sexta-feira, 2 de setembro de 2011

«CONTOS DO NASCER DA TERRA»

Mia Couto
Escritor Moçambicano

XXVII CONTO - «A casa marinha»

«Marinha de Casas»
Mário Nunes

A CASA MARINHA

“O que o homem tem do pássaro é inveja. Saudade é o que o peixe sente da nuvem”.
Eram falas de Tiane Kumadzi, o velho que vivia fora do juízo, apartado da gente, longe da aldeia. Eu seguia-o enquanto ele desperdiçava pegadas na areia da praia. Meus pais muito me proibiam aquelas divagabundagens.
- “Esse tipo não regulamenta bem. Você está proibido”.
Que ele era o indevido indivíduo. E somavam-me: esse tipo anda a apanhar as lenhas de uma grande desgraça. Pois o futuro o que é? Se nem temos palavra na nossa materna língua para nomear o porvir. O futuro, meu filho, é um pais que não se pode visitar.
Mas eu não resistia a seguir os passos molhados de Kumadzi quando ele, manhãs cedinho, procurava sinais do além-mundo. Acontecia na subluminosidade quando o sol nos deitava em sombras sobre as ondas.
O desremediado velho se dezembrava assim, para cá e para diante, todo concurvado enquanto pronunciava indecifráveis rezas. Me divertia aquele renhenhar dele, cabeça abaixo dos ombros, remexendo algas, conchas e troncos trazidos pelo mar de longínquas tempestades.
Eu o seguia calado, morto por saber os enfins daquela busca. Me apetecia aquela companhia como se Tiane fosse mais menino que eu, parceiro de minha meninagem.
- “Quantos anos tenho? Sou igual como você”...
E dizia: uma criança é um homem que se dá licença de voar. Às vezes me mandava correr, passar o sem-fim da praia. Que eu devia voltar sem nenhum fôlego.
- “Ganhe vantagem do cansaço, filho. Há uma sabedoria do cansaço”.
O cansaço é um modo do corpo ensinar a cabeça. Assim dizia Tiane. Que havia sentidos que só o cansaço despertava. Sono e fadiga: mãos que nos abrem janelas para o mundo. Fosse por esse cansaço que ele encontrava na praia aquilo que ninguém mais ousava. Certa vez, quebrei o peito e lhe atirei a pergunta:
- “Mas procuramos o quê, vovô Tiane?
- “Isto”.
E atirou-me um pedaço de madeira. Era um pau a modos que nunca vira: acertados os cantos com as arestas, corrigidos os redondos da madeira e as asperezas da casca. Me admirei: em que terra cresciam árvores desse formato, tão gostosas de alisar o dedo?
- “Mas o que é isto avô?
- ”Procuras-me mais istos e te deixo espreitar na minha casa”.
Não fiz segunda coisa nos dias seguintes. Enquanto restasse fiapo de claridade eu afadigava os olhos a farejar mais estranhos objectos. Fazia o que ele me recomendava: me cansava pelas dunas, à procura da sapiência da fadiga.
Ao fim do dia, meus pés escamavam de tanto aguarem. Meus braços se contentavam ao peso de tantas madeirinhas. O velho Kumadzi juntava-as no seu quintal, no mesmo lugar onde, nas casas dos outros, se empilhava a lenha. Pela noite, o velho se dedicava a dar sentido àquele desordenado monte. Estudava cada um dos paus. Ajustando os encaixes, entrância na reentrância, foi construindo um barco cheio de dimensões.
Os pescadores se espantaram - um barco? Aquilo mais parecia era uma casa. E se chegaram, espetando no sossego do velho o gume da curiosidade:
- “Quem lhe ensinou a fazer uma coisa que não existe?”
Kumadzi encolheu os ombros. Ele não sabia mas o adivinho já pressentia. Aquilo era casa que anda na água, obra de homens- peixe, gente de aspecto nunca visto. E o adivinho
juntava terríveis premonições: vinham aí tempos de cinza e fogo.
