segunda-feira, 23 de maio de 2016

OUTROS CONTOS

«Havia Sol na Praça», por Vergílio Ferreira.

«Havia Sol na Praça»
Conto de Vergílio Ferreira

794- «HAVIA SOL NA PRAÇA»

E era assim todas as manhãs. Eu subia a rua para a repartição ele descia-a para a vadiagem. Vinha com as suas grandes barbas numa caranguejola a quatro rodas, puxada por um jerico. Era velho o jerico, devia ser da idade dele, com placas lazarentas a surrarem-lhe o pêlo. E a caranguejola era uma espécie de jangada com várias pranchas pregadas umas às outras. Mas como era aí que ele vivia, em cima dela cabia tudo: manta para dormir, vários trastes de cozinha e às vezes roupa, como galhardetes de um navio, suspensa de um fio a secar. A proa, sentado no traseiro, viajava um cão a gozar a paisagem. E sentado no meio a tocar realejo, viajava ele. Na cidade e redondezas toda a gente o estimava muito. E como resolvera em quatro pranchas o problema da habitação e transportes, também toda a gente o admirava. Os garotos faziam-lhe uma festa quando ele aparecia com a viatura a tocar realejo:

- Eh, Fadista!

Fadista propriamente era o nome do cão. Mas como constituíam uma família e a vida do homem podia cantar-se no fado, o nome de Fadista ficou para ele. A garotada seguia-lhe a caranguejola a bater palmas, mas o homem nem ouvia. Só a polícia embirrava com ele porque, além de perturbar o trânsito, tinha a mania de parar às vezes em certo sítio da praça para catar o piolho. Podia catá-lo noutro lado. Não catava - era ali. Chegava mesmo a despir a camisa para uma pesquisa mais conscienciosa, menos sujeita à contingência da simples apalpação. E, certo dia, levado no entusiasmo da busca, acabou por desapertar outras peças de roupa que já não eram de desapertar. As senhoras que passavam, passavam de olhos no chão ou bastante no ar para não olharem para ele depois de terem olhado. E como ele não sabia que as partes do corpo que se podem mostrar não eram todas as que ele mostrava, a polícia deitou-lhe a mão e levou-o ao posto para o esclarecer.

Teve-o lá um dia e uma noite. Mas o cão fazia um alarido infernal, e havia ainda o burro, De modo que, passada a noite e o dia, soltaram-no outra vez. E um dia que eu subia a rua para a repartição, descia-a ele outra vez para a vadiagem. Até que, depois de fazer a sua ronda por longe, voltou de novo a estabelecer-se na praça. Gostava de certo sítio onde batia o sol, sobretudo no tempo frio, parava o burro e estava ali. Como a caça ao piolho o levara à cadeia, já não caçava. Gostava era daquele sítio batido do sol e de ver a gente a passar. As vezes, quando chegava, atravancando quase toda a rua, os carros buzinavam à volta dele com uma fúria de canzoada, mas ele nem ouvia. Travava o burro, o cão à proa sentado no traseiro, ficavam os três ali, parados ao sol. De modo que as forças vivas da cidade, para clarearem um pouco o aspecto da praça e praticarem a justiça social, meteram-no no as!!? A caranguejola ficou encostada ao alto, no pátio, talvez para ser queimada por altura de mais frio, o cão andava aos ossos pela cozinha e o burro ajudava as carroças que por lá havia. Fadista estava outro, lavado à agulheta, tosquiado, metido numa farda grande de asilado. De uma vez que passei ao pé, lá o vi ao alto no muro, sentado ao sol com os colegas. Tinha um capote castanho com uma gola que lhe subia até ao queixo e um barrete de pala na cabeça.

- Eh, Fadista!

Ele rodou a cabeça devagar, fez-me um gesto brusco com o queixo como a mandar-me aonde não devia. Depois, como havia sempre outras coisas para lembrar, acabei por esquecê-lo. Até que um dia, subia eu a rua para a repartição, descia-a ele outra vez na caranguejola.

Foi o director do asilo que nos contou. Certa madrugada, apanhou o burro e o cão, endireitou a jangada e partiu. Foi passado ainda um mandado de busca ou de captura. Mas como o não encontraram e havia sempre outras coisas para buscar, também o esqueceram. Quando tempo depois voltou a aparecer, na praça, como havia muita coisa burocrática a pôr em andamento, largaram-no de mão. Assim Fadista se estabeleceu de novo na ordem da vida e voltou à praça outra vez. Os motoristas buzinavam à volta dele, diziam-lhe à passagem muitas ordinarices, ele nem ouvia. De modo que, muito tempo antes de ele tirar a camisa, já toda a gente voltava a escandalizar-se. E foi assim que, para aclarar a limpeza da praça e pôr em acção a justiça social, empalmaram-no outra vez e meteram-no outra vez no asilo. Um dia que eu passava cá em baixo do muro, lá o vi ao alto, sentado com uma farda nova entre os colegas. Por um impulso irresistível de solidariedade humana e porque já me fazia falta a sua passagem na rua, parei e disse-lhe lá para cima:

- Eh, Fadista!

