«O Caso de Bartholomeu Bernardino»
Foto: João Lebre/ Fonte: Altejo
879- «O CASO DE BARTHOLOMEU BERNARDINO»
Vai
longe o dia 4 de Novembro de 1889, conforme reza na lápide, encimada com cruz,
posta no local onde foi barbaramente assassinado Bartholomeu Bernardino.
Quando
se conta uma estória, ou determinado facto, decorridos muitos anos do seu
acontecimento, cada narrador elimina pedaços do episódio que lhe parecem menos
consentâneos com a realidade, acrescenta aqui e ali o que julga estar mais de
acordo com a mesma, chegando a mudar nomes de intervenientes no ocorrido apenas
por serem mais do seu agrado. O resultado final está à vista: é um modo de
contar pessoal e descaraterizado tão diferente de outras narrativas anteriores
como a noite é do dia.
Consultando
os arquivos do nosso amigo Francisco, onde descobri referência a este caso,
escreve ele que, ao contrário do escrito na pedra “Foi Roubado…”, Bartholomeu
Bernardino era antes um ladrão, com quem teriam acertado contas manhosas
naquele fatídico dia de 4 de Novembro de 1889.
Eu
próprio tive contacto com o assunto, nos tempos remotos da infância, a caminho
de Vale Vaqueiros, acompanhando meu avô Sousa. A lápide, então cravada no muro
de xisto que acompanhava o caminho, chamou a minha atenção de pequeno curioso.
À pergunta singela “avô que pedra é esta na parede?”, recebi a resposta seca
«não é coisa para a tua idade».
Fiquei
ciente que do avô, nesse ou noutro dia qualquer, não teria explicação para o
significado da lápide aposta no velho muro de xisto.
Logo
que tive oportunidade entrei na oficina do mestre Palma, sapateiro que me punha
as meias solas nas botas, pois gostava de ver a arte que empregava no ofício e
de ouvir estórias antigas sobre a vila, que mestre Palma sabia contar com o
jeito inato de captar a atenção de quem o ouvia.
Encontro
com mestre Palma
Abordei
a questão à defesa, pois temia, tratando-se de algo vedado a pequenos como eu…,
ouvir outra resposta seca como a do avô…
Mestre
Palma fixou-me nos olhos com os seus, que expressavam sempre um sorriso doce e
tácito com a vida, criando em mim, desde logo, a noção de que sabia a estória
tim tim por tim tim…
Eu
também tinha sido honesto e comentara-lhe a evasiva de meu avô Sousa em
contar-me o que se tinha passado no dia 4 de Novembro de 1889.
Disse
mestre Palma: «não podes, nunca… por nunca…, dizer lá em casa que falámos do
Bartholomeu…, as pessoas não querem saber desse passado com quase um século de
morto…, e eu devo bastantes favores ao teu avô doutor…, sim…, em criança
tratou-me de febres intestinais e já rapazote com pelos na cara, livrou-me da
febre carraça…, que essa ia pregando comigo na cova…, enfim favores que não se
esquecem.
Não
se ouvia uma mosca, nem a nossa respiração que parecia suspensa no tempo, ao
encontro de outros tempos que preenchiam agora todo o pequeno espaço da oficina.
O
que mestre Palma sabia sobre o assassinato que perturbou as gentes da vila
Mestre
Palma estava a meio de umas botas novas – cozia a parte do corpo à palmilha
aonde ia assentar a sola – e continuou o seu trabalho enquanto falava, variando
apenas a entoação da voz quando tinha que perfurar o cabedal com a grossa
agulha para passar o fio.
«Esse
Bartholomeu Bernardino…, assim era o seu nome de batizado…, era guarda
municipal, ou guarda noturno… – que nesse tempo era a mesma coisa – …ainda
estávamos na monarquia.
Fazia
a ronda noturna pela vila, sempre começando nos baixos – nas eiras…, onde aliás
morava – e vinha topando, nesta rua e mais naquela, se havia descuidos dos
moradores, como portas mal fechadas, lumes esquecidos por apagar, ou algum
malandrote a fazer das suas a desoras, até passar pela Praça Municipal e
percorrer os altos da povoação.
Nessa
noite entrou na rua da Mata – dizem que é a rua mais antiga da vila – avistando
uma luz ténue numa loja bem fornecida de tudo, precisamente onde é hoje a do
Sr. Bernardino – vê tu bem a coincidência do nome – e ao aproximar-se viu a
porta entreaberta, o que o pôs de sobreaviso. Pé ante pé, não ouviu ruído algum
que lhe indicasse a presença de alguém dentro da loja… …e lá estava um pequeno
candeeiro com o petróleo quase gasto, em cima da mesa da escrita do dia a dia.