- “É melhor que esses nunca venham, é melhor que nunca cheguem”.
E somou sentença: era urgente matar a viagem dos forasteiros. E logo ali se executou mandança: nessa noite se deitaria fogo na forasteira construção. Todos saíram. Fiquei apenas eu dando encosto à solidão do velho. Passaram-se densos silêncios até que Tiane Kumadzi me pediu que o ajudasse a empurrar o barco até à água. Nem beliscámos centímetro. O navio estava mais encalhado que árvore. Kumadzi desofegou:
- “Tu, miúdo, meta-se no barco!”
Apontei para mim, em espanto. Eu? O velho confirmou: eu devia era navegar, sair por esses mares para ir ter com os esses que chegavam. E completou:
- “Assim não haverá quem tenha vaidade de encontrar quem”...
Me escusei. Dei volta ao momento e desandei pelo escuro. Reconheci razão dos conselhos da aldeia: o velho sofria o castigo de visitar de mais o futuro. Regressei a casa e deparei com estranha agitação. Meu pai comandava furiosa multidão. Vendo-me chegar, ele me ordenou:
- “Vai donde que vieste!”
 E levaram-me em diante da raiva e gritaria. Se dirigiam ao lugar de Tiane Kumadzi. O meu velho me empurrava para cá e para nenhum lado. Nem tive tempo de acertar vistas com ideias. Já o barco ardia, engolido por mil tochas, chamas chamando chamas.
Num instante, tresvoaram espessas fuligens. Eu via os fumos subirem e comporem estranhas figuras, monstros de engolir mundos. Eu fechava os olhos mas as visões não se afastavam. Ainda escutei uma voz dizer para meu pai:
- “Cuidado, mano, esses fumos estão cheios de veneno!”
Fosse ou não veneno: as gentes se descompunham, embriagadas. Primeiro, deram gritos, saltos e danças. Aos poucos, se instalou a festa e a alegria enrijeceu a restante noite. Até os corpos lençolarem a terra.
Na manhã seguinte, o braço do velho Tiane me acordou. Primeira coisa que vi foi o barco. Esse mesmo que ardera horas prévias. Mas ali estava ele, intacto, com todo o formato. Algumas chamuscadelas, mais nada. O velho antecedeu minha pergunta:
- “Não chegou de arder, a madeira estava molhada”.
Nas mãos tinha um naco de madeira meio ardida. Esfarelou a cinza, misturou a areia.
E acrescentou:
- “Esse barco estava cheio de mar!”
Percorreu as escassas cinzas como que a confirmar a presença de qualquer coisa já vista. Perguntava-se, nervoso:
- “Onde está, onde está?”
Finalmente, se debruçou a apanhar uma taça feita de madeira. Levantou-a nos braços. Me aproximei. Aquilo não era simples objecto de usar. Desenhos de enfeitar se inscreviam em belezas. Tiane acenou a taça e proclamou:
- “Viu? O mar quer juntar as pessoas”.
Estendeu a taça e pediu-me que bebesse. Beber o quê, perguntei. Espreitei o redondo da taça e havia gotas. De cacimbo adiantou Tiane para aplacar meu receio. Levei a taça aos lábios mas não consegui beber. Improvisei desculpa:
- “Vou guardar isto, para beber com eles”...
Escondi a taça por baixo do velho canhoeiro. De novo, fomos à rebentação ao encalço dos sinais dos homens-peixe. O velho se deixou ficar dentro de água. Era já noite e ele se recusou a sair. Disse que nunca mais voltaria para terra. Ficava ali a encharcar-se de mar. Queria semelhar-se com o barco, a madeira ensopada? Quando houvesse viagem já ele se converteria em madeira salgada. Já ele se convertera em casa marinha à espera dos que haveriam de vir.

Mia Couto

Até prá semana...
Poet'anarquista

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