quarta-feira, 10 de julho de 2013

III CONGRESSO TERRAS DO ENDOVÉLICO

Comunicação de Manuel Calado no Congresso «Terras do Endovélico - Território e Cultura, Caminhos da Identidade», com o título: «A Região da Serra d'Ossa, na Perspectiva da Arqueologia Pública». O texto foi lido por Conceição Roque, em virtude do autor se encontrar no Brasil em trabalho. Daqui lhe envio um abraço, e os meus agradecimentos como alandroalense pela co-autoria da Nova Carta Arqueológica do Alandroal, «O Tempo dos Deuses».
Poet'anarquista
III Congresso
Terras do Endovélico

«A Região da Serra d'Ossa, na Perspectiva da Arqueologia Pública»

Em primeiro lugar, gostaria de cumprimentar os ilustres colegas congressistas, em particular os meus antigos Professores e colegas nas Faculdades de Letras e de Belas Artes da Universidade de Lisboa; um cumprimento especial para  o público que é, em última análise, a principal razão de ser deste evento.

Porém, chegar aqui implicou uma carga de trabalhos. Os meus parabéns muito sinceros à minha amiga de longa data, a Doutora Paula Fitas, e à equipa que conseguiu pôr de pé esta organização. E os votos de que consiga concretizar, e levar a bom termo, o projecto do Centro Interpretativo de Endovélico. O Alandroal merece.

E, por último – last but not the least – ao Dr. João Grilo, Presidente da Câmara do Alandroal. Quero agradecer-lhe, sobretudo, a forma como fez da Cultura, com C maiúsculo, uma prioridade, num tempo em que o facilitismo político costuma traduzir-se na velha máxima romana do “Pão e Circo”.

Obrigado, Presidente e pode continuar a contar com o meu apoio incondicional.

Introdução

Propus-me falar sobre a região da Serra d’Ossa, na perspectiva da Arqueologia Pública, com base nas experiências dos últimos 20 anos, isto é, desde a publicação da primeira edição da Carta Arqueológica do Alandroal.

Porém, a Arqueologia Pública é um conceito muito amplo que pode ser encarado de diferentes ângulos.

É minha intenção usá-lo aqui no sentido mais corrente, que se confunde, até certo ponto, com o de divulgação científica: trata-se de tornar acessíveis e interessantes, para diversos tipos de públicos, os resultados da investigação arqueológica. Uma das aplicações mais imediatas é, naturalmente, a dimensão museológica; outra, eventualmente menos usual entre nós, entra no domínio da chamada Educação Patrimonial.

Diga-se, de passagem, que esta “missão”, facilmente reconhecível, por todos, como imprescindível, numa sociedade democrática, é frequentemente desvalorizada pela arqueologia académica, que a vê mais como um subproduto dessa actividade, supostamente mais nobre, que é a investigação.

Outro sentido em que uso aqui a expressão Arqueologia Pública tem a ver com a utilidade social da arqueologia, incluindo a dimensão económica. Recorrendo ao exemplo das Ciências Exactas, trata-se, neste caso, da velha dicotomia entre Ciências Puras e Ciências Aplicadas. A valência turística dos sítios e monumentos arqueológicos entra aqui no que poderíamos denominar como Arqueologia Aplicada.

Existem, naturalmente, outras formas dessa relação entre a Arqueologia e a Sociedade, considerando que a arqueologia pode ter uma intervenção socialmente responsável, em termos de cidadania.

Os aspectos apontados acima são unidireccionais: trata-se de iniciativas que partem dos arqueólogos para a comunidade; porém, acho que vale a pena considerar o interesse de uma Arqueologia Participativa, em que a “sociedade civil” é sujeito activo, em vários níveis do processo de construção do conhecimento arqueológico.

Para terminar esta brevíssima introdução, acrescentaria apenas uma verdade lapalissiana: a Arqueologia não é, com certeza, apenas assunto de arqueólogos. E este Congresso, na forma como foi concebido e realizado, reflecte claramente essa realidade.

Arqueologia Pública na região da Serra d’Ossa: o associativismo

A partir de meados dos anos oitenta, do século passado, a arqueologia da região da serra d’Ossa entrou numa fase bastante activa, no quadro dos modelos associativistas que, nessa altura, estavam relativamente na moda. Um paradigma desse modelo foi, indiscutivelmente, o Campo Arqueológico de Mértola que, por razões muito peculiares, teve (e manteve durante muito tempo) uma dinâmica notável.

