«Um Nosso Semelhante»
Conto de Manuel da Fonseca
754- «UM NOSSO SEMELHANTE»
Leonel Badanas, o bombeiro, acaba de vestir a farda cheia de
botões dourados. Está diante do espelho e põe de várias maneiras o rebrilhante
capacete. Vira-se para um lado e para outro. Torna a mudar-lhe a posição sem se
decidir por nenhuma. Mas, como não tem pressa, ainda teima em pôr de acordo
aquele extraordinário chapéu com a alevantada e grave expressão do rosto. Por
fim, já com os músculos da cara doridos, sai, muito embora não vá plenamente
satisfeito.
Na rua, alarga um passo de ginasta e adianta o peito; a espinha flecte em arco,
pondo em grande relevo as nádegas magras. Apesar disso, Leonel Badanas sacode
os braços com arrogância. Tem assim como que uns longes de galo, de asas meio
abertas, chispando raios de sol da luzidia crista.
De repente, ao voltar da esquina, tropeça numa súbita ideia, e tudo aquilo se
desfaz. Equilibra-se a custo: fica uma farda amarrotada; lá dentro, um
homenzinho mirrado com uma enorme campânula amarela na cabeça.
Desalentado, o bombeiro retrocede. Empurra a porta de casa e grita, levantando
lentamente as mãos:
- Onde está a minha medalha ? Do quarto sai uma mulher de feição apagada e
receosa:
- Estive a areá-la. ..Esqueci-me. ..
- Vai buscá-la, mulher! "Que irritação! Por um pouco, e entrava no jardim
sem a medalha! No jardim, onde está toda a gente da vila, na grande festa a
favor das Florinhas da Rua! ..." E, mesmo agora, enquanto a mulher lhe
cose na farda a fitinha que segura a medalha, ele a descompõe. De instante a
instante, repete:
- Olha se eu me esquecesse, hem! De novo na rua, volta ao passo largo e seco;
peito arqueado, nádegas saídas. Dependurada da farda, a medalhinha branca
agita-se em movimentos desordena- dos. E reluz ao Sol, num alegre desafio com o
capacete.
Esta medalha ganhou-a ele no último Inverno. Os bombeiros formaram em parada
diante da casa-esqueleto onde fazem exercícios ao domingo. O povo, rodeando as
individualidades mais representativas, assistiu. E, após ter falado cerca de
dez minutos, o comandante dos Voluntários parecia muito comovido; depois de
condecorar o bom do Leonel, abraçou-o carinhosamente.
Em seguida, o presidente da Câmara desenrolou uma folha de papel, pôs as ,
lunetas, e começou a ler num estranho tom de voz, áspero e sacudido. Louvou o
Badanas, comparou-o com os mais abnegados heróis da humanidade, enalteceu a
corporação e o seu chefe. Espraiou-se sobre as belezas da paisagem em redor da
vila, falou das riquezas agrícolas do concelho, elogiou de novo Badanas. E, com
palavras ainda mais sacudidas e ásperas, disse que ia dar uma grande novidade:
em breve, os Voluntários teriam, enfim, a sua autobomba!
Apesar de esta informação não constituir surpresa para ninguém, a assistência
rejubilou. Enquanto as palmas reboavam, todos se voltaram enternecidos para o
Leonel Badanas. Em sentido, rígido como uma estaca espetada no chão, debaixo do
capacete amarelo, Badanas, de pálpebra caída, fitava modestamente os barrotes
da casa-esqueleto.
Vai à mulher e empurra-a para dentro do casebre. Volta-se de braços erguidos:
- E eu? Que me deu você? Nem a ponta dum corno! Em que é que você é meu pai,
diga lá?
O mendigo vai recuando. E, sem tirar a mão de entre as pernas, cauteloso pela
descida que o atalho faz até à entrada, toma a direcção da vila. Atravessa-a
sempre de olhar fixo. E desaparece ao longe, enrolado no vento e na noite que
cresce sobre a planície.
Volta no outro dia, batendo de porta em porta -como não é sábado, nada lhe dão.
Pelo meio-dia, escorrega rente à parede da venda do largo. Ajeita-se melhor,
todo dobrado, a barba contra os joelhos.
Parecem de cego os olhos que a fome tornou baços; parados, nada vêem. Assim a
mesma quietude por todo o corpo, como se a imobilidade da morte lhe houvesse
tocado no coração.
Um camponês passa pelo Rana, olha-o atentamente, e entra na venda:
- Sabem quem é esse que está aí fora ?
Dois homens afastam-se até à porta. Devagar, examinam o mendigo coberto de
farrapos.
- Ná -diz um deles. -Não o conheço.
O camponês está junto do balcão, de costas para a rua:
-É o Rana.
Vira-se, e repete:
- O Rana, um que, por último, trabalhava na herdade da Salgada.
