro
tanto em casa quanto no emprego. O que diriam dela na Loja quando descobrissem
que havia fugido com um parceiro? Diriam que era uma tola, talvez; e seu lugar
seria preenchido através de um anúncio. A senhorita Gavan ficaria satisfeita.
Ela sempre lhe aborrecera, especialmente quando havia gente ouvindo.
– Senhorita Hill, não vê que essas damas estão
esperando?
– Apresse-se, senhorita Hill, por favor.
Ela não derramaria muitas lágrimas por deixar a Loja.
Em sua nova casa, em um distante e desconhecido país,
não seria assim. Ela estaria casada – ela, Eveline. As pessoas lhe tratariam
com respeito. Não seria tratada como o fora sua mãe. Mesmo agora, embora
tivesse dezanove anos, às vezes se sentia em perigo por conta da violência do
pai. Sabia que era aquilo que lhe havia causado palpitações. Quando estavam
crescendo, ele nunca implicara com ela, como costumava fazer com Harry e
Ernest, porque ela era uma garota; mas ultimamente ele começara a ameaçá-la e
dizer o que seria capaz de lhe fazer em nome de sua mãe morta. E agora não
havia ninguém para protegê-la. Ernest estava morto e Harry, que vivia na igreja
trabalhando com ornamentos, estava sempre em algum ponto distante do país. Além
disso, os inevitáveis bate-bocas sobre dinheiro nas noites de sábado haviam
começado a cansá-la incrivelmente. Ela sempre dava todo seu salário – sete
shillings – e Harry sempre mandava o que podia, mas o problema era conseguir
qualquer dinheiro de seu pai. Ele dizia que ela desperdiçava dinheiro, que não
tinha juízo, que não daria seu dinheiro arduamente conseguido para ser jogado
na rua, e muito mais, porque geralmente ele estava muito mal nas noites de
sábado. No final ele acabava dando o dinheiro e perguntando se ela pensava em
comprar a jantar de domingo. Então ela tinha que correr o mais rápido possível
para fazer as compras, segurando firme sua bolsa de couro enquanto abria
caminho a cotoveladas pela multidão e retornava tarde pra casa com seu pacote
de provisões. Ela tinha trabalho para manter a casa unida e cuidar para que as
duas crianças deixadas sob seus cuidados fossem regularmente à escola e se
alimentassem regularmente. Era um trabalho duro – uma vida dura –, mas agora
que ela estava perto de ir embora, não a via como uma vida totalmente
indesejável.
Estava perto de explorar outra vida com Frank. Frank
era muito amável, viril, generoso. Iria embora com ele na embarcação
nocturna e seria sua esposa e viveriam em Buenos Aires, onde ele tinha uma casa
à espera. Como ela lembrava bem a primeira vez que o havia visto! Ele estava
alojado em uma casa na estrada principal que ela costumava visitar. Parecia há
poucas semanas. Ele estava ao portão, o chapéu pontudo para trás e o cabelo
tombado sobre o rosto de bronze. Então se conheceram. Ele ia encontrá-la fora
da Loja toda noite e a acompanhava até em casa. Levou-a para ver “A Garota
Boémia”, e ela se sentiu exultante, sentada numa parte do teatro em que não
costumava sentar. Ele gostava muito de música e cantava um pouco. As pessoas
sabiam que eles estavam flertando e, quando ele cantava sobre a moça que ama um
marinheiro, ela sempre se sentia prazerosamente inquieta. Ele costumava
chamá-la Poppens, por diversão. No começo tinha sido excitante para ela o
simples fato de ter um amigo, de modo que começou a gostar dele. Ele contava
histórias de países distantes. Começara como empregado de convés, ganhando um
pond por mês num navio da Allan Line que ia ao Canadá. Contou-lhe os nomes dos
navios em que esteve e os diferentes serviços que fizera. Navegara pelo
Estreito de Magellan e contou-lhe histórias dos terríveis patagónios. Disse que
assentou em Buenos Aires e tinha voltado ao antigo país apenas para umas
férias. Claro, o pai de Eveline descobrira o caso entre os dois e proibiu a
filha de falar com Frank.