Ele rodou o pescoço, olhou-me algum tempo cá em baixo e fez-me um gesto brusco com o queixo como a mandar-me aonde não achei bem que mandasse. Mas desta vez, como nos explicou no café o director do asilo, escavacaram-lhe a caranguejola e desfizeram-se para longe do burro e do cão para ele se não tentar outra vez. A cidade acabara por se interessar pelo vagabundo. Mas escavacado o seu meio de locomoção e havendo sempre coisas novas para lembrar, acabou outra vez por esquecê-lo. Eu, como tinha também sempre coisas novas a lembrar, acabei também outra vez por esquecê-lo.

Até que alguns meses depois, subia eu a rua para a repartição, descia-a ele de novo para a vadiagem. Vinha já de barbas numa caranguejola nova a quatro rodas, puxada por um jerico. Era um jerico muito velho, já com certa relutância em puxar, cheio de placas lazarentas no lombo surrado. A um impulso irresistível de simpatia humana, saudei-o com entusiasmo:

- Eh, Fadista!

Ele sentava-se no meio da jangada cheia de trastes velhos de cozinha tocando gaita-de-beiços, com roupa como galhardetes suspensa de um fio a secar. E postado à proa, sentado no traseiro, viajava um cão a gozar a paisagem. E pouco tempo depois estava outra vez na praça. Estava frio e havia lá um sítio onde batia o sol. Os motoristas deram urros quando o viram, porque a caranguejola era larga e atravancava o trânsito. Guinavam bruscamente com o volante para se desviarem dele e à passagem diziam-lhe tudo. Mas ele nem ouvia entretido a caçar o piolho. Chegou mesmo a abrir a camisa para uma busca mais meticulosa, e certa vez, largado no entusiasmo, foi descendo na procura até a sítios onde já não devia procurar. As forças progressivas da cidade puseram-se outra vez em andamento, mas teve de se esperar algum tempo para acertar a burocracia. Até que tudo se acertou, e um dia que ele passava na praça e nem sequer ficara ao sol, a polícia deitou-lhe a mão e todo o progresso da cidade rejubilou. Certa vez que eu passava cá em baixo do muro, lá o vi outra vez, sentado no parapeito, já metido no capote do fardamento, ao pé dos outros colegas. Por um impulso expansivo de calor humano gritei-lhe cá de baixo:

- Eh, Fadista!

Mas ele, dessa vez, nem me olhou. Tinha o queixo enterrado na gola do capote e assim ficou. Um pouco vexado de me não ligar importância, ao menos para me mandar aonde tinha o mau hábito de me mandar, voltei a berrar-lhe com mais força:

- Eh, Fadista!

As pessoas que passavam olhavam acima e abaixo a medirem-nos aos dois, sorriam e desandavam. E os colegas, desejosos de colaborar, olhavam-me também e tocavam-lhe com o cotovelo. Mas ele, embezerrado, não se mexeu. E um dia que eu voltei a passar ao muro, não o vi lá. Olhei de novo, não o vi lá. E outro dia que voltei a passar, também o não vi. E como a vida tem sempre coisas novas para pensarmos, deixei de pensar nele.

Até que um dia o director do asilo se veio sentar de novo à nossa mesa de café. Era um tipo muito alto e muito progressivo. Acomodou-se à mesa e, como o clube da terra tinha perdido, falou de futebol. Depois, como era muito progressivo e tinha um convívio diário com a justiça social, falou de justiça social. E então bruscamente lembrei-me do Fadista. Que era feito dele? Quando é que ele voltava a aparecer com a caranguejola? O homem, que era muito abonado em ironia, disse-me que de caranguejola? O Fadista? Só se fosse no Paraíso.

- Morreu - clamei eu, iluminado de evidência.

- Mas diga-me o meu amigo o que é que a gente havia de fazer. Nós a querer fazer-lhe bem, ele a teimar. A gente a lavá-lo, ele a encher-se de bicharia. A gente a querer a limpeza da cidade, ele a dizer que não. Foi assim.

- E morreu.

- A gente a querer o bem dele, ele a estragar.

- E matou-se. Enforcou-se.

- A gente a querer corrigir as injustiças sociais, ele a tramar-nos a vida. E desculpem que tenho agora uma reunião.

- E enforcou-se.

- Tenho agora uma reunião.

Levantou-se, tinha agora uma reunião. Estava um dia bonito. Havia sol na praça.

Vergílio Ferreira

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