Com base na vila do Redondo, e com algum apoio da respectiva autarquia, foi fundado, por essa altura, o GEO - Grupo de Estudos da Serra d’Ossa, uma Associação de Defesa do Património que teve, na época, algum protagonismo. Estatutariamente, a associação pretendeu intervir em diversas áreas, desde o Ambiente à Arqueologia, mas acabou por se focar sobretudo nesta última área.

Nesse contexto, assumidamente amador, iniciou-se um programa sistemático de prospecções arqueológicas que mudou radicalmente a base de dados disponível sobre o património arqueológico regional e que, mais tarde, se expandiu e aprofundou em trabalhos de índole mais académica.

Um dos objectivos assumidos dessa actividade foi a formação de jovens nos “mistérios” da arqueologia. Essa formação foi sempre entendida numa óptica lúdica, militante, em que os trabalhos arqueológicos eram inseparáveis de uma aproximação dos participantes à Natureza, ao Ambiente, à Etnografia…

Acredito (e tento praticar esta crença) que uma arqueologia séria, para o ser, não tem que perder a dimensão “romântica” e “poética” que é, afinal, a sua matriz histórica e, ao mesmo tempo, o ingrediente que sustenta o interesse do cidadão comum pela actividade.

O mesmo ingrediente que fez a maior parte de nós, arqueólogos, escolher a arqueologia como profissão.

Dessa experiência, passados mais de vinte anos, podemos hoje fazer o seguinte balanço:

1. Do ponto de vista científico, a arqueologia da região mudou radicalmente. Centenas de sítios arqueológicos inéditos, hoje publicados, “nasceram” da actividade do GEO.

2. Do ponto de vista da formação, um punhado de profissionais, hoje com créditos firmados, em diferentes níveis de intervenção, “nasceu” também no seio do GEO: a  Conceição Roque, o José Perdigão, o António Bairinhas são testemunhos deste resultado.

3. De um ponto de vista mais abrangente, no que respeita à intervenção na comunidade, é significativo que o Redondo seja um dos poucos concelhos da região, que, há já vários anos, tem, nos seus quadros técnicos, um arqueólogo. E, o que é ainda mais raro, um arqueólogo que faz Arqueologia.

O “associativismo arqueológico” na região da Serra d’Ossa que, como vimos, arrancou com o GEO, teve, entretanto algumas sequelas: a ARQUIZ ( Associação de Arqueologia do Alandroal) e a ALARM (Associação Local de Arte e Arqueologia de Rio de Moinhos) fizeram parte desse mesmo “movimento”.

A formação de jovens da região foi, também nestes dois casos, uma das pedras angulares; porém, o amadorismo dos anos oitenta foi substituído por uma dimensão mais profissionalizante.

Efectivamente, funcionou, no Alandroal, em 1992-1993, um Curso de Formação Profissional, que teve a participação de vários Professores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e que formou Técnicos de Arqueologia de Campo, de que se destacaram a Conceição Roque, o Paulo Tatá e ainda o saudoso João Paulo Galhardas.

No mesmo espírito, foi ainda criado, no seio da ALARM, um Curso de Restauro Arqueológico que, entre outros, teve a participação de dois outros elementos de reconhecida competência: o Manuel Pisco e a Lília Boto.

Note-se que as últimas fases das prospecções, no Regolfo do Alqueva, foram executadas, na sua maioria, por elementos formados no GEO, na ARQUIZ e na ALARM, técnicos que participaram igualmente na fase das escavações.

A título de balanço, podemos afirmar que o associativismo parece ter-se esgotado, já há muito tempo, ultrapassado por oportunidades de profissionalização (nomeadamente no universo da arqueologia empresarial), compreensivelmente mais atraentes.

Porém, com a crise profunda que o país atravessa, talvez seja a altura de ressuscitar “velhos” modelos de voluntariado e de participação cívica.

Arqueologia Pública na região da serra d’Ossa: as Cartas Arqueológicas

A partir de 1990, enquanto docente na Universidade de Lisboa, criei a rotina de organizar prospecções, no Alentejo Central, com um duplo objectivo expressamente assumido: por um lado, ir ampliando a base de dados da cartografia arqueológica regional, obtendo, para isso, sempre que possível, o apoio logístico das várias autarquias da região; por outro, proporcionar aos meus alunos a oportunidade de darem os primeiros passos na prospecção arqueológica.

