«A Mãe»
Galinha e Pintainhos/ Beniamino Parlagreco
874- «A MÃE»
Num vale fechado por colinas arborizadas, sorridentes com as
cores da primavera, erguem-se, uma ao lado da outra, duas grandes casas
singelas, de pedra e cal. Pareciam feitas ambas pelas mesmas mãos, e até os
jardins cercados de sebes, existentes diante de cada uma delas, eram das mesmas
dimensões e forma. Seus habitantes, porém, não tinham o mesmo destino.
Num dos jardins, enquanto o cão dormia na corrente e o
camponês lavorava em volta do pomar, num cantinho, apartados, alguns pintinhos
falavam de suas grandes experiências. Havia outros mais velhos no jardim, mas
os pintinhos, cujos corpos conservavam ainda a forma do ovo de que haviam
saído, gostavam de examinar entre eles a vida em que ora estavam e com a qual
ainda não se acostumavam. Já haviam sofrido e gozado porque a vida de uns
poucos dias é mais longa do que pode parecer a quem a experimenta em anos, e
sabiam muitas coisas, já que haviam trazido consigo desde o ovo uma boa parte
da grande experiência. De fato, mal avistaram a luz do dia, perceberam que era
necessário examinar-se bem as coisas, primeiro com um olho depois com o outro,
para se saber se deviam comê-las ou refugá-las.
E falavam do mundo e de sua vastidão, com aquelas árvores e
sebes que os circundavam, e aquela casa tão grande e tão alta. Falavam de todas
as coisas que estavam vendo, mas que eram vistas melhor quando falavam
delas.
Um deles, de penugem amarelada, já saciado – e
portanto desocupado – não se contentou em falar das coisas que se viam e
relatou algo que a tepidez do sol lhe havia sugerido: — A verdade é que estamos
bem graças ao calor do sol, mas soube que neste mundo podemos estar ainda
melhor, o que me desagrada muito e lhes conto para que lhes desagrade também. A
filha do camponês disse que somos infelizes porque não temos mãe. Disse
isto com um acento de tão forte compaixão que quase chorei.
Outro, mais branco e algumas horas mais novo que o primeiro,
e que por isso se lembrava ainda com satisfação da doce atmosfera em que
nascera, protestou: — Bem que tivemos mãe. É aquele pequeno armário sempre
quente, mesmo quando faz o frio mais intenso, do qual saem os pintinhos já
prontos.
O amarelo, que já trazia havia muito gravadas na alma as
palavras da camponesa, e tivera portanto tempo de ampliá-las sonhando com
aquela mãe a ponto de imaginá-la do tamanho do jardim e tão gostosa como a
comida, exclamou, com um desprezo destinado tanto ao seu interlocutor quanto à
mãe da qual este falara: — Se se tratasse de uma mãe morta, todos
nós a teríamos . Mas a mãe está viva e corre muito mais veloz do que nós.
Talvez tenha rodas como a carroça do camponês. Por isso pode estar ao teu lado,
sem que haja necessidade de chamá-la, para aquecer-te quando estiveres a ponto
de sucumbir pelo frio deste mundo. Como deve ser bom ter ao nosso lado, de
noite, uma mãe assim.
Interveio um terceiro pinto, irmão dos demais por ter saído
da mesma máquina, porém que o havia fabricado um tanto diferente, o bico mais
largo e as perninhas mais curtas. Achavam-no um pintinho mal-educado porque
quando comia ouvia-se bater seu bico no chão, quando na verdade se
tratava de um patinho que entre os seus era tido por muito educado. Também na
presença deste a camponesa havia falado a respeito de mãe. Isso acontecera
naquela vez em que um pintinho morrera caído exausto de frio na grama, cercado
pelos outros pintinhos que não o haviam socorrido por não sentirem o mesmo frio
que os demais. E o patinho com o ar ingênuo que tinha sua carinha invadida pela
base larga de seu bico, afirmou convicto que se tivessem mãe os pintinhos não
podiam morrer.
O desejo de ter mãe logo infestou o galinheiro e se tornou
mais vivo, mais inquietante na mente dos pintinhos mais velhos. Muitas vezes as
doenças infantis atacam os adultos e se tornam perigosas para eles, e as
ideias também, às vezes. A imagem da mãe como se havia formado naquelas
cabecinhas aquecidas pela primavera, desenvolveu-se desmesuradamente, e tudo o
que era bom passou a chamar-se mãe, o tempo bom e a abundância, e quando os
pintinhos, os patinhos e os peruzinhos sofriam, tornavam-se verdadeiros irmãos
porque suspiravam pela mesma mãe.
Um dos mais velhos jurou um dia que havia encontrado sua
mãe, pois não queria mais viver sem ela. Era o único no galinheiro que tinha um
nome e se chamava Curra, porque quando a camponesa com as rações no avental
chamava curra, curra, ele era o primeiro a correr. Já era vigoroso, um
galinho em cuja alma generosa se albergava a combatividade. Esbelto e comprido
como uma lâmina, ele exigia a mãe antes de tudo para que o admirasse: a mãe que
diziam saber proporcionar todas as doçuras e, portanto, a satisfação das
ambições e das vaidades.