Chamou…,
primeiro em surdina, depois mais afoito, chamou pelo proprietário do
estabelecimento – creio que se chamava Macedo – e não obtendo resposta, admitiu
que tinha havido esquecimento do mesmo. Apagou o candeeiro e fechou a porta,
murmurando entre dentes – é com um descuido destes que se arranja um fogo para
destruir tudo.
No
outro dia a pequena vila acordou em polvorosa com a notícia da “visita” noturna
à loja da Rua da Mata – rapinaram tudo o que puderam carregar.
Bartholomeu
estava nervoso…, sentia um grande rubor facial e não conseguia que o corpo
parasse de tremer. A mulher gritava-lhe «vergonha…, onde andavas tu que não
deste por nada?, ainda correm contigo da guarda… e era bem feito…, tenho pena é
do senhor Macedo… uma loja com tanta coisa boa…».
–Mas
onde diabo é que eles estavam metidos? – foi a única frase que o tremelicante
Bartholomeu conseguiu articular de jeito.
A
mulher de Bartholomeu Bernardino, que ia sempre aviar a casa à loja do Macedo,
estava possessa, como depreenderia quem quer que a ouvisse: –a loja só tem duas
dependências…, a de atender os fregueses e o armazém, que fica na parte de
trás, onde o coitado do senhor Macedo tem em reserva os produtos que mais se
vendem…, pois era aí que estava o gatuno – ou os gatunos – branco é galinha o
põe. A mulher não vira crescer o rubor facial do marido, assim como a
expressiva inquietude nos seus olhos, procurando esconder-se dos dela.
Até
aqui a narrativa foi de mestre Palma, com toda a habilidade e perspicácia que punha
no seu modo de contar característico, dando ênfase a frases que queria realçar,
fazendo mudanças no tom de voz, consoante o ritmo que desejava imprimir à
narrativa, mesmo vírgulas e pontos finais o ouvinte dava conta deles.
O
que segue é, simplesmente, uma visão do autor sobre o desenrolar trágico de um
acontecimento ainda hoje, cento e vinte e sete anos depois, envolto sob a capa
do mistério.
Um
pressentimento com consequências funestas
Alda,
assim se chamava a mulher de Bartholomeu Bernardino, sentia que o senhor Macedo
a cortejava, sabendo-a uma mulher casada.
Freguesa
habitual, como outras, era-lhe dispensada uma atenção especial pelo dono da
mercearia: «leve deste bacalhau que é muito bom…, a carne é de primeira
qualidade…, manteiga e açúcar são sempre produtos racionadas, mas para a D.
Alda arranjam-se sempre…».
Um
sorriso discreto quando a via chegar, ou a insistência para ver um tecido da
moda, procurando reter a sua presença por mais tempo, eram sinais que Alda
captava e traduzia para si.
Macedo
era viúvo, de meia idade, além de bem parecido e com educação, estava assente
numa vida desafogada.
A
comparação que lhe aflorava no pensamento prostrava-a num estado de confusão
inevitável, levando-a a sair bruscamente da loja e a procurar refúgio na
ermidinha de Nossa Senhora da Consolação.
Se
eram horas de encerrar, ou não tinha fregueses para atender, Macedo seguia-a a
distância segura de modo a não levantar suspeitas, apreciando o estado de alma
que conseguia provocar em Alda… e ela em si…, que sempre dissera, para os seus
botões, ser mal empregue aquela flor no bexigoso monte de banha do guarda noturno.
A
vila era pequena e os mexericos pelo menos com o dobro do tamanho. Qualquer
desgraça, ou sucedido alheio, saltavam de porta em porta mais velozes que o
vento em dias de zumbir.
No
dia de folga, Bernardino visitava as tascas que eram muitas nesse tempo, quase
uma por cada rua.
E
foi aí que começou a ouvir os ditos e desditos dos companheiros de copos, a
quem a língua se solta mal emborcam uma gota a mais, sobre o seu estado de
saúde, para ser mais preciso, da sua testa que parecia estar cada dia mais disforme.
Fingia
passar-lhe ao lado, não ser para ele cada farpa lançada, regressando a casa não
só a abarrotar de vinho, mas também de incontida raiva. E bem se continha
perante a mulher: dava-lhe jeito mesa posta a tempo e horas e a roupa bem
lavada e engomada.
Arquitetou
um plano de vingança bem orquestrado, pensava ele, para assaltar, ele próprio
guarda noturno, a loja da Rua da Mata.
A
porta não lhe ofereceu resistência, pois no chaveiro da guarda municipal estava
um duplicado para casos de emergência. E o candeeiro que ficara aceso…, fora
ele que o acendera para descobrir a caixa onde o Macedo guardava o contado que
depositaria no Banco do Alentejo, quando fosse a Estremoz comprar mercadoria.
Eram 48 mil réis que tinha dentro, ficando a caixa limpa.