Em todos os casos, para além dos estudantes de arqueologia, houve sempre a preocupação de integrar, nas equipes de campo, jovens da região.

Dessa rotina, nasceram algumas Cartas Arqueológicas publicadas (Alandroal, Redondo e Mora), enquanto outras morreram na praia (Vila Viçosa, Montemor-o-Novo) ou se transformaram em Inventários Arqueológicos, integrados nos PDMs (Borba, Sousel, Reguengos de Monsaraz, Évora)…

Fora da região, mas em articulação espacial com ela, nasceu ainda a Nova Carta Arqueológica de Sesimbra (O Tempo do Risco) e a Carta Arqueológica de Setúbal (no prelo).

Permitam-me algumas palavras sobre o papel das Cartas Arqueológicas, no contexto de uma certa Arqueologia Pública.

Penso que o exemplo do Alandroal pode ilustrar alguns aspectos mais significativos.

Uma carta arqueológica é, antes de mais, um trabalho científico de base, sobre o qual se pode (e deve) construir o conhecimento arqueológico, à escala dos territórios e das paisagens.

Porém, dependendo da forma como é estruturado o trabalho de campo, podemos estar perante uma forma de arqueologia participativa, por excelência: envolvendo elementos da comunidade, como prospectores, mas igualmente como informadores. Como sabemos, as populações rurais são depositárias de conhecimentos arqueológicos preciosos e insubstituíveis…

A publicação e distribuição de um livro, à escala local, não é, infelizmente, um acontecimento muito comum; as cartas arqueológicas funcionam, nesse contexto, como espelhos de uma comunidade, valorizando realidades próximas e reforçando auto-estimas.

Por outro lado, uma carta arqueológica, tal como a entendemos, tende a realizar uma síntese entre a arqueologia e o ambiente, sublinhando valores paisagísticos bem actuais e, desejavelmente actuantes.

Procurámos, também, que as cartas arqueológicas fizessem uma ponte entre a arqueologia e a arte: o livro, para além da sua dimensão científica, conta com a participação de fotógrafos e ilustradores que valem por si.

Porém, uma das valências mais importantes, na perspectiva de uma certa Arqueologia Pública, prende-se com o seu papel nas estratégias de desenvolvimento turístico de uma região.

Uma Carta Arqueológica não é um Roteiro Turístico, mas um manancial a partir do qual instituições, empresas e cidadãos podem construir uma infinidade de roteiros alternativos.

Nas palavras do Dr. João Grilo, no prefácio da Nova Carta Arqueológica do Alandroal, esta “tem subjacente o aumento da atractividade do território através de um ‘turismo do imaginário’ ou ‘turismo de experiências’.”

Sem querer concluir…

A publicação do Tempo dos Deuses – Nova Carta Arqueológica do Alandroal marca, em termos pessoais, o fechar de um ciclo, decorridas duas décadas.

Pessoalmente, vejo este Congresso como o início de um novo ciclo, certamente mais maduro, para a Arqueologia da região da serra d’Ossa. A excelência dos conferencistas, a amplidão do leque temático, o empenhamento político manifesto com a anunciada criação do Centro de Estudos de Endovélico são sinais de que, em tempos de crise, a criatividade pode ganhar asas e fazer melhor.

Gostaria, por último, de prestar homenagem a dois antigos alunos e colegas, sobre quem recai, em boa parte, a responsabilidade de escrever novos capítulos sobre a Arqueologia Pública da região da serra d’0ssa: o Rui Mataloto e a Conceição Roque.

Por um lado, porque são eles, actualmente, os responsáveis científicos pelo estudo de um sítio que me fascinou, há vinte anos atrás, a ponto de o ter escolhido para a capa da Carta Arqueológica: a Rocha da Mina.

O Rui Mataloto, redondense de alma e sotaque, é, hoje em dia, uma referência na arqueologia nacional: poucos arqueólogos autárquicos terão produzido obra como ele, consistente, séria e efectivamente marcante. De resto, nos últimos anos, em muitos aspectos, o Rui levou mais longe a trilha aberta pelo GEO, há mais de um lustre: deu formação (sobretudo nas técnicas de escavação) a muitos jovens arqueólogos, muitos deles estrangeiros.

E a Conceição Roque, alandroalense por opção, que assina comigo a Nova Carta Arqueológica do Alandroal.

Nova porque tem sangue novo.

Nova, porque pretende, modestamente, inovar.

Manuel Calado,

6 de Julho de 2013

Sem comentários: