«Carta de um Defunto Rico»
Ilustração Alexandre Camanho
877- «CARTA DE UM DEFUNTO RICO»
Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas
mórbidos, purificar-me no ar superior - e bebo, como um puro e divino licor, o
fogo claro que enche os límpidos espaços.
Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra,
atazanam a inteligência de tanta gente.
Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador do
Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para
autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes
herdeiros - coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia;
não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática
monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas, e pedir a
literatos das ante-salas palacianas que as proclamem raridades de beleza, a fim
de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingénuos com recordações
de um passado que não devia ser avivado.
Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas
não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas
almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos
descendentes dos seus primitivos donos.
Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa
haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam
retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os
seus móveis e as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de
teatro. O homem e as suas criações precisam, para refulgir, do seu ambiente
próprio, penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma;
é com as emanações de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua
existência que as coisas se enchem de beleza.
É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do
personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a
linguagem em si etc. etc. Estando ela ausente, por incapacidade do actor, o
drama não vale nada.
Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e
cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos
imperantes, porque teria que dar a elas alma, tentativa em projecto que, além
de inatingível, é supremamente sacrílego.
De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele,
não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem
tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados
pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos.
Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente
eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do
que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos
que ingerimos.
Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.
Os mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da super-existência
aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma todo o
ódio, todo o despeito, todo o rancor.
Os que não conseguem isso - ai deles!
Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era
outra.
O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer
isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não
é propriamente meu, mas de vocês, e não há mal algum que um vivente tenha um
naco de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da
Academia de Letras.
Enterro e demais cerimónias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas
por vivos para vivos.
É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser
enterrados. Cada um enterra seu pai como pode - é uma sentença popular, cujo
ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos
sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos,
tanto na forma como no fundo.
O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os
cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas,
eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens
terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades económicas e sociais que
fazem pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele
até o portão de São João Baptista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não
havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali.
Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma
população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a
última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos
meus próprios parentes.
Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no
fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.
Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas pelo
facto de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem
formei, a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que
eu.
Adivinhei isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta
consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que...
Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te
fez as sabatinas por "tuta-e-meia; e contenta-te com o que herdaste
do teu pai e com o que tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti!
Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação
matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade.
Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação deliciosa
em que estou foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Actualmente, sou
sempre...
Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela,
que havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha
missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento.
Agradeço a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me
permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo
e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por que vocês não forneceram librés
novas aos cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de
tal maneira andrajosa que causava dó?
Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os
pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito
satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de
caridade.
Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que
estou sempre junto de vocês.
estou sempre junto de vocês.
É tudo isto do
José Boaventura da Silva
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