Soube
logo o Macedo quem fora o autor da proeza, pois a porta não tinha sinais de
arrombamento, antes pelo contrário, a boa conservação era notória. E grande
parte do petróleo com que abastecera o candeeiro na manhã anterior
evaporara-se.
Só
Bartholomeu Bernardino tinha acesso à chave dupla, cogitou o Macedo, ao mesmo
tempo que lhe jurava a cobrança com juros de mora… «disso podia estar certo o
canalha»…
Planeou,
então, fazer saber que o produto do roubo se limitara a géneros de mercearia e
da drogaria, isco facilmente engolido por um ou dois alcoviteiros que
espalharam a notícia por toda a vila, num ápice.
Uma
espera na volta para casa num fim de tarde de domingo, dia em que o guarda
noturno folgava, regresso sempre feito com o buxo atulhado e a mente leve que
nem a pena de um passarinho… assim trataria do assunto.
Macedo
sabia-lhe a rotina do caminho, determinou o dia da ação e pôs-se à coca.
Caíra
a noite e cacimbava. De ouvido atento, esperava o primeiro sinal do regresso de
um bêbedo que tinha por hábito falar para o vazio e cantarolar para as
estrelas.
De
repente, o piar de uma ave noturna, por perto, levou o encoberto a deitar a mão
ao cabo do facalhão que trazia sob a capa.
Mais
uma e duas vezes apurou o ouvido…, então sim…,era sem dúvida ele que estava de
regresso…, percebia-se o andar aos ziguezagues, da bebedeira que carregava às
costas. A “alegria” – estado de embriaguez – dava-lhe para vir assobiando uma
melodia roufenha…, impercetível… a
melodia da morte!
Já
mais perto, Macedo ouviu o que lhe pareceu ser uma ameaça: «meeuu graande
saacana voou coortar-te as goelas como faaço aos frangos…
Calou-se!
A passeata estava agora muito perto…, uma pedra e outra saltavam debaixo dos
pés de quem caminhava.
Macedo
saltou para cima do muro, certo que não daria pela sua presença. Viu um vulto
no escuro, quase a cruzar-se com o sítio onde se encontrava. Cortou-lhe o
caminho, com o facalhão na mão e a capa atirada para trás. «Não era tempo para
conversa o momento, ainda que seria inútil falar com um candidato a morto
completamente embriagado».
As
duas primeiras facadas, que recebeu no ventre, nem as sentiu, tal o estado de
anestesia que o álcool provocara…, …às três seguintes disse um «ai» apenas. À
sexta estava morto.
O
Macedo, para cumprir a promessa, cobriu-lhe o tronco e o bandulho com mais
quarenta e duas, contadas no dia seguinte pelo oficial de diligências da
Comarca e verificadas pelo perito forense que fez a autópsia – foram quarenta e
oito facadas.
O
médico legista, cofiando o farto bigode, desabafou com o oficial de diligências:
«nos termos legais está tudo conforme…, identificação, hábito externo e hábito
interno do cadáver, assinatura das duas testemunhas que o reconheceram e as
nossas assinaturas…
…mas
quem teria tanto ódio a um pobre pastor de 23 anos, de volta para o redil…, não
foram facadas para roubar… …não foram… não!».
Epílogo
Por
terrível coincidência o desgraçado rapaz tinha o nome de batismo de Bartholomeu
Bernardino. Natural de uma aldeiazinha da Beira Baixa, viera com o pai, ainda
muito novo, trabalhar para a casa de um lavrador abastado, como ajudante de
pastor.
Já
moço homem viu o progenitor morrer com uma doença que o secou por dentro e por
fora..., em vésperas da morte deitou pela boca o pouco sangue que lhe restava.
O
lavrador, vendo o mancebo desenvolto, entregou-lhe o rebanho por conta.
Mas
já nesses anos, as falsas amizades rondavam à volta da carteira que sabiam ter
algum recheio como as abelhas o fazem ao mel.
Nesse dia 4 de Novembro de 1889 Bartholomeu fora
despedido pelo patrão, farto de ver o gado maltratado e atacado pelos lobos e
cães vadios, enquanto o seu pastor deambulava pela vila, percorrendo as
tabernas. E também com a desconfiança de que alguns animais eram roubados pelas
más companhias de Bartholomeu, sabendo-o longe do sítio onde pernoitava.
O fim, como acabámos de ler, não foi nada bom.
O Macedo nunca mais viu Alda entrar-lhe pela porta da
loja…, faleceu pouco tempo depois, meio louco, ninguém acreditou na confissão
que fez à hora da morte.
O guarda noturno Bartholomeu Bernardino continuou a
fazer as suas rondas à vila, com a mesa posta a tempo e horas… e a roupa bem lavada
e engomada…
AC
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