sexta-feira, 2 de setembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Visor», por Raymond Carver.

«Visor»
Conto de Raymond Carver

864- «VISOR»

Um homem sem mãos apareceu na minha porta para me vender uma fotografia da minha casa. A não ser pelos ganchos cromados, era um homem de aspecto comum, de mais ou menos cinquenta anos.

“Como foi que você perdeu as mãos?”, perguntei, depois de ele dizer o que queria.

“Isso é outra história”, respondeu. “Quer esta foto ou não quer?”

“Entre um pouco”, falei. “Acabei de fazer um café.”

Tinha acabado de fazer também uma gelatina. Mas isso eu não contei ao homem.

“Acho que vou usar a sua casa de banho”, disse o homem sem mãos.

Eu queria ver como ele fazia para segurar uma chávena.

Eu sabia como ele segurava a máquina fotográfica. Era uma velha máquina fotográfica Polaroid, grande e preta. Ficava presa a tiras de couro que passavam por cima dos seus ombros e em volta das costas, e era assim que a máquina fotográfica se mantinha segura no seu peito. Ele ficava na calçada, na frente de uma casa, enquadrava a casa no visor da máquina fotográfica, apertava a alavanca com um dos ganchos e a fotografia pulava para fora da máquina.

 Eu ficava olhando pela janela, entende?

“Onde você disse que fica a casa de banho?”

“Ali adiante, vire à direita.”

Curvando-se, retorcendo-se, ele tinha-se livrado das tiras de couro. Colocou a máquina fotográfica no sofá e ajeitou o casaco.

“Pode dar uma olhada nisto aqui enquanto vou à casa de banho.”

Peguei a fotografia da mão dele.

Havia um pequeno retângulo de relva, a entrada para o carro, o abrigo do carro, a escadinha da entrada da casa, o janelão e a janela por onde eu estava olhando da cozinha.

Mas por que eu ia querer uma foto daquela tragédia?

Olhei com mais atenção e vi minha cabeça, minha cabeça, lá dentro da janela da cozinha.

Aquilo me fez pensar, ver a mim mesmo daquele jeito. Garanto a vocês, isso faz a gente pensar.

Ouvi o barulho da descarga do autoclismo. Ele veio pelo corredor, fechando a braguilha e sorrindo, um gancho segurava o cinto, o outro enfiava a camisa para dentro da calça.

“O que o senhor acha?”, perguntou. “Não ficou boa? Pessoalmente, acho que saiu bem. E então eu não conheço o meu trabalho? Vamos ser francos, tem de ser um profissional.”

Puxou o gancho da calça.

“Aqui está o seu café”, falei.

Ele disse: “Você está sozinho, não é?”.

Olhou para a sala de estar. Balançou a cabeça.

“É duro, é duro”, disse.

Sentou-se junto à máquina fotográfica, inclinou-se para trás com um suspiro e sorriu como se soubesse de uma coisa que não ia me contar.

“Tome o seu café”, falei.

Fiquei tentando pensar em alguma coisa para dizer.

“Três garotos passaram por aqui querendo pintar meu endereço no meio-fio. Queriam um dólar para fazer isso. Por acaso já ouviu falar disso?”

Foi um tiro no escuro. Mesmo assim, fiquei olhando bem para ele.

O homem inclinou-se para a frente com um ar importante, a chávena balançava entre seus ganchos. Colocou a chávena na mesa.

“Eu trabalho sozinho”, disse. “Sempre foi assim, e sempre vai ser. O que está querendo dizer?”

“Estava tentando fazer uma ligação”, falei.

Eu estava com dor de cabeça. Sei que café não é bom para isso, mas gelatina às vezes ajuda. Peguei a foto.

“Eu estava na cozinha”, falei. “Costumo ficar nos fundos.”

“Acontece toda hora”, disse ele. “Quer dizer que eles vieram falar com você e foram embora, é? E agora sou eu, mas eu trabalho sozinho. E então, o que me diz? Quer ficar com a minha foto?”

“Vou ficar com ela”, respondi.

Levantei e peguei as chávenas.

“Claro que vai”, disse ele. “Tenho um quarto no centro. É bom. Pego o autocarro, sabe, e depois que já trabalhei num bairro inteiro, vou para outro lugar. Entende o que estou dizendo? Ei, já tive filhos uma época. Igual a você”, disse.

Esperei com as chávenas na mão e fiquei olhando enquanto ele lutava para se levantar do sofá.

Ele disse: “Foram eles que me causaram isto aqui”.

Dei uma boa olhada naqueles ganchos.

“Obrigado pelo café e por me deixar usar a sua casa de banho. Sinto muito.”

Ergueu e baixou seus ganchos.

“Mostre”, falei. “Mostre-me quanto é. Tire mais umas fotos de mim e da minha casa.”

“Não vai dar certo”, respondeu. “Eles não vão voltar.”

Mas eu o ajudei a se encaixar nas suas alças.

 “Posso fazer um desconto para você”, disse ele. “Três por um dólar”, disse. “Se eu fizer mais barato que isso, não ganho nada.”

Fomos para fora. Ele ajustou o obturador. Disse onde eu tinha de ficar e tiramos a foto.

Demos a volta na casa. Sistemáticos. Às vezes, eu olhava meio de lado. Outras vezes, olhava de frente para a máquina fotográfica.

“Ficou bom”, disse ele. “Esta ficou boa”, disse, depois que tínhamos dado a volta inteira na casa e estávamos na frente outra vez. “São vinte. Já chega?”

“Não”, falei. “No telhado”, falei.

“Ena”, disse ele. Olhou para os dois lados do quarteirão. “Claro”, disse.

“Assim é que se fala.”

Eu disse: “O grupo toda de uma vez. Eles simplesmente pegaram as coisas e partiram”.

“Olhe só isto!”, disse o homem, e levantou de novo os ganchos para mim.

Entrei e voltei com uma cadeira. Coloquei debaixo do abrigo para carro. Mas ainda não dava para alcançar. Então peguei um caixote e coloquei em cima da cadeira.

Estava bom lá em cima do telhado.

Fiquei de pé e olhei em volta. Acenei com a mão e o homem sem mãos acenou em resposta com seus dois ganchos.

Então vi as pedras. Parecia um pequeno ninho de pedras ali em cima da tela, sobre o buraco da chaminé. Sabe como são as crianças. Sabe como elas jogam as pedras para o alto, tentando acertar no buraco da chaminé da gente.

“Pronto?”, perguntei, e peguei uma pedra, e esperei até que ele me enquadrasse em seu visor.

“Certo!”, respondeu.

Estiquei o braço para trás e berrei: “Agora!”. Joguei aquela filha da puta o mais longe que consegui.

“Não sei”, ouvi ele gritar. “Não tiro fotos em movimento.”

“De novo!”, gritei, e peguei outra pedra. Sorri. Senti que eu podia me elevar. Voar.

“Agora!”, gritei.

Raymond Carver

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