«Colheita»
A Mulher Madura/ Affonso Romano de Sant'Anna
785- «COLHEITA»
Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens
no modo activo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas,
e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de
semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela
sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais
do que explicava a história do universo. Esta reserva mineral o encantava e por
ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus objectos. Um amor que
se fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem cidades
submersas em lava.
A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois
soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do
cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles
se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também
completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes
que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar,
embora se soubesse nelas.
Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas finais de
um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia hesitante. Explicou à
mulher que para a amar melhor não dispensava o mundo, a transgressão das leis,
os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam
em suas peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.
Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma beleza
esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por que buscá-lo em
terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na independência. Sempre os de
sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial dependesse
dela para reparar certas omissões fatais.
Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi
simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os
diálogos do homem a inquietassem. A partir desta data trancou-se dentro de
casa. Como os caramujos que se ressentem com o excesso da claridade.
Compreendendo que talvez devesse preservar a vida de modo mais intenso, para
quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer
porções diárias de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.
Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu
nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto
livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela
pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra,
e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o
quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em
sua pele.
A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela
janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria
vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente
intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo a
presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às
vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam eles
então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa
procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o
homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa.
Jamais faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem. Seu
semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do vestido, antes
triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado, pois decidira manter os
cabelos curtos, aparados rentes à cabeça — decidiu por eliminar o retrato. Não
foi fácil a decisão. Durante dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros
do homem, ora o condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua
rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo
comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.
Durante a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente
sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou deste modo
poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo independente da homenagem.
Talvez tivesse murmurado a algum dos parentes, entre descuidada e oprimida, que
o destino da mulher era olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.
Recordava a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então
igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria uma
sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era mais sensível à
violência. Ele que se havia ido, ela que tivera que ficar. Só com os anos foi
compreendendo que se ele ainda vivia tardava a regressar. Mas, se morrera, ela
dependia de algum sinal para providenciar seu fim. E repetia temerosa e
exaltada: algum sinal para providenciar meu fim. A morte era uma vertente
exagerada, pensou ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e
começou a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor
mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido
a coroa quando das planícies.
Quando já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da casa,
pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas as coisas
venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem cabo, como que
adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele bater na porta com a certeza
de se avizinhar ao paraíso. Bateu três vezes, ela não respondeu. Mais três e
ela, como que tangida à reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu
algumas vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não
sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a promessa?
Ela sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se, melhor
viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que
escarneciam da sua volta, não restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a
verdade: se não for você, nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele
mesmo manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o
povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto castigo.
Ela assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia surpreendê-la
segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu ingresso casa adentro,
mais velho sim, a poeira colorindo original as suas vestes. Olharam-se como se
ausculta a intrepidez do cristal, seus veios limpos, a calma de perder-se na
transparência. Agarrou a mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar
do pecado das modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais
provado.
Disse-lhe: voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na
mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem a
verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior. Deveria ser
como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem interrompido.
Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou
comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu
sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive
então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O
homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam
ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios.
Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no galinheiro,
ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava: estou quente ou frio.
A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em um longo casaco de lã, agora
descascava batatas imitando as mulheres que encontram alegria neste engenho.
Esta disposição da mulher como que o confortava. Em vez de conversarem, quando
tinham tanto a se dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando
ele pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela
casa.
Quase desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura todo
quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos de vidro, quem
sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe pela mão até a cozinha. Ele
não se queria deixar ir. Então, o que queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a
mulher. Ela consentiu. Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.
— O que há na cozinha?
Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois
limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou o pó da casa,
abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles anos de sua ausência.
Procedia como se ele ainda não tivesse chegado, ou como se jamais houvesse
abandonado a casa, mas se faziam preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao
menos agora que eu preciso?, ele disse.
— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais...
Eu sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse sobre a
variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões distantes ainda que apresentem
certas particularidades de algum modo são próximos a nossa terra, de onde você
nunca se afastou porque você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando
que lhe contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de
pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo de
olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a
cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha,
visitara a prisão, razão de ter assimilado uma rara concentração de vida que em
nenhuma parte senão ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não
tinham outro modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.
E ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia substituindo
com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E de tal modo falava como
se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas abolicionistas,
inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido mulheres e homens, e
entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua vocação reconhecer pelo
amor as criaturas. Só que ela falando dispensava semelhantes assuntos, sua
riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários a que estivera confinada
desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara um prato talvez de
origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante dele fingia-se coelho, logo
assumindo o estado que lhe trazia graça, alimentava-se com a mão e sentia-se
mulher; como também simulava escrever cartas jamais enviadas pois ignorava onde
encontrá-lo; o quanto fora penoso decidir-se sobre o destino a dar a seu
retrato, pois, ainda que praticasse a violência contra ele, não podia esquecer
que o homem sempre estaria presente; seu modo de descascar frutas, tecendo
delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora pondo em relevo um trecho
maior da polpa, ora deixando o fruto revestido apenas de rápidos fiapos de
pele; e ainda a solução encontrada para se alimentar sem deixar a fazenda em
que sua casa se convertera, cuidara então em admitir unicamente os de seu
sangue sob condição da rápida permanência, o tempo suficiente para que eles
vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia para homenageá-lo,
alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora, teimaram em lhe fazer regalos,
que, se antes a irritavam, terminaram por agradá-la.
— De outro modo, como vingar-me deles?
Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre
a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida. Mas, logo
que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem nos objetos se
esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos. Confiava que eles próprios
recolhessem o material para não deteriorar em sua porta.
E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua
boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela
projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma
grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia
vivido sozinho. Pois quanto mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que
além de a ter ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo
conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais capaz do que
ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível porque viveu entre grades,
mais voluntariosa por ter resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com
neutralidade dispensara ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta
para seu corpo o que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e
concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.
À medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e experiências
iam-se transformando em uma massa confusa, desorientada, já não sabendo ele o
que fazer dela. Duvidava mesmo se havia partido, se não teria ficado todos
estes anos a apenas alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual
poder narrativo.
Seguramente ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera
conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu
verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto, ela
confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de uma sopa, selava
sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter composto uma falsa história o
abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo o tempo, jamais abandonara a
casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites
ele altivo pensou ter rompido.
Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo
explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um tumor que coça
as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele
foi rasgando o seu retrato, sem ela o impedir, implorasse não, esta é a minha
mais fecunda lembrança. Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes
obscurecido que ela descobriu ao retorno do homem.
Ele jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta vez
advertência. Os actos favoreciam a claridade e, para não esgotar as tarefas a
que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou pano molhado nos
armários, fingindo ouvi-la ia esquecendo a terra no arrebato da limpeza. E,
quando a cozinha se apresentou imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então
descascando frutas para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias
indispensáveis ao mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia
dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia
distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher para adoptar
afinal o seu universo.
Nélida Piñon
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