«Havia Sol na Praça»
Conto de Vergílio Ferreira
794- «HAVIA SOL NA PRAÇA»
E era assim todas as manhãs. Eu subia a rua para a
repartição ele descia-a para a vadiagem. Vinha com as suas grandes barbas numa
caranguejola a quatro rodas, puxada por um jerico. Era velho o jerico, devia
ser da idade dele, com placas lazarentas a surrarem-lhe o pêlo. E a
caranguejola era uma espécie de jangada com várias pranchas pregadas umas às
outras. Mas como era aí que ele vivia, em cima dela cabia tudo: manta para
dormir, vários trastes de cozinha e às vezes roupa, como galhardetes de um
navio, suspensa de um fio a secar. A proa, sentado no traseiro, viajava um cão
a gozar a paisagem. E sentado no meio a tocar realejo, viajava ele. Na cidade e
redondezas toda a gente o estimava muito. E como resolvera em quatro pranchas o
problema da habitação e transportes, também toda a gente o admirava. Os garotos
faziam-lhe uma festa quando ele aparecia com a viatura a tocar realejo:
- Eh, Fadista!
Fadista propriamente era o nome do cão. Mas como constituíam
uma família e a vida do homem podia cantar-se no fado, o nome de Fadista ficou
para ele. A garotada seguia-lhe a caranguejola a bater palmas, mas o homem nem
ouvia. Só a polícia embirrava com ele porque, além de perturbar o trânsito,
tinha a mania de parar às vezes em certo sítio da praça para catar o piolho. Podia
catá-lo noutro lado. Não catava - era ali. Chegava mesmo a despir a camisa para
uma pesquisa mais conscienciosa, menos sujeita à contingência da simples
apalpação. E, certo dia, levado no entusiasmo da busca, acabou por desapertar
outras peças de roupa que já não eram de desapertar. As senhoras que passavam, passavam de olhos no chão ou bastante no ar para não olharem para ele
depois de terem olhado. E como ele não sabia que as partes do corpo que se
podem mostrar não eram todas as que ele mostrava, a polícia deitou-lhe a mão e
levou-o ao posto para o esclarecer.
Teve-o lá um dia e uma noite. Mas o cão fazia um alarido
infernal, e havia ainda o burro, De modo que, passada a noite e o dia,
soltaram-no outra vez. E um dia que eu subia a rua para a repartição, descia-a
ele outra vez para a vadiagem. Até que, depois de fazer a sua ronda por longe,
voltou de novo a estabelecer-se na praça. Gostava de certo sítio onde batia o
sol, sobretudo no tempo frio, parava o burro e estava ali. Como a caça ao
piolho o levara à cadeia, já não caçava. Gostava era daquele sítio batido do
sol e de ver a gente a passar. As vezes, quando chegava, atravancando quase
toda a rua, os carros buzinavam à volta dele com uma fúria de canzoada, mas ele
nem ouvia. Travava o burro, o cão à proa sentado no traseiro, ficavam os três
ali, parados ao sol. De modo que as forças vivas da cidade, para clarearem um
pouco o aspecto da praça e praticarem a justiça social, meteram-no no as!!? A
caranguejola ficou encostada ao alto, no pátio, talvez para ser queimada por
altura de mais frio, o cão andava aos ossos pela cozinha e o burro ajudava as
carroças que por lá havia. Fadista estava outro, lavado à agulheta, tosquiado,
metido numa farda grande de asilado. De uma vez que passei ao pé, lá o vi ao alto
no muro, sentado ao sol com os colegas. Tinha um capote castanho com uma gola
que lhe subia até ao queixo e um barrete de pala na cabeça.
- Eh, Fadista!
Ele rodou a cabeça devagar, fez-me um gesto brusco com o
queixo como a mandar-me aonde não devia. Depois, como havia sempre outras
coisas para lembrar, acabei por esquecê-lo. Até que um dia, subia eu a rua para
a repartição, descia-a ele outra vez na caranguejola.
Foi o director do asilo que nos contou. Certa madrugada,
apanhou o burro e o cão, endireitou a jangada e partiu. Foi passado ainda um
mandado de busca ou de captura. Mas como o não encontraram e havia sempre
outras coisas para buscar, também o esqueceram. Quando tempo depois voltou a
aparecer, na praça, como havia muita coisa burocrática a pôr em andamento,
largaram-no de mão. Assim Fadista se estabeleceu de novo na ordem da vida e
voltou à praça outra vez. Os motoristas buzinavam à volta dele, diziam-lhe à
passagem muitas ordinarices, ele nem ouvia. De modo que, muito tempo antes de
ele tirar a camisa, já toda a gente voltava a escandalizar-se. E foi assim que,
para aclarar a limpeza da praça e pôr em acção a justiça social, empalmaram-no
outra vez e meteram-no outra vez no asilo. Um dia que eu passava cá em baixo do
muro, lá o vi ao alto, sentado com uma farda nova entre os colegas. Por um
impulso irresistível de solidariedade humana e porque já me fazia falta a sua
passagem na rua, parei e disse-lhe lá para cima:
- Eh, Fadista!