-Tem razão -diz o dono da venda, encostando-se ao mostrador. - Vi-o andar por
aqui, ontem, e não o reconheci. Olha quem me havia de dizer que o Rana, um
homem de trabalho. ..
- É verdade -recomeça o camponês, sorrindo contrafeito. - Trabalhou sempre. E,
agora, a pedir.
Baixa a cabeça; o rosto some-se-lhe sob a aba do chapéu:
- Encha-me aí um copo, mestre Zé. Endireita-se, e fita os dois homens:
-Vocês já pensaram que, quando a gente não prestar para nada. ..
Cala-se. No silêncio, ouve-se a torneira do barril ranger; depois, o vinho
escorrendo para o copo.
Fora, pesadas nuvens negras escurecem o dia muito antes do Sol desaparecer, e a
ventania gelada varre o largo deserto. Os camponeses saem da venda a caminho de
casa. Apenas o Rana continua sentado junto da parede.
Súbito, atira a mão para a frente e ergue-se, trémulo. Deixa abandonados no
chão os seus únicos bens: a vara e o saco vazio. E, de braços abertos, caminha,
inseguro e desolado, como os ébrios. Perto do poço que há a um canto do largo a
dor trava-lhe os pés. Cuidadosamente, ajeita o intestino entre as pernas;
encosta-se ao bocal, com o braço livre puxa o corpo, e tomba para dentro.
A pancada na água ressoa no largo. Aparece gente, correndo.
Leonel Badanas é o primeiro a debruçar-se sobre o bocal; logo que os olhos se habituam
ao escuro do poço, grita:
-Teve sorte, o raio do velho!
Todos vêem agora o Rana, ansiado, de boca aberta, como para vomitar. A água
dá-lhe pelos ombros. Então, compreendem a frase do Badanas. O velho caiu no
estrado de madeira que apanha metade do círculo do poço, um pouco abaixo do
nível da água, e serve para os trabalhos de limpeza quando, no Verão, a
nascente enfraquece.
Dirigindo o salvamento, Leonel Badanas dá ordens. Vem uma escada; descem-na até
ao estrado, e o bombeiro prepara-se para saltar, quando lhe ocorre uma ideia.
Para quê molhar-se com um frio daqueles? E, seguindo o curso do pensamento,
ordena ao mendigo:
-Sobe, maroto !
A cabeça do Rana desaparece debaixo da água. Por momentos, cresce a expectativa
em volta do bocal. Badana ainda sobe para a escada, mas de novo estaca. Nesse
instante, a cabeça do mendigo. reaparece. A água escorre-lhe da boca e das
barbas.
- Sobe, malandro! - grita Leonel, Badanas. - Senão vou lá abaixo!
Reanimado, o Rana volta a mergulhar. Quer morrer e, no entanto, já sob a água,
no último momento, não consegue evitar aquele retesamento de músculos que lhe
estica imperiosamente o corpo. Respira de novo o bom ar da vida, e o primeiro
movimento é a mão que o faz, introduzindo-se entre as pernas, compondo a
quebradura.
Badanas corre à venda e volta com uma comprida vara. Intima o mendigo a subir;
como este se não resolve, aplica-lhe uma varada na cabeça.
-Sobes ou mato-te, patife!
As pancadas sucedem-se umas às outras. O velho mete a cabeça debaixo de água:
vem a aflição da asfixia. Ergue-se: cá fora espera-o uma varada. Estonteado,
por fim sobe a escada, de mão na virilha, gemendo.
-Malandro, que te mato! - grita o bombeiro, de vara no ar.
Levam-no até à Câmara Municipal. O presidente adianta-se e, com os modos
carrancudos de sempre, começa a falar ao Badanas. Nos olhos do mendigo abre-se
um luaceiro de esperança; decerto, iam castigar aquele maldito que o não
deixara aquietar-se de vez. Mas tudo acaba de modo diferente. O presidente
aperta a mão do bombeiro:
-Vai então ganhar a medalha, hem? Merece-a. Salvou um homem.
Assim veio a acontecer. Datava de há muito pouco a corporação dos Voluntários e
de modo nenhum se deixaria passar aquela esplêndida oportunidade para lhe
justificar os préstimos. O próprio comandante já ali estava a tomar nota do
caso. E Leonel Badanas baixa os olhos, cheio da natural modéstia dos homens
decididos.
Nesse momento, alguém ergue o Rana por debaixo dos sovacos. É o carcereiro.
Pingando água, de mão entre as pernas, o mendigo é arrastado como um saco para
dentro da cadeia.
Não assistiu à cerimónia junto da casa-esqueleto onde os bombeiros fazem
exercícios aos domingos, nem teve notícia dos discursos em louvor do
"salvamento de um nosso semelhante", pois foi posto na rua e enxotado
para fora do concelho dois dias depois de preso. Antes disso, no entanto, ainda
ficou por largo tempo olhando de longe para as grades da cadeia.
Tinham-lhe dado de comer enquanto lá estivera.
Manuel da Fonseca
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