– Eu conheço esses marinheiros, disse ele.
Certo dia ele brigou com Frank e, depois disso, ela
tinha que encontrar seu amor secretamente.
A noite se aprofundou na avenida. O branco das duas
cartas em seu colo ficou indistinto. Uma era para Harry; a outra era para seu
pai. Ernest tinha sido seu preferido, mas também gostava de Harry. Seu pai
estava envelhecendo; ele sentiria sua falta. Às vezes ele podia ser amável. Não
fazia muito tempo, quando ela estivera de cama por um dia, ele lera uma
história de fantasma e fizera torradas. Num outro dia, quando sua mãe era viva,
eles foram todos para um piquenique na Colina Howth. Lembrava do pai mexendo no
chapéu da mãe para fazer as crianças rirem.
O tempo estava se esgotando, mas ela continuava sentada à
janela, dobrando a cabeça contra a cortina da janela, inalando o cheiro de
cretone empoeirado. De algum lugar da avenida ela podia ouvir um órgão tocando.
O ar lhe era familiar. Estranho que ele retornasse exatamente naquela noite,
para lembrá-la das promessas à mãe, a promessa de manter a casa unida o máximo
que pudesse. Lembrava da última noite da mãe doente; ela estava novamente no
quarto escuro no outro lado da sala, e lá fora podia ouvir um melancólico som
da Itália. O tocador do órgão tinha sido mandado embora e deram-lhe seis pence.
Lembrava do pai aprumando-se de volta ao quarto:
– Malditos italianos, vindo até aqui!
Enquanto meditava, a comovente visão do estado da mãe
acabou por enfeitiçar o seu ser – aquela vida de sacrifícios triviais
encerrando-se na loucura final. Arrepiou-se ao ouvir novamente a mãe pronunciar
com uma insistência ridícula:
– Derevaun Seraun! Derevaun Seraun!
Ergueu-se em um repentino impulso de terror. Escapar!
Tinha que escapar! Frank a salvaria. Ele lhe daria vida, talvez amor, também.
Ela queria viver. Por que tinha que ser infeliz? Tinha direito à felicidade.
Frank a envolveria nos braços. Ele a salvaria.
Ela estava no meio da multidão em movimento no porto de
North Wall. Ele segurou sua mão, e ela sabia que ele lhe estava falando,
dizendo repetidamente algo sobre a passagem. O porto estava cheio de soldados
com malas marrons. Através das amplas entradas dos barracos ela vislumbrou o
preto da embarcação, que estava ao lado do muro do cais. Não respondeu nada.
Sentiu a face pálida e gélida e, do labirinto de seu sofrimento, rogou a Deus
para lhe indicar o caminho, para mostrar qual era sua missão. A embarcação
soltou na névoa um silvo triste. Se ela partisse, amanhã estaria no mar com
Frank, navegando rumo a Buenos Aires. Suas passagens estavam reservadas. Seria
possível a ela voltar atrás, depois de tudo que ele tinha feito? Seu sofrimento
despertou uma náusea em seu corpo e ela continuou movendo os lábios em uma
fervorosa e silenciosa prece.
Um sino tiniu em seu coração. Ela o sentiu tomar sua
mão:
– Venha!
Todos os mares do mundo tombaram em seu peito. Ele
tentava levá-la rumo a eles: ele a afogaria. Ela agarrou com ambas as mãos a
grade de ferro.
– Venha!
Não! Não! Não! Era impossível. Em frenesi, suas mãos
apertavam o ferro. Do meio dos mares ela soltou um grito de angústia!
– Eveline! Evvy!
Ele passou da barreira e lhe disse para segui-lo.
Ordenaram-no seguir em frente, mas ele ainda a chamava. Ela lhe dirigiu um
rosto branco, passivo, como um animal indefeso. Seus olhos não davam nenhum
sinal de amor ou despedida ou agradecimento.
James Joyce
Sem comentários:
Enviar um comentário