«A Sombra»
A Grande Sombra/ Johan Tischbein
730- «A SOMBRA»
Foi exactamente durante o jantar anual da empresa que Valter teve a sensação de
que era seguido. Na altura do discurso final. Falava o doutor Raimondi, quando
a sombra passou veloz, recortando-se por instantes no fundo da sala. Valter
sentiu um arrepio súbito, ergueu-se de repente e, sem esperar o fim do
arrazoado e as palmas consequentes, saiu pela porta fora entre a estranheza dos
colegas.
Na rua olhou em volta. Uma rua calma, iluminada, burguêsmente nocturna, sem
tragédias à vista. Isso deu-lhe um certo alívio. Afinal fora apenas impressão
sua, uma sombra que lhe parecera, talvez só a ele, ser mais do que uma sombra a
segui-lo.
Foi andando devagar pelo passeio, acendeu um cigarro e olhou uma montra de
artigos para caçador, admirando um magnífico tigre que, em posição de rosnido
feroz, propagandeava uma marca de cartuchos para assassinar coelhos. E, de
repente, aquela coisa empalhada olhou para ele e a sombra que os spots atiravam
para o fundo da loja pareceu avançar.
Valter deu um passo atrás, em pânico, tropeçando numa jovem que lhe sorriu,
agradável. Pediu uma desculpa entaramelada, quase engolindo o cigarro,
engasgou-se, cuspiu e caminhou em frente, apressado.
Não podia ser. Aquilo não tinha lógica. Como diabo um tigre empalhado...
Evidentemente, o que ele estava era cansado.
Abrandou o passo, aquecido, pelo neon dos Grandes Armazéns Bulora.
As pessoas passavam, normais, apressadas umas, outras escorregando lentamente
até ao tempo de ir para casa, ora vermelhas, ora azuis, ora amarelas, mas todas
confortavelmente familiares, entrando e saindo do neon que escorria pelo
passeio.
Atravessou a rua, um pouco incerto no caminho a seguir, quase caindo em frente
de um carro que buzinou, furioso. Por momentos sentiu-se tapado por aquela
sombra ensurdecedora. Saltou, num arranco, para o passeio do outro lado.
Ficou a olhar o carro que desaparecia na esquina e outros que iam passando num
zumbido de escapes em liberdade nocturna, até se sentir mais calmo, mais capaz
de saber onde estava. Na rua, claro, a caminho de casa.
Acendeu outro cigarro e continuou. Logo ali à frente o Rodeo, um barzinho seu
conhecido. Entrou, na ânsia de uma bebida e de um repouso temporário. Pediu um
gin-tonic duplo com bastante gelo, a noite estava mesmo quente. Foi bebendo
lentamente, à procura de qualquer justificação para aquilo. Ao olhar para a
porta, viu-a passar, viu-a com nitidez, vibrante e rápida, deixando o ar a
oscilar como se fosse água. Acabou o gin e pediu outro, que engoliu de seguida.
Não, aquilo não era nada, só cansaço.
Pagou e saiu. Procurou um táxi. Um táxi não, era fechado, melhor ir a pé.
Queria chegar a casa, queria descansar. Precisava de chegar a casa.
Começou a andar, cada vez mais depressa. E viu-a. Lá estava, naquele vão de
escada. Apertou o passo, mas ela chegou primeiro à esquina.
Na esquina olhou, atento. Era a sua rua, o prédio ficava ali em baixo,
acolhedor.
Ela continuava, uma sombra escondida na sombra, a olhá-lo do outro lado da rua.
Começou a correr. Da lado de lá via-a deslizar de porta em porta, de escuro em
escuro, sempre a acompanhá-lo, silenciosa.
Ia começar a gritar quando reparou que estava à porta de casa. Entrou no
edifício, esbaforido mas aliviado. Olhou em volta. Não a viu.
- Boas-noites, senhor Valter. Sente-se mal? - interessou-se o Josué porteiro de
noite, com uma solicitude matreira.
- Boas noites, Josué. Não é nada. Apenas cansaço. Venho do jantar anual lá do
emprego. Com patrões e tudo, sabe como é.
- Pois. Essas coisas cansam - concordou o Josué, julgando saber. Cansam mesmo,
senhor Valter.
- Até amanhã, Josué.
- Até amanhã, senhor Valter.
Entrou no elevador com a sensação de se ter libertado de um acontecimento
atroz.
Saiu no décimo andar. O corredor estava calmo, brilhante de luz e repouso.
Abriu a porta do apartamento e entrou.
Foi até ao bar, preparou apressado um gin saudavelmente triplo sem tónica e,
sentando-se confortável no sofá, saboreou-o com um prazer todo novo, com
lentidão, com luxo. Um bom sono e amanhã tudo seria apenas um motivo para
sorrir. E se não fosse?
Bocejou, sentindo-se realmente cansado. Acendeu um cigarro, bebeu o resto do
gin num arrepio de gozo, pousou o copo e levantou-se.
Dirigiu-se para o quarto e abriu a porta.
A sombra ergueu-se da cama e avançou para ele, de braços abertos.
- Querido! Vieste cedo...
Mário-Henrique Leiria
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