«A Torre de Luz»
Ceifeira/ Severo Portela
746- «A TORRE DE LUZ»
Felícia sorria para todas as pessoas e todas as coisas, para
os outros moços e moças da ceifa, para os tordos e taralhões que cantavam nas
pernadas das azinheiras, para a brisa da manhã ou para o sol já forte do meio
dia, para o esplendor de Junho, para a pobreza da marmita,onde havia mais migas
do que conduto, e até para a severidade do manageiro, que a repreendia com
alguma dureza quando ela se descuidava a bichanar com a Gisela, sua amiga de
criação e eleição.
Quando eu passava por lá, a pé ou a cavalo, na insegurança dos meus dezasseis
(ou dezassete) anos e ela nem tanto teria – parava a contemplá-la, o mais
discretamente que conseguia, como algum tempo depois havia de olhar, em
Florença, aquelas jovens que Botticelli eternizou nos jardins da adolescência.
Felícia correspondia, aliás, com muito salero, ao meu cumprimento. Mas a luz
mais quente do seu olhar aveludado ia para a Gisela, que ceifava ao seu lado,
ambas de saia apanhada entre os joelhos, para poderem curvar-se à vontade, e
chapéus de homem sobre o lenço de ramagens que lhes escondia os cabelos bastos.
Cintura fina, peitos altos escondidos nas blusas trapalhonas, ancas que se
arredondavam na faina que as trazia dobradas para a terra, suando, caladas ou
zumbindo baixo, entre risos.
Chamavam-lhes fressureiras, um nome feio, que não lhes quadrava, uma prima
minha dizia que a Felícia era lésbida, corruptela de lésbica, que feria menos a
sua graça natural, quase aérea.
Vi descansar a cabeça morena de Gisela na concha nervosa das suas mãos. Falavam
uma com a outra como se se beijassem.
Uma vez em dia de festa, no salão dos Leões, observei-as a dançarem (e
mexendo-se bem) com dois rapazes da vila, um deles muito cobiçado, que vendia
chita a metro, na loja do Quintos. Mas não se perdiam de vista, os olhos de
água e os olhos de febre.
Volvido um ano, quando refloriram as madressilvas e novamente as papoulas
endoideceram de vermelho os trigais, fui dar com elas, por puro acaso, numa
saleta reservada da Filarmónica dos Leões, onde ambas aprendiam o solfejo nos
poucos minutos vagos, abraçadas uma à outra. Pareciam duas gazelas loucas
trocando carinhos no paraíso. Num paraíso sem idade nem cor religiosa.
Estava eu alimentando a esperança de que por milagre me chamassem para o meio
delas, mas limitaram-se a rir.
– Então, menino Albano, que confianças são essas? Está a tornar-se muito
curioso.
Riam, riam, descaradas (ou inocentes) e eu a afastar-me em passo lento,
salvando a dignidade.
Vieram tempos de chuva e tempos de seca, a argamassa dos dias foi crescendo
como eu crescia e os rostos de pedra dos meus mestres abriram-se amavelmente
para me dar passagem em todas as cadeiras.
Tornei ao “monte” com a estiagem de Agosto, bichos e pássaros dormindo a sesta
como nós. Depois foram os punhos do vento quente a baterem nas nossas vidraças,
a abanarem até as árvores de sombra à entrada da horta. Um dia de fogo.
Soube nessa mesma tarde do casamento da Gisela, semi-forçada pelos pais, com o
caixeiro promissor.
Constou que Gisela havia prometido à Felícia, atordoada, que nada ia mudar
entre elas.
A verdade é que o moço, entornando simpatia à sua volta, não tardou a conseguir
uma sociedade em Lisboa, num bom armazém, e nada de voltar a Moura, nem pela
feira de Setembro.
Quem tem cu tem medo, dizia a voz do povo.
Eu tentava brincar com a Felícia, para despertar a toutinegra que havia nela,
sempre disposta ao canto e ao riso, mas agora, pelo contrário, ela
emocionava-se com um nada que ricochetasse no seu desgosto e gaguejava, como
uma criança, o que a tornava ainda mais tocante.
