Comunicação de Manuel Calado no Congresso «Terras do Endovélico - Território e Cultura, Caminhos da Identidade», com o título: «A Região da Serra d'Ossa, na Perspectiva da Arqueologia Pública». O texto foi lido por Conceição Roque, em virtude do autor se encontrar no Brasil em trabalho. Daqui lhe envio um abraço, e os meus agradecimentos como alandroalense pela co-autoria da Nova Carta Arqueológica do Alandroal, «O Tempo dos Deuses».
Poet'anarquista
III Congresso
Terras do Endovélico
«A Região da Serra d'Ossa, na Perspectiva da Arqueologia Pública»
Em primeiro lugar, gostaria de cumprimentar os ilustres
colegas congressistas, em particular os meus antigos Professores e colegas nas
Faculdades de Letras e de Belas Artes da Universidade de Lisboa; um cumprimento
especial para o público que é, em última
análise, a principal razão de ser deste evento.
Porém, chegar aqui implicou uma carga de trabalhos. Os meus
parabéns muito sinceros à minha amiga de longa data, a Doutora Paula Fitas, e à
equipa que conseguiu pôr de pé esta organização. E os votos de que consiga
concretizar, e levar a bom termo, o projecto do Centro Interpretativo de
Endovélico. O Alandroal merece.
E, por último – last but not the least – ao Dr. João Grilo,
Presidente da Câmara do Alandroal. Quero agradecer-lhe, sobretudo, a forma como
fez da Cultura, com C maiúsculo, uma prioridade, num tempo em que o facilitismo
político costuma traduzir-se na velha máxima romana do “Pão e Circo”.
Obrigado, Presidente e pode continuar a contar com o meu apoio incondicional.
Introdução
Propus-me falar sobre a região da Serra d’Ossa, na
perspectiva da Arqueologia Pública, com base nas experiências dos últimos 20
anos, isto é, desde a publicação da primeira edição da Carta Arqueológica do
Alandroal.
Porém, a Arqueologia Pública é um conceito muito amplo que
pode ser encarado de diferentes ângulos.
É minha intenção usá-lo aqui no sentido mais corrente, que
se confunde, até certo ponto, com o de divulgação científica: trata-se de
tornar acessíveis e interessantes, para diversos tipos de públicos, os
resultados da investigação arqueológica. Uma das aplicações mais imediatas é,
naturalmente, a dimensão museológica; outra, eventualmente menos usual entre
nós, entra no domínio da chamada Educação Patrimonial.
Diga-se, de passagem, que esta “missão”, facilmente
reconhecível, por todos, como imprescindível, numa sociedade democrática, é
frequentemente desvalorizada pela arqueologia académica, que a vê mais como um
subproduto dessa actividade, supostamente mais nobre, que é a investigação.
Outro sentido em que uso aqui a expressão Arqueologia
Pública tem a ver com a utilidade social da arqueologia, incluindo a dimensão
económica. Recorrendo ao exemplo das Ciências Exactas, trata-se, neste caso, da
velha dicotomia entre Ciências Puras e Ciências Aplicadas. A valência turística
dos sítios e monumentos arqueológicos entra aqui no que poderíamos denominar
como Arqueologia Aplicada.
Existem, naturalmente, outras formas dessa relação entre a
Arqueologia e a Sociedade, considerando que a arqueologia pode ter uma
intervenção socialmente responsável, em termos de cidadania.
Os aspectos apontados acima são unidireccionais: trata-se de
iniciativas que partem dos arqueólogos para a comunidade; porém, acho que vale
a pena considerar o interesse de uma Arqueologia Participativa, em que a
“sociedade civil” é sujeito activo, em vários níveis do processo de construção
do conhecimento arqueológico.
Para terminar esta brevíssima introdução, acrescentaria
apenas uma verdade lapalissiana: a Arqueologia não é, com certeza, apenas
assunto de arqueólogos. E este Congresso, na forma como foi concebido e
realizado, reflecte claramente essa realidade.
Arqueologia Pública na região da Serra d’Ossa: o
associativismo
A partir de meados dos anos oitenta, do século passado, a
arqueologia da região da serra d’Ossa entrou numa fase bastante activa, no
quadro dos modelos associativistas que, nessa altura, estavam relativamente na
moda. Um paradigma desse modelo foi, indiscutivelmente, o Campo Arqueológico de
Mértola que, por razões muito peculiares, teve (e manteve durante muito tempo)
uma dinâmica notável.