Um dia, resoluto, Curra de um salto deslizou para fora da
sebe que, compacta, contornava o jardim natal. Ao ar livre parou de súbito
incontido. Onde encontrar a mãe na imensidão daquele vale sobre o qual um céu
azul se sobrepunha ainda mais vasto? A ele, tão pequenino, não era possível
procurar naquela imensidão. Por isso não se afastou muito do jardim natal, o
mundo que conhecia, e, pensativo, deu-lhe a volta. Acabou assim chegando
diante da sebe do outro jardim.
— Se a mãe estivesse aqui dentro – pensou – eu logo a
teria encontrado. Recuperando-se da perturbação que lhe causava o espaço
infinito, não mais hesitou. Com um pulo atravessou também aquela sebe, e encontrou-se
num jardim muito semelhante àquele donde viera.
Também ali havia um enxame de pintinhos muito novos que se
debatiam na grama espessa. Mas ali havia também um animal que faltava no jardim
anterior. Um pintinho enorme, talvez dez vezes maior que Curra, dominava no
meio dos animaizinhos apenas cobertos de penugem, os quais – como logo se via –
consideravam o grande e poderoso animal como seu chefe e protetor. E esse
vigiava a todos. Dirigia uma admoestação àquele que se afastava demasiado, com
dois sons muito semelhantes aos que a camponesa no outro jardim usava com os
próprios pintinhos. Mas fazia algo mais. De tempos em tempos se aninhava sobre
os mais fraquinhos cobrindo-os com todo o seu corpo, decerto para lhes
transmitir seu próprio calor.
— Aquela é a mãe, — pensou Curra todo alegre, —
Encontrei-a e agora não vou deixá-la mais. Como vai me amar! Sou mais forte e
mais belo que todos os outros. E além disso vai ser fácil para mim obedecê-la,
já que a amo. Como é bela e majestosa. Já estou amando-a e quero me submeter a
ela. Vou até ajudá-la a proteger todos estes insensatos.
Sem olhar para ele a mãe o chamou. Curra aproximou-se
achando que ele fora mesmo o chamado. Viu-a ocupada em remover a terra com
rápidos golpes dos poderosos esporões, e parou curioso com aquele trabalho que
ele presenciava pela primeira vez. Quando ela parou, um pequeno verme se
retorcia diante dela no terreno cuja grama arrancara. Agora ela cacarejava
enquanto os pintinhos em seu redor não compreendiam e a olhavam estáticos.
— Que tolos! – pensou Curra. – Não compreendem que ela quer
que eles comam a minhoca. – E, sempre impelido pelo seu entusiasmo de
obediência, precipitou-se rápido sobre a presa e a engoliu.
Aí então — pobre do Curra – a mãe lançou-se furiosa contra
ele. Custou a entender o que estava acontecendo porque a princípio pensou que
ela, que acabara de encontrá-lo, quisesse acariciá-lo efusivamente. Aceitaria
reconhecido todas as carícias das quais nada sabia, e por isso admitia que até
podiam ser más. Mas os golpes do duro bico, que choviam sobre ele, certamente
não eram beijos e lhe afastaram qualquer dúvida. Quis fugir, mas o passaroco
impediu-o e, passando-lhe à frente, saltou-lhe em cima fincando-lhe as garras
no ventre.
Com um esforço imenso, Curra ergueu-se e correu para a sebe.
Em sua louca corrida derrubou uns pintinhos que lá ficaram com as patinhas para
o ar piando desesperadamente. Foi o que lhe permitiu salvar-se, pois sua
inimiga se deteve um instante junto aos caídos. Chegando à sebe, Curra, com um
salto, apesar de tantos ramos e espinhos, conseguiu levar seu pequeno e ágil
corpo para fora.
A mãe, ao contrário, ficou presa no intrincado espesso da
sebe. E lá ficou majestosa olhando como se de uma janela o intruso que,
exausto, também havia parado. Olhava-o com olhos redondos, rubros de
raiva. — Quem é você que se apropriou da comida que eu com tanto esforço
havia escavado da terra?
— Eu sou o Curra — disse humildemente o pintinho.
— Mas quem é você que me machucou tanto?
Às duas perguntas houve uma só resposta: — Eu sou a
mãe, — e desdenhosamente lhe voltou as costas..
Algum tempo depois, Curra, já agora um magnífico galo de
raça, achava-se em outro galinheiro. E um dia ouviu que todos os seus novos
companheiros falavam com afeto e saudades sobre a mãe.
Admirado de seu próprio e atroz destino, Curra disse com
tristeza: — Minha mãe, ao contrário, era um uma fera hodienta e teria sido
melhor para mim se nunca a tivesse conhecido.
Italo Svevo
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