Vista da Fortaleza de Peniche
Prisão de Alta Segurança do Estado Novo
FUGA PARA A LIBERDADE - 2º CAPÍTULO
(Por Francisco Martins Rodrigues, um dos dez evadidos)
Só o ar livre já era uma festa
Tínhamos direito a leitura, mas racionada. O jornal diário, um único para todo o piso – começava pela primeira cela, depois o guarda passava-o para a segunda cela, e assim sucessivamente – o último lia as notícias pelo meio da tarde. Quanto a livros, eram racionadíssimos: romances sem conotações “subversivas” e livros de estudo trazidos pela família, não mais de dois de cada vez. Iam à censura do minucioso e bronco chefe dos guardas, que os rejeitava por dá cá aquela palha. Assim foi recusado um livro brasileiro de engenharia, Manual de Concreto Armado, título mais que suspeito. Como a história de Portugal era matéria autorizada, meti-me a estudar o período da perda da independência. Não tardou muito, já estava enfronhado nas intrigas da corte do louco Sebastião, do cardeal D. Henrique e da rainha Catarina… Passavam-se as horas sem dar por isso. O que era exasperante era a revista aos papéis quando íamos ao recreio. O guarda entrava nas celas, pegava num molho de papéis, ao acaso, levava-os para exame, e o chefe dos guardas, se achava que estava na altura de chatear o preso, confiscava-os, com um pretexto qualquer ou sem pretexto nenhum, e lá iam por água abaixo meses de estudo. Recomeçava-se, pois que remédio? Uma coisa de que o preso não tem falta é de tempo.
Tínhamos quatro ocasiões diárias de ver os companheiros das outras celas: às três refeições e ao recreio. As refeições, como já disse, eram uma tortura. Não tanto pelo arroz de safio cheio de espinhas, que era a receita quase diária, como pela presença odiosa do guarda em cima de nós. O recreio, sim, num pátio, só dava para ver o céu, mas só o ar livre já era uma festa. Lá andávamos em grupos, a conversar, com as gaivotas a grasnar por cima das nossas cabeças, e o guarda, às vezes reforçado por mais outro colega, a caminhar pelo meio de nós para ouvir tudo o que dizíamos. Era o regulamento. Se o guarda achava que algum preso transgredia, mandava recolher tudo às celas. Se começava a chover, tudo para as celas.
Havia ainda uma espécie de bónus, descascar batatas para a cozinha e, às vezes, carregar lenha numa carrinha. (O trabalho da cozinha era feito por presos comuns, com muitos cuidados para que nunca tivéssemos contacto.) Era o único “trabalho honesto” que os presos políticos aceitavam fazer, porque nos permitia algum exercício e tomar ar. Se o guarda não era dos piores, podia-se estar três quartos de hora de roda de uma celha a descascar batatas e a falar disto ou daquilo, conversas inócuas, porque a “política” era estritamente proibida e muita coisa ali cabia na classificação de “política” – até o Napoleão ou o Alexandre Herculano era “político”. Ia longe o tempo em que o Forte de Peniche era a “universidade” dos comunistas, todos juntos nas camaratas, a organizar as suas palestras e debates sem interferência dos guardas.
E havia as visitas. Eu tinha visita uma vez por mês. Era um alvoroço, mas uma tensão muito grande. Vinha a minha mãe ou a minha irmã, algumas vezes com o meu filho bebé (a minha companheira também estava presa), o vidro separador, nós a falar por umas frestas laterais, quase aos gritos, o guarda sempre em cima de nós, a interferir nas conversas, a ditar o que se podia ou não se podia falar e, ainda por cima, a fazer-se “humano” para dar boa impressão às famílias. Ao fim de dez minutos não tínhamos que dizer uns aos outros, ficávamos a olhar-nos em silêncio, à espera que o guarda mandasse recolher à cela. Aquela irrupção do mundo lá de fora deixava-me agitado, infeliz, porque interrompia o ramerrame adormecedor do dia-a-dia.
Desgaste
Com o correr dos meses entrava-se melhor na mecânica carcerária. Não lhes bastava impor-nos um regulamento rigoroso. Queriam fazer-nos sentir a prepotência do poder, obrigar-nos a pedir tudo por escrito, aplicar normas vexatórias para nos dobrar a vontade.
Com o correr dos meses entrava-se melhor na mecânica carcerária. Não lhes bastava impor-nos um regulamento rigoroso. Queriam fazer-nos sentir a prepotência do poder, obrigar-nos a pedir tudo por escrito, aplicar normas vexatórias para nos dobrar a vontade.
De modo que o preso, ou deixava correr para não sofrer o tremendo desgaste emocional que acarretavam os conflitos com os carcereiros, e ia sendo empurrado para um corredor cada vez mais estreito de renúncia e apagamento, caía num estado quase vegetativo; ou reagia, respingava, e era marcado pelos guardas como “rebelde”, sofria um cerco de provocações e castigos (corte de correspondência, de visitas, de recreio…) que o conduziam ao esgotamento. No fim era sempre o sentimento de impotência total que se procurava incutir.
