787- «A ESFINGE SEM SEGREDO»
Uma água-forte
Achava-me numa tarde sentado no terraço do Café Paz,
contemplando o fausto e a pobreza da vida parisiense, a meditar, enquanto
bebericava o meu vermute, sobre o estranho panorama de orgulho e miséria que
desfilava diante de mim, quando ouvi alguém pronunciar o meu nome. Voltei-me e
dei com os olhos em Lord Murchison. Não nos tínhamos tornado a ver desde que
estivéramos juntos no colégio, havia isto uns dez anos, de modo que encheu-me
de satisfação aquele encontro e apertamos as mãos cordialmente. Tínhamos sido
grandes amigos em Oxford. Gostaria dele imensamente. Era tão bonito, tão
comunicativo, tão cavalheiresco. Costumávamos dizer dele que seria o melhor dos
sujeitos, se não falasse sempre a verdade, mas acho que, na realidade, o
admirávamos mais justamente por causa da sua franqueza. Encontrei-o muito
mudado. Parecia inquieto, perturbado e em dúvida a respeito de alguma coisa.
Senti que não podia ser o cepticismo moderno, pois Murchison era um dos
conservadores mais inabaláveis e acreditava no Pentateuco com a mesma firmeza
com que acreditava na Câmara dos Pares. De modo que conclui que havia alguma
mulher naquilo e perguntei-lhe se ainda não se havia casado.
– Não compreendo as mulheres bastante bem – respondeu.
– Meu caro Geraldo – disse -, as mulheres estão feitas para
serem amadas e não para serem compreendidas.
– Não posso amar sem ter confiança absoluta – replicou.
– Creio que há um mistério na sua vida, Geraldo – exclamei.
– Conte-me isso.
– Vamos dar um passeio de carro – respondeu. – Há gente
demais aqui. Esse carro amarelo, não. Um de qualquer outra cor… aquele ali,
verde escuro serve.
Dentro de poucos minutos estávamos a descer a trote o
bulevar na direcção da Madalena.
– Para onde vamos? – perguntei.
– Oh! para onde você quiser! – respondeu. – Para o
restaurante do Bosque. Jantaremos ali e
contar-me-á tudo a respeito da sua
vida.
– Primeiro quero que você me conte a sua. Revele-me o seu
mistério.
Tirou do bolso uma pequena carteira de marroquim com fecho
de prata e entregou-ma. Abri-a. Dentro havia a fotografia de uma mulher. Era
alta e esbelta e de aspecto singular com grandes olhos misteriosos e cabelos
soltos. Parecia uma clairvoyante¹ e achava-se envolta em ricas peles.
– Qual é a sua opinião a respeito desse rosto – perguntou
ele. – Inspira confiança?
Examinei o retrato atentamente. Parecia-me o rosto de alguém que guarda um segredo,
mas o que não podia dizer era se o segredo fosse bom ou mau. Aquela beleza
parecia feita de muitos mistérios reunidos, uma beleza, de facto, mais
psicológica do que plástica, e o ligeiro sorriso que lhe flutuava nos lábios
era demasiado subtil para ter realmente encanto.
– Bem – exclamou ele, impaciente – que me diz?
– É a Gioconda em vestes de luto – respondi. – Conte-me tudo
quanto a ela se refere.
– Agora não; depois do jantar – disse ele e começou a
conversar a respeito de outras coisas.
Quando o empregado trouxe o nosso café e os cigarros,
lembrei a Geraldo a sua promessa. Ele levantou-se da sua cadeira, caminhou duas
ou três vezes acima e abaixo na sala e, deixando-se cair numa cadeira de
braços, contou-me a seguinte história:
– Uma tarde, aí pelas cinco horas, descia eu pela Rua Bond.
Havia uma terrível aglomeração de veículos e o tráfego quase parado. Perto do
passeio estava parado um carrinho fechado, amarelo, que, por esse ou aquele
motivo, atraiu a minha atenção. Ao passar ao seu lado, vi surgir dele, a olhar
para fora, o rosto que lhe mostrei ainda há pouco. Fascinou-me imediatamente.