Com base na vila do Redondo, e com algum apoio da respectiva
autarquia, foi fundado, por essa altura, o GEO - Grupo de Estudos da Serra
d’Ossa, uma Associação de Defesa do Património que teve, na época, algum
protagonismo. Estatutariamente, a associação pretendeu intervir em diversas
áreas, desde o Ambiente à Arqueologia, mas acabou por se focar sobretudo nesta
última área.
Nesse contexto, assumidamente amador, iniciou-se um programa
sistemático de prospecções arqueológicas que mudou radicalmente a base de dados
disponível sobre o património arqueológico regional e que, mais tarde, se
expandiu e aprofundou em trabalhos de índole mais académica.
Um dos objectivos assumidos dessa actividade foi a formação
de jovens nos “mistérios” da arqueologia. Essa formação foi sempre entendida
numa óptica lúdica, militante, em que os trabalhos arqueológicos eram
inseparáveis de uma aproximação dos participantes à Natureza, ao Ambiente, à Etnografia…
Acredito (e tento praticar esta crença) que uma arqueologia
séria, para o ser, não tem que perder a dimensão “romântica” e “poética” que é,
afinal, a sua matriz histórica e, ao mesmo tempo, o ingrediente que sustenta o
interesse do cidadão comum pela actividade.
O mesmo ingrediente que fez a maior parte de nós,
arqueólogos, escolher a arqueologia como profissão.
Dessa experiência, passados mais de vinte anos, podemos hoje
fazer o seguinte balanço:
1. Do ponto de vista científico, a arqueologia da região
mudou radicalmente. Centenas de sítios arqueológicos inéditos, hoje publicados,
“nasceram” da actividade do GEO.
2. Do ponto de vista da formação, um punhado de
profissionais, hoje com créditos firmados, em diferentes níveis de intervenção,
“nasceu” também no seio do GEO: a
Conceição Roque, o José Perdigão, o António Bairinhas são testemunhos
deste resultado.
3. De um ponto de vista mais abrangente, no que respeita à
intervenção na comunidade, é significativo que o Redondo seja um dos poucos
concelhos da região, que, há já vários anos, tem, nos seus quadros técnicos, um
arqueólogo. E, o que é ainda mais raro, um arqueólogo que faz Arqueologia.
O “associativismo arqueológico” na região da Serra d’Ossa
que, como vimos, arrancou com o GEO, teve, entretanto algumas sequelas: a
ARQUIZ ( Associação de Arqueologia do Alandroal) e a ALARM (Associação Local de
Arte e Arqueologia de Rio de Moinhos) fizeram parte desse mesmo “movimento”.
A formação de jovens da região foi, também nestes dois
casos, uma das pedras angulares; porém, o amadorismo dos anos oitenta foi
substituído por uma dimensão mais profissionalizante.
Efectivamente, funcionou, no Alandroal, em 1992-1993, um
Curso de Formação Profissional, que teve a participação de vários Professores
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e que formou Técnicos de
Arqueologia de Campo, de que se destacaram a Conceição Roque, o Paulo Tatá e
ainda o saudoso João Paulo Galhardas.
No mesmo espírito, foi ainda criado, no seio da ALARM, um
Curso de Restauro Arqueológico que, entre outros, teve a participação de dois
outros elementos de reconhecida competência: o Manuel Pisco e a Lília Boto.
Note-se que as últimas fases das prospecções, no Regolfo do
Alqueva, foram executadas, na sua maioria, por elementos formados no GEO, na
ARQUIZ e na ALARM, técnicos que participaram igualmente na fase das escavações.
A título de balanço, podemos afirmar que o associativismo
parece ter-se esgotado, já há muito tempo, ultrapassado por oportunidades de
profissionalização (nomeadamente no universo da arqueologia empresarial),
compreensivelmente mais atraentes.
Porém, com a crise profunda que o país atravessa, talvez
seja a altura de ressuscitar “velhos” modelos de voluntariado e de participação
cívica.
Arqueologia Pública na região da serra d’Ossa: as Cartas
Arqueológicas
A partir de 1990, enquanto docente na Universidade de
Lisboa, criei a rotina de organizar prospecções, no Alentejo Central, com um
duplo objectivo expressamente assumido: por um lado, ir ampliando a base de
dados da cartografia arqueológica regional, obtendo, para isso, sempre que
possível, o apoio logístico das várias autarquias da região; por outro,
proporcionar aos meus alunos a oportunidade de darem os primeiros passos na
prospecção arqueológica.
