«Boas Noites!»
Carnaval em São Fidélis
986- «BONS NOITES!»
Ei-lo que chega... Carnaval à porta!... Diabo! aí vão
palavras que dão ideia de um começo de recitativo ao piano; mas outras
posteriores mostram claramente que estou falando em prosa; e se prosa quer
dizer falta de dinheiro (em cartaginês, está claro) então é que falei
como um Cícero.
Carnaval à porta. Já lhe ouço os guizos e tambores. Aí vêm
os carros das ideias... Felizes ideias, que durante três dias andais de carro!
No resto do ano ides a pé, ao sol e à chuva, ou ficais no tinteiro, que é ainda
o melhor dos abrigos. Mas lá chegam os três dias, quero dizer os dois, porque o
de meio não conta; lá vêm, e agora e a vez de alugar a berlinda, sair e
passear.
Nem isso, ai de mim, amigas, nem esse gozo particular, único
cronológico, marcado, combinado e acertado, me é dado saborear este ano. Não
falo por causa da febre amarela; essa vai baixando. As outras febres são apenas
companheiras. . . Não; não é essa a causa.
Talvez não saibam que eu tinha uma ideia e um plano [...]
Mas a falta de dinheiro (prosa, em língua púnica) não me
permite pôr esta ideia na rua. Sem dinheiro, sem ânimo de o pedir a alguém, e,
com certeza, sem ânimo de o pagar, estou reduzido ao papel de espectador. Vou
para a turbamulta das ruas e das janelas; perco-me no mar dos incógnitos.
Já alguém me aconselhou que fosse vestido de tabelião.
Redargui que tabelião não traz ideia; e depois, não há diferença sensível entre
o tabelião e o resto do universo. Disseram-me que, tanto há diferença, que
chega a havê-la entre um tabelião e outro tabelião.
– Não leu o caso do tabelião que foi agora assassinado, não
sei em que vila do interior? Foi assassinado diante de cinquenta pessoas, de
dia e na rua, sem perturbação da ordem pública. Veja se há de nunca acontecer
coisa igual ao Cantanheda...
– Mas que é que fez o tabelião assassinado?
– É o que a notícia não diz, nem importa saber. Fez ou não
fez aquela escritura. Casou com a sobrinha de um dissidente político. [...]
Vista-se você de tabelião da roça, com um tiro de garrucha varando-lhe as
costelas.
– Mas como hei de significar o tiro?
– Isto agora é que é ideia; procure uma ideia. Há de haver
uma ideia qualquer que significa um tiro. Leve à orelha uma pena, na mão uma
escritura para mostrar que é tabelião; mas como é tabelião político, tem de
exprimir a sua opinião política. E outra ideia Procure duas ideias, a da
opinião e a do tiro.
Fiquei alvoroçado, o plano era melhor que o outro, mas
esbarrava sempre na falta de dinheiro para a berlinda, e agora no tempo para
arranjar as ideias. Estava nisto, quando o meu interlocutor me disse que ainda
havia ideia melhor.
– Melhor?
– Vai ver: comemorar a tomada da Bastilha, antes de 14 de
julho.
– Trivial.
– Vai ver se é trivial. Não se trata de reproduzir a
Bastilha, o povo parisiense e o resto, não senhor. Trata-se de copiar São
Fidélis...
– Copiar São Fidélis?
– O povo de São Fidélis tomou agora a cadeia, destruiu-a,
sem ficar porta, nem janela, nem preso, e declarou que não recebe o subdelegado
que para lá mandaram. Compreende bem, que esta reprodução de 1789, em ponto
pequeno, cá pelo bairro é uma boa ideia.
– Sim, senhor, é ideia... Mas então tenho de escolher entre
a morte pública do tabelião e a tomada da cadeia! Se eu empregasse as duas?
– Eram duas ideias.
– Com umas brochadas de anarquia social, mental, moral, não
sei mais qual?
– Isso então é que era um cacho de ideias... Falta-lhe só a
berlinda.
– Falta-me prosa, que é como os soldados de Aníbal
chamavam ao dinheiro. Uba sacá prosa nanupacatu. Em português: "Falta
dinheiro aos heróis de Cartago para acabar com os romanos. "Ao que
respondia Aníbal: Tunga loló. Em português: Boas noites.
Machado de Assis
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