Fiquei a noite inteira a pensar nele e o dia seguinte também. Subi e desci
várias vezes por entre aquela maldita confusão, lançando um olhar perscrutador
para dentro de todo carro, à espera do carro fechado amarelo. Mas não pude
descobrir ma belle inconnue² e afinal comecei a pensar que era ela apenas um
sonho. Cerca de uma semana depois, estava a jantar com Madame de Rastail. O
jantar estava marcado para as oito horas, mas às oito e meia ainda nos
achávamos à espera na sala de visitas. Por fim o criado abriu a porta e
anunciou Lady Alroy. Era a mulher que eu estivera a procurar. Entrou muito
devagar, parecendo um raio de lua cercado de renda cinzenta, e, para intenso
deleite meu, pediram-me que a conduzisse à sala de jantar. Depois de nos
sentarmos, observei-lhe com a maior inocência:
“Creio que já a vi, há algum tempo, na Rua Bond, Lady
Alroy”.
Ela ficou muito pálida e disse-me, em voz baixa:
“Por favor, não fale tão alto. Podem ouvi-lo”.
Senti-me desditosíssimo por ter começado tão mal e mergulhei
cegamente numa dissertação sobre peças francesas. Ela falava pouquíssimo,
sempre com a mesma voz baixa e musical, parecendo receosa de que alguém a
estivesse escutando. Senti-me apaixonadamente, estupidamente enamorado e a
indefinível atmosfera de mistério que a cercava excitava, a mais não poder, a
minha curiosidade. Quando ela se retirou, logo após o jantar, perguntei-lhe se
poderia visitá-la. Hesitou um momento, olhou em redor para ver se alguém estava
perto de nós e depois disse:
“Sim; amanhã a um quarto para as cinco”.
Roguei a Madame de Rastail que me desse informações a
respeito dela; mas tudo quanto pude saber é que era uma viúva, morando numa
bela casa em Park Lane e, como naquele momento um desses cientistas cacetes
começasse uma dissertação a respeito de viúvas, para exemplificar a
sobrevivência dos matrimonialmente mais ajustados, despedi-me e fui para casa.
No dia seguinte cheguei pontualmente a Park Lane, no momento
exacto, mas o mordomo disse-me que Lady Alroy tinha acabado de sair. Dirigi-me
ao clube, bastante desiludido e confuso e, depois de muito reflectir,
escrevi-lhe uma carta, perguntando-lhe se me seria permitido tentar a sorte em
alguma outra parte. Por vários dias não recebi resposta, mas afinal chegou-me
às mãos um bilhetinho, dizendo-me que estaria ela em casa no domingo, às quatro
e com este extraordinário pós-escrito: “Por obséquio não torne a escrever para
mim aqui; explicar-lhe-ei, quando o vir”. No domingo, recebeu-me e mostrou-se
perfeitamente encantadora. Mas quando me despedia, pediu-me que, se alguma vez
tivesse ocasião de escrever-lhe de novo, dirigisse a minha carta para “Sra. Knox, aos cuidados da Biblioteca Whittaker, Rua
Verde”. “Há motivos – disse ela – pelos quais não posso receber cartas em minha
própria casa”.
Durante toda a temporada via-a amiudadas vezes e a atmosfera
de mistério sempre se manteve em torno dela. Às vezes pensava que se achava ela
em poder de algum homem, mas parecia tão inabordável que não podia acreditar
naquilo. Era realmente difícil para mim chegar a qualquer conclusão, pois ela
era como um desses estranhos cristais que a gente vê em museus e que são, num
momento, claros, e em outro, turvos. Por fim, decidi-me a pedi-la em casamento.
Senti-me doente e cansado daquele incessante segredo que impunha a todas as
minhas visitas e às poucas cartas que lhe enviei. Escrevi-lhe para a
biblioteca, perguntando-lhe se podia ver-me na segunda-feira seguinte, às seis
horas. Respondeu que sim e senti-me transportado ao sétimo céu. Estava
apaixonado por ela, a despeito do mistério, pensava então… em consequência
dele, vejo agora. Não; era a mulher mesma que eu amava. O mistério
perturbava-me, enlouquecia-me. Porque o acaso fez-me descobrir a pista?
– Descobriu-a então? – exclamei.
– Receio que sim – respondeu. – Julgue você por si mesmo.
Quando chegou a segunda-feira, fui almoçar com meu tio e cerca das quatro horas
encontrava-me em Marylebone Road. Meu tio, como você sabe, mora em Regent’s
Park. Queria alcançar Piccadilly e, para atalhar, meti-me por uma enfiada de
becos miseráveis. De repente avistei à minha frente Lady Alroy, com um espesso
véu e caminhando muito apressada. Ao chegar à derradeira casa da rua, subiu os
degraus, tirou do bolso uma chave, abriu a porta e entrou. “Aqui está o
mistério”, disse a mim mesmo e apressei-me em examinar a casa. Parecia uma
espécie de prédio de aluguer. No degrau da porta estava caído o lenço dela.
