sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

OUTROS CONTOS

«Camarada, eu te Ensinarei o Furor!», por André Gide.

«Camarada, eu te Ensinarei o Furor!»
Frutos da Terra/ Hans Happ

737- CAMARADA, EU TE ENSINAREI O FUROR!»

[Excerto de 'Os Frutos da Terra']

"Tu não me dominarás, tristeza! Ouço um canto suave através das lamentações, dos soluços. Um canto cujas palavras invento a meu talante. Um canto que me fortalece o coração quando o sinto prestes a ceder. Um canto que encho com teu nome, Camarada, e com um apelo aos que com ânimo responderão:
            
Erguei-vos frontes inclinadas! Olhares voltados para os túmulos, erguei-vos. Não para o céu vazio, mas para o horizonte da terra. Para onde te conduzirão teus passos, Camarada, regenerado, valente, disposto a sair desses lugares empestados pelos mortos; deixa tua Esperança transportar-te para a frente. Não permitas que nenhum amor ao passado te retenha... Lança-te para o Futuro! A poesia, cessa de transferi-la para o sonho; saibas vê-la na realidade. E se não estiver nela ainda, coloca-a lá!

As sedes não estancadas, os apetites insatisfeitos, os frémitos, as esperas vãs, as fatigas, as insónias... que tudo te seja poupado, ah, como o desejaria, Camarada! Inclinar para tuas mãos, teus lábios, os galhos de todas as árvores frutíferas. Fazer ruírem os muros, abaterem-se diante de ti as barreiras sobre as quais o açambarcamento ciumento acaba de escrever: "Entrada proibida. Propriedade particular". Obter enfim que te caiba a recompensa integral de teu trabalho. Erguer tua fronte e permitir enfim que teu coração se encha não mais de ódio e inveja, mas sim de Amor! Sim, permitir enfim que todas as carícias do ar, os raios do Sol e todos os convites à felicidade te atinjam.
            
Ó tu para quem escrevo – a quem chamava outrora por um nome que hoje se me afigura demasiado dorido, a quem eu agora chamo Camarada – não admitas mais nada de dorido no teu coração.
            
Saibas obter de ti o que torne a queixa inútil. Não implores mais de ourem o que podes obter.
            
Eu vivi; é tua vez agora. É em ti que doravante se prolongará minha juventude. Dou-te procuração. 

Se sentir que sucedes a mim, aceitarei melhor a morte. Transfiro-te minha Esperança.
            
Sentir-te corajoso permite-me deixar a vida sem lamentos. Toma minha alegria. Faze tua felicidade do aumento da de todos. Trabalha e luta e nenhum mal aceites que possas mudar. Cumpre que saibas repetir sem cessar: depende de mim! Ninguém se conforma sem covardia com todo o mal que depende dos homens. Deixa de acreditar, se jamais o acreditaste, que a sabedoria está na resignação; ou deixa de pretender à sabedoria.
            
Camarada, não aceites a vida tal qual a propõem os homens. Não cesses de te persuadir que ela poderia ser mais bela, a vida; a tua e a dos outros homens; não uma outra, futura, que nos consolasse desta e nos ajudasse a aceitar sua miséria. Não aceites! Quando começares a compreender que o responsável por todos os males da vida não é Deus, que os responsáveis são os homens, não te conformarás mais com esses males.
           
            Não sacrifiques aos ídolos...."

André Gide

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