Aconteceu, nesses momentos raros de convívio, eu ver passar nos seus olhos azul
turqueza (dantes dispostos ao pasmo, à malícia, à alegria) a suspeita de uma
lágrima ou o calor da gratidão.
Olhos que ainda me faziam sonhar, embora soubesse que nada mais podia esperar
desse encanto que às vezes ela esbanjava com toda a gente.
E um dia, subitamente, à hora do calor mais compacto, dos mosquitos arreliadores, chega a notícia brutal.
Gisela e o marido já haviam comprado casa, ele continuava em segura ascensão
económica, ela ir-se-ia adaptando a essa outra existência.
Pois bem, ao darem um passeio dominical pela estrada do Guincho, o automóvel
despistou-se, foram contra uma árvore, ele ficou todo desfigurado, mas Gisela
continuava bonita, mesmo morta.
Houve outra versão, a das más línguas. Que tinham começado a dar-se mal, às
vezes era o diabo à solta no apartamento da Estrela onde moravam, perto do
estabelecimento, Gisela jurava que largava tudo e voltava para Moura. Mas o
dinheiro não era dela e havia o decoro, as vozes do mundo, o respeito pelos
pais e outras coisas a que ela anos antes não ligava e agora já contavam.
Teria sido ele, desesperado, a escolher a morte ou então ela que lhe mexera no
volante, desviando o carro da estrada, no auge de uma discussão.
Puseram-se muitas hipóteses. Cada qual mais estranha e perturbante.
A família fechou-se em dor e silêncio.
Felícia não chorava, pelo menos em público.
Tornei a vê-la apenas uma vez depois do acidente. Fiquei incapaz de lhe dizer
uma só palavra. Apertei-lhe muito as mãos. Ela entendeu e quase sorriu, sabendo
como sabia que o seu sorriso me restituía a visão da sua adolescência
esfuziante. O meu absoluto encantamento, nesse tempo das mondas e das ceifas,
em que eu confundia a epifania do sol com o marejar dos seus desejos.
Houve quem a visse depois, nessa mesma tarde, já ao crepúsculo, entrar na água
fresca do rio Ardila.
Avançou olhando não em frente mas para a lua compassiva, que já surgia,
imprevista, no firmamento. E assim perdeu pé, escorregou, afundou-se devagar,
deixou-se morrer.
Alguém disse que, precisamente nos pegos onde ela se afogou, em certas noites,
nascia da água uma torre de luz. Outros confirmavam.
A maioria ia verificar o prodígio e não via nada.
Numa noite de breu, antes de se mostrarem as estrelas, fui até lá, menos por
causa do fenómeno do que para ali rever, imaginar a Felícia, o seu delírio, a
sua beleza patética, nesses últimos momentos.
E quando, sentado num penedo, a ouvir o pio inquietante do mocho e o marulho do
rio, muito lento, já pensava em me ir embora, eis que vejo a torre sair das
águas e subir, subir, com nervuras de luz, cartilagens subtis de um branco
eléctrico, cristalizações, veios de todo o feitio, ossos fossilizados
recuperando o movimento, espirais de luz, gotas de prata, tudo a tremer e a
tilintar, um carrilhão de luz, ramos e rumores de luz azul desmaiado, flores de
renda e vidro hialino, e sempre mais luz, ou fogo (celeste? satânico?), e a
boca desfeita de Felícia, a sua boca fitando-me.
Era uma noite cálida de Agosto. Eu tinha deixado o cavalo roer umas ervinhas e
agora perdia-o de vista, suspenso como estava entre a angústia e o fascínio.
Ouvi então a voz de Felícia a dizer-me:
– Menino Albano, não insista. Eu agradeço, mas deixe-me viver em paz a minha
morte.
Já não havia sobre a superfície quase lisa e sombria do Ardila quaisquer
vestígios da torre de luz.
A lua nova enchia de mistérios o montado fronteiro da Rola, que se desdobrava,
muito para além do rio, em filas esburacadas de chaparros e azinheiras. E terra
e mais terra mosqueada de sarças que eu conhecia e tufos de piorno, onde os
coelhos faziam as luras.
Dentro de mim ressoava fundamente o riso de Felícia.
Urbano Tavares Rodrigues
Urbano Tavares Rodrigues
Sem comentários:
Enviar um comentário