Apanhei-o e meti-o no bolso. Depois comecei a reflectir no que devia fazer.
Cheguei à conclusão de que não tinha o direito de espioná-la. Tomei um carro e
segui para o clube. Às seis horas fui visitá-la. Estava sentada num sofá, em
traje de chá, um tecido prateado, preso por uns broches de certas estranhas
pedras lunares que sempre usava. Era de uma beleza perfeita.
“Alegra-me tanto vê-lo – disse. – Não saí hoje durante o
dia”.
Olhei para ela, estupefacto e tirando o lenço do meu bolso,
entreguei-lho.
“Deixou cair isto esta tarde, Lady Alroy, na Rua Cumnor” –
disse eu, calmamente.
Ela olhou para mim, aterrorizada, mas não fez o menor gesto
para pegar no lenço.
“Que estava a fazer ali?” – perguntei.
“Que direito tem o senhor de fazer-me perguntas?” –
replicou.
“O direito de um homem que a ama” – respondi-lhe. – “Vim
aqui para pedi-la em casamento”.
Ocultou o rosto nas mãos e desfez-se em pranto.
“Tem de responder-me” – continuei.
Ela ergueu-se e, fitando-me o rosto, disse:
“Lorde Murchison, nada tenho a dizer-lhe”.
“Foi encontrar alguém” – exclamei. – “É esse o seu
mistério”.
Ela ficou terrivelmente pálida e disse:
“Não fui encontrar ninguém”.
“Não pode dizer a verdade?” – exclamei.
“Já a disse” – replicou ela.
Eu estava a enlouquecer, alucinado. Não sei o que disse, mas
foram coisas terríveis. Por fim, saí à pressa da casa. Escreveu-me uma carta no
dia seguinte. Devolvi-lha, intacta e parti para a Noruega, em companhia de Alan
Colville. Um mês depois regressei e a primeira coisa que vi no Morning Post foi
a notícia da morte de Lady Alroy. Apanhara um resfriado na Ópera e morrera,
dentro de cinco dias, de congestão pulmonar. Fechei-me em casa e não quis ver
ninguém. Tinha-a amado tanto, tinha-a amado tão loucamente! Meu Deus! Quanto
amara eu aquela mulher!
– E você, foi àquela rua, àquela casa? – perguntei.
– Sim – respondeu.
– Um dia, fui à Rua Cumnor. Não podia deixar de fazê-lo.
Vivia torturado pela dúvida. Bati à porta e uma mulher de aspecto respeitável
abriu-a para mim. Perguntei-lhe se havia quartos para alugar.
“Bem, meu senhor – respondeu ela – as salas podem ser
alugadas, mas há três meses que não tenho visto a senhora e como os alugueres
estão-se a acumular, o senhor poderá alugá-las”.
“É esta a senhora?” – perguntei, mostrando-lhe a fotografia.
“É ela, sim, com toda certeza” – exclamou a mulher. – “E
quando estará de volta, meu senhor?”
“Morreu” – respondi.
“Oh! meu senhor, não diga!” – disse a mulher. – “Era a minha
melhor inquilina. Pagava-me três guinéus por semana simplesmente para vir
sentar-se nesta minha sala de vez em quando”.
“Encontrava-se com alguém aqui?” – perguntei, mas a mulher
garantiu-me que tal não ocorria, que ela sempre vinha sozinha e não via
ninguém.
“Mas afinal que fazia ela aqui?” – exclamei.
“Ficava simplesmente sentada na sala, meu senhor, lendo
livros e às vezes tomava chá” – respondeu a mulher.
Não sabia o que dizer, de modo que lhe dei um soberano e
saí. Agora, que pensa que significava tudo aquilo? Não acredita que a mulher
estivesse a dizer a verdade?
– Acredito.
– Então por que ia Lady Alroy ali?
– Meu caro Geraldo – respondi – Lady Alroy era simplesmente
uma mulher com a mania do mistério. Alugava aqueles quartos somente pelo prazer
de ir ali, de véu descido e imaginando ser uma heroína.
Tinha paixão pelo
segredo, mas não passava de uma simples esfinge sem segredo.
– Estou convencido disto – repliquei.
Lorde Murchison tirou do bolso a carteira de marroquim,
abriu-a e olhou a fotografia.
Quem sabe? – disse afinal.
Oscar Wild
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