Isto não se fazia por mero sadismo. Os nossos mentores da PIDE acompanhavam a evolução do estado de espírito de cada preso, para tentar prever se ele retomaria a “vida honesta”, ou se voltaria para a actividade clandestina. Quando chegava o fim da pena, era a altura de ser ouvido para a aplicação das “medidas de segurança” (que todos os condenados a pena maior sistematicamente tinham incluída na sentença). E aí vinha para cima da mesa toda a história prisional, os castigos sofridos, a opinião a seu respeito. Se o “currículo” não era bom, o juiz de execução de penas decretava o cumprimento de novo período de prisão. Ao fim desse período, pedia o preso novamente para ser ouvido, numa carta cheia de floreados, “Excelências” e “respeitosamente”, em que expunha que já tinha cumprido a sua pena, a família precisava do seu apoio, tencionava dedicar-se a uma actividade profissional, pelo que pedia, por especial favor, que o deixassem ir para casa. Aparecia na prisão o biltre do Ministério da Justiça. De novo o suplício: já estava preparado para “retomar a vida honesta”? Comprometia-se a não frequentar pessoas “de porte duvidoso”? Que emprego iria ocupar? Para onde iria viver? E estendia-lhe a proposta do compromisso assinado repudiando as doutrinas comunistas e as actividades passadas. O preso recusava assinar? Se as respostas não eram satisfatórias (e se a campanha no exterior pela sua libertação não era forte) podia ter como certa mais uma renovação das “medidas de segurança”, mais seis meses ou um ano de prisão. Alguns fizeram este calvário vários anos. Por muito que tentassem couraçar-se contra a incerteza, contra a humilhação daquelas provas arrasadoras, era um tremendo desgaste nervoso.
Preparativos
As coisas começaram a movimentar-se com a chegada ao pavilhão de Cunhal e, meses depois, creio que em meados de 1959, de vários dirigentes recentemente presos: Jaime Serra, Joaquim Gomes, Pedro Soares, Guilherme Carvalho. Era um lote de dirigentes, vários deles com experiência de evasões. A ideia de uma fuga deixava de ser só um sonho, podia tomar consistência.
Ficámos exultantes com a companhia de Cunhal. Se o punham junto connosco, depois de nove anos de isolamento na Penitenciária, a sua vida ficava mais defendida. E havia a aura de líder que o rodeava, que levava todos a ver-lhe qualidades fora do vulgar. Destinaram-lhe uma das celas maiores, autorizaram-no a ter muitos livros, a desenhar, não lhe roubavam os apontamentos. Foi ali que ele escreveu as Lutas de classes na Idade Média e o Até amanhã, camaradas. Quanto ao resto, ele cumpria as mesmas tarefas que nós.
Não falei de uma outra tarefa, a faxina. Diariamente, dois presos escolhidos por escala faziam a limpeza das instalações. Eu apreciava as faxinas com o Cunhal porque a sua mente sempre desperta ia buscar temas políticos para conversarmos enquanto varríamos.
Pode parecer contraditório, mas a vinda de Cunhal para o Pavilhão C permitiu um abrandamento das condições prisionais que muito contribuiu para dar corpo ao plano de evasão. A campanha a favor de Álvaro Cunhal ganhara projecção internacional. Salazar, nessa época ansioso por conseguir aceitação na ONU e nos meios diplomáticos, tinha que fazer concessões. Iam longe os tempos do Tarrafal e da guerra de Espanha em que o ditador podia fazer quase tudo o que lhe apetecia.
Assim, em meados de 1959 veio para a prisão um secretário nomeado pelo Ministério da Justiça (a cadeia tinha um director mas não contava para nada; era a PIDE que tradicionalmente governava a cadeia através do chefe dos guardas). Esta nomeação de uma autoridade exterior à PIDE e a intenção manifestada pelo novo secretário de ouvir as reivindicações dos presos indicavam que alguma coisa mudava na cadeia.
Passada a nossa primeira reacção de desconfiança perante a linguagem “humana” do secretário, concluímos que havia que explorar a dualidade de poderes dentro da cadeia. Em sucessivas audiências pedimos--lhe um aligeiramento do regime disciplinar, poder conversar durante as refeições e no recreio, menos interferência nas visitas, melhoria da alimentação; que não nos confiscassem os apontamentos. A primeira reacção, previsível, do chefe dos guardas foi um recrudescer dos castigos. Tinham que ser os presos a pagar o conflito de competências entre os carcereiros.
Mas, pouco a pouco, algumas melhorias se foram conseguindo, que permitiram começar a pensar a sério no plano de evasão. Foi tudo tratado muito secretamente entre a nossa direcção prisional (Cunhal, Serra, J. Gomes, creio) e a direcção do partido no exterior. Apesar de todas as vigilâncias, mensagens entravam e saíam. Sabíamos que alguma coisa estava a ser tratada, mas não se falava nisso. Em Dezembro fui abordado pelo Cunhal no recreio: se o plano fosse avante, queria eu alinhar? Disse logo que sim. A minha pena já ia adiantada, mas depois havia as medidas de segurança, nunca se sabia quanto me faltava cumprir.
No Natal desse ano de 1959, o secretário autorizou-nos um convívio especial à noite, em vez de sermos trancados nas celas depois do jantar. Em troca, propôs-nos, com pezinhos de lã, se não queríamos que um capelão das prisões nos viesse visitar, para nos dar uma pequena palestra…. Dispensámos a honra. O nosso convívio de Natal decorreu entre conversas corriqueiras, a disfarçar a agitação. Sabíamos que o plano estava pronto. O guarda da GNR que fora abordado no exterior e que aceitara dar-nos a fuga (mediante 150 contos) ia entrar de serviço em Peniche no início de Janeiro. Faltava só uma semana.
Fonte: DiárioLiberdade
(Continua publicação a 05/01/2011
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