Em todos os casos, para além dos estudantes de arqueologia,
houve sempre a preocupação de integrar, nas equipes de campo, jovens da região.
Dessa rotina, nasceram algumas Cartas Arqueológicas
publicadas (Alandroal, Redondo e Mora), enquanto outras morreram na praia (Vila
Viçosa, Montemor-o-Novo) ou se transformaram em Inventários Arqueológicos,
integrados nos PDMs (Borba, Sousel, Reguengos de Monsaraz, Évora)…
Fora da região, mas em articulação espacial com ela, nasceu
ainda a Nova Carta Arqueológica de Sesimbra (O Tempo do Risco) e a Carta
Arqueológica de Setúbal (no prelo).
Permitam-me algumas palavras sobre o papel das Cartas
Arqueológicas, no contexto de uma certa Arqueologia Pública.
Penso que o exemplo do Alandroal pode ilustrar alguns
aspectos mais significativos.
Uma carta arqueológica é, antes de mais, um trabalho
científico de base, sobre o qual se pode (e deve) construir o conhecimento
arqueológico, à escala dos territórios e das paisagens.
Porém, dependendo da forma como é estruturado o trabalho de
campo, podemos estar perante uma forma de arqueologia participativa, por
excelência: envolvendo elementos da comunidade, como prospectores, mas
igualmente como informadores. Como sabemos, as populações rurais são
depositárias de conhecimentos arqueológicos preciosos e insubstituíveis…
A publicação e distribuição de um livro, à escala local, não
é, infelizmente, um acontecimento muito comum; as cartas arqueológicas
funcionam, nesse contexto, como espelhos de uma comunidade, valorizando
realidades próximas e reforçando auto-estimas.
Por outro lado, uma carta arqueológica, tal como a
entendemos, tende a realizar uma síntese entre a arqueologia e o ambiente,
sublinhando valores paisagísticos bem actuais e, desejavelmente actuantes.
Procurámos, também, que as cartas arqueológicas fizessem uma
ponte entre a arqueologia e a arte: o livro, para além da sua dimensão
científica, conta com a participação de fotógrafos e ilustradores que valem por
si.
Porém, uma das valências mais importantes, na perspectiva de
uma certa Arqueologia Pública, prende-se com o seu papel nas estratégias de
desenvolvimento turístico de uma região.
Uma Carta Arqueológica não é um Roteiro Turístico, mas um
manancial a partir do qual instituições, empresas e cidadãos podem construir
uma infinidade de roteiros alternativos.
Nas palavras do Dr. João Grilo, no prefácio da Nova Carta
Arqueológica do Alandroal, esta “tem subjacente o aumento da atractividade do
território através de um ‘turismo do imaginário’ ou ‘turismo de experiências’.”
Sem querer concluir…
A publicação do Tempo dos Deuses – Nova Carta Arqueológica
do Alandroal marca, em termos pessoais, o fechar de um ciclo, decorridas duas
décadas.
Pessoalmente, vejo este Congresso como o início de um novo
ciclo, certamente mais maduro, para a Arqueologia da região da serra d’Ossa. A
excelência dos conferencistas, a amplidão do leque temático, o empenhamento
político manifesto com a anunciada criação do Centro de Estudos de Endovélico
são sinais de que, em tempos de crise, a criatividade pode ganhar asas e fazer
melhor.
Gostaria, por último, de prestar homenagem a dois antigos
alunos e colegas, sobre quem recai, em boa parte, a responsabilidade de
escrever novos capítulos sobre a Arqueologia Pública da região da serra d’0ssa:
o Rui Mataloto e a Conceição Roque.
Por um lado, porque são eles, actualmente, os responsáveis
científicos pelo estudo de um sítio que me fascinou, há vinte anos atrás, a
ponto de o ter escolhido para a capa da Carta Arqueológica: a Rocha da Mina.
O Rui Mataloto, redondense de alma e sotaque, é, hoje em
dia, uma referência na arqueologia nacional: poucos arqueólogos autárquicos
terão produzido obra como ele, consistente, séria e efectivamente marcante. De
resto, nos últimos anos, em muitos aspectos, o Rui levou mais longe a trilha
aberta pelo GEO, há mais de um lustre: deu formação (sobretudo nas técnicas de
escavação) a muitos jovens arqueólogos, muitos deles estrangeiros.
E a Conceição Roque, alandroalense por opção, que assina
comigo a Nova Carta Arqueológica do Alandroal.
Nova porque tem sangue novo.
Nova, porque pretende, modestamente, inovar.
Manuel Calado,
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