Ele rodou o pescoço, olhou-me algum tempo cá em baixo e
fez-me um gesto brusco com o queixo como a mandar-me aonde não achei bem que
mandasse. Mas desta vez, como nos explicou no café o director do asilo,
escavacaram-lhe a caranguejola e desfizeram-se para longe do burro e do cão
para ele se não tentar outra vez. A cidade acabara por se interessar pelo
vagabundo. Mas escavacado o seu meio de locomoção e havendo sempre coisas novas
para lembrar, acabou outra vez por esquecê-lo. Eu, como tinha também sempre
coisas novas a lembrar, acabei também outra vez por esquecê-lo.
Até que alguns meses depois, subia eu a rua para a
repartição, descia-a ele de novo para a vadiagem. Vinha já de barbas numa
caranguejola nova a quatro rodas, puxada por um jerico. Era um jerico muito
velho, já com certa relutância em puxar, cheio de placas lazarentas no lombo
surrado. A um impulso irresistível de simpatia humana, saudei-o com entusiasmo:
- Eh, Fadista!
Ele sentava-se no meio da jangada cheia de trastes velhos de
cozinha tocando gaita-de-beiços, com roupa como galhardetes suspensa de um fio
a secar. E postado à proa, sentado no traseiro, viajava um cão a gozar a
paisagem. E pouco tempo depois estava outra vez na praça. Estava frio e havia
lá um sítio onde batia o sol. Os motoristas deram urros quando o viram, porque
a caranguejola era larga e atravancava o trânsito. Guinavam bruscamente com o
volante para se desviarem dele e à passagem diziam-lhe tudo. Mas ele nem ouvia
entretido a caçar o piolho. Chegou mesmo a abrir a camisa para uma busca mais
meticulosa, e certa vez, largado no entusiasmo, foi descendo na procura até a
sítios onde já não devia procurar. As forças progressivas da cidade puseram-se
outra vez em andamento, mas teve de se esperar algum tempo para acertar a
burocracia. Até que tudo se acertou, e um dia que ele passava na praça e nem
sequer ficara ao sol, a polícia deitou-lhe a mão e todo o progresso da cidade
rejubilou. Certa vez que eu passava cá em baixo do muro, lá o vi outra vez,
sentado no parapeito, já metido no capote do fardamento, ao pé dos outros
colegas. Por um impulso expansivo de calor humano gritei-lhe cá de baixo:
- Eh, Fadista!
Mas ele, dessa vez, nem me olhou. Tinha o queixo enterrado
na gola do capote e assim ficou. Um pouco vexado de me não ligar importância,
ao menos para me mandar aonde tinha o mau hábito de me mandar, voltei a
berrar-lhe com mais força:
- Eh, Fadista!
As pessoas que passavam olhavam acima e abaixo a medirem-nos
aos dois, sorriam e desandavam. E os colegas, desejosos de colaborar,
olhavam-me também e tocavam-lhe com o cotovelo. Mas ele, embezerrado, não se
mexeu. E um dia que eu voltei a passar ao muro, não o vi lá. Olhei de novo, não
o vi lá. E outro dia que voltei a passar, também o não vi. E como a vida tem
sempre coisas novas para pensarmos, deixei de pensar nele.
Até que um dia o director do asilo se veio sentar de novo à
nossa mesa de café. Era um tipo muito alto e muito progressivo. Acomodou-se à
mesa e, como o clube da terra tinha perdido, falou de futebol. Depois, como era
muito progressivo e tinha um convívio diário com a justiça social, falou de
justiça social. E então bruscamente lembrei-me do Fadista. Que era feito dele?
Quando é que ele voltava a aparecer com a caranguejola? O homem, que era muito
abonado em ironia, disse-me que de caranguejola? O Fadista? Só se fosse no
Paraíso.
- Morreu - clamei eu, iluminado de evidência.
- Mas diga-me o meu amigo o que é que a gente havia de
fazer. Nós a querer fazer-lhe bem, ele a teimar. A gente a lavá-lo, ele a
encher-se de bicharia. A gente a querer a limpeza da cidade, ele a dizer que
não. Foi assim.
- E morreu.
- A gente a querer o bem dele, ele a estragar.
- E matou-se. Enforcou-se.
- A gente a querer corrigir as injustiças sociais, ele a
tramar-nos a vida. E desculpem que tenho agora uma reunião.
- E enforcou-se.
- Tenho agora uma reunião.
Levantou-se, tinha agora uma reunião. Estava um dia bonito.
Havia sol na praça.
Vergílio Ferreira
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