219- «PELA CALADA DA NOITE»
A propósito da requalificação do castelo de Alandroal, aqui
fica um aviso para todos os que entrarem ou permanecerem no local depois do Sol
posto. A esses, mais foitos,
ainda assim aconselhamos o uso de uma fraldinha de
contenção.
Vão lá... vão, quem vos avisa vosso amigo é!
***
A rapaziada andava em alvoroço e desde o começo do tempo
quente não se aproximava do castelo da vila. Local de brincadeiras e jogos de
guerra inofensivos, com mil recantos para esconderijos, ninguém ousava ir até
às suas imediações, quanto mais transpor a bonita porta medieval.
A notícia correra célere: desde que as noites tinham
aquecido, um fantasma espreitava, a horas incertas, por entre as ameias da
muralha.
Ouvi a fantástica ocorrência com a respiração contida, ao
mesmo tempo que um palpitar incomodativo me levou a procurar um banco próximo.
Do jardim da praça enxergava-se grande parte do velho
monumento pelo que, instintivamente, me posicionei de modo a evitar a sua
visão.
Fora o Tricas que me informara de tudo: «que sim…, que era
mesmo verdade…, fora visto duas ou três noites atrás um grande lençol branco
esvoaçando tenebrosamente entre dois torreões».
Corria também já de boca em boca que se tratava da alma
penada de um castelhano de outros tempos, enforcado por se atrever a roubar um
cavalo pela calada da noite.
Impressionou-me o relato do acontecimento mas ainda mais o
ar foito com que o Tricas disse de sua justiça: «não é que não acredite em
fantasmas... ...e não lhes tenha até algum respeito...» – vi que sondava o
castelo com ar enigmático –«...mas tenho cá umas dúvidas para tirar a limpo».
Consegui então encarar o enorme vulto de pedra, ainda há
dias sítio de grandes paródias, tomando agora forma monstruosa que parecia
pronta a engolir-nos. Ao Tricas nada disse, pois não queria dar parte de fraco.
Era quase noite. Os contornos de minha casa avistavam-se no
extremo sul da praça, esbatidos pelos últimos raios de sol. Tomei fôlego para
percorrer a calçada em passo acelerado e chegar rapidamente. Quando me senti em
segurança contemplei, emboscado numa pequena fresta do postigo, o trecho
visível da fortaleza, àquela hora uma massa compacta escura parecendo, por um
instante, toda ela envolta em gigantesco lençol branco.
Uma leve pressão no meu ombro direito fez emergir em mim um
arrepio enérgico e motivar que fechasse o postigo com violência, o que provocou
um desfiar de argumentos acusatórios pelas vidraças que aqui e ali apareciam
estilhaçadas. Com a desculpa de uma necessidade imperiosa, que era genuína,
subi num ápice a escadaria de mármore e passados uns minutos refugiei-me,
apreensivo, no meu quarto de dormir, felizmente com janela para o jardim e
pomar que se estendiam nas traseiras da casa. Toda a fachada desta se
encontrava escancarada à medonha aparição e o receio de entrar naqueles
aposentos passou a ser tanto quanto o desejo de ali fazer base de observação.
Absorto por estes pensamentos, lembrei-me então que tinha
deixado o Tricas pregado ao banco do jardim a falar sozinho sobre o terrível
assunto que ocupava agora todo o espaço das nossas mentes. Tivesse dito, ao
menos, que eram horas de jantar, que não levantaria qualquer suspeita no meu
amigo sobre o débil estado de espírito que a conversa do fantasma suscitara em
mim. Nestas conjecturas passei o serão sentado a um canto da grande chaminé da
cozinha, agora sem a chama habitual dos dias frios, na companhia da velha
cozinheira que dormitava.
Fui quase empurrado para a cama, pois no dia seguinte tinha
aulas.
Deitado, provavelmente, era eu que tinha aspecto
fantasmagórico, de tal modo estava coberto pelo lençol. Como era de esperar
tive grande dificuldade em adormecer, não encontrando posição que me acalmasse,
entre as mil e uma que experimentei. Ainda ouvi as três horas da manhã e o piar
arrepiante da coruja branca fez-me dar, involuntariamente, um salto que
despertou um sono quase estabelecido. Mesmo debaixo dos lençóis vislumbrei a
“alma do outro mundo” deslizando com agilidade entre ameias e torreões. Depois
adormeci morto de cansaço por um final de dia tão próximo do “fantástico”.
Manhã cedo acordei com pressa, pouco usual em mim, de ir
para a escola. Uma caneca de leite foi bebida de um só gole e a metade de um
papo-seco voou para cima da velha palmeira do quintal, pondo a passarada numa
algazarra delirante. A sessão de avisos e recomendações diárias também ficou a
meio: –vai direitinho à escola, não te quero com o Tricas que não é boa
companhia, se vais para o moinho de vento levas uma sova...
Larguei porta fora em passo de corrida, escapulindo-me
furtivamente das redondezas do castelo.
O meu amigo Tricas todos os dias me esperava no cimo da
ladeira da escola e logo aí traçávamos o nosso destino para depois da saída das
aulas. Nessa manhã lá estava ele, encostado à parede do armazém de ferragens,
com o sorriso que punha invariavelmente nos lábios quando tinha segredos que
partilhava após negociata favorável. Quando lhe disse bom dia foi
direito ao assunto, sem tentativa de extorsão inofensiva do que quer que fosse
– trocava sítios de ninhos e de outra bicharada, por rebuçados, bombons ou,
raramente, uma moeda de cinco tostões.
«Ontem deixaste-me a falar com o banco do jardim...» –
adiantou – «...quando te ia desafiar para irmos ao castelo... ...tentar
ver o fantasma» – ao ouvir a palavra fantasma senti as pernas tremerem
como no dia anterior. «Pois fica sabendo que fui mesmo sem a tua
companhia... ...sozinhito...» – deu ênfase à palavra – «...tirar
a prova dos nove ao “medo” que anda a dar cabo das nossas brincadeiras».
«Ali não há fantasma nenhum...» – ficou com a voz
suspensa por um instante – depois concluiu: – «...já sei quem se entretém
a estragar-nos as noites!».
«Hoje, quando aparecer a Lua podemos ver como se fosse
dia... ...se não tiveres cagunfa» – o Tricas olhou para a mim
com um sorriso provocador – «vou contigo para que acredites que falo verdade».
Passei esse dia na escola com grande dificuldade em prestar
atenção às lições, apesar das ameaças do ponteiro então muito usado para manter
a ordem na sala – hoje, felizmente, método impensável – e à quinta vez que o
excesso de produção de adrenalina me obrigou a pedir para ir à casa de banho,
fui colocado de castigo na parede do fundo até tocar para a saída – ainda
recordo o enorme esforço que fiz para não urinar pelas pernas abaixo.
Aproveitei o tempo para engendrar o processo de me raspar de casa à noite e ir
ao castelo com o Tricas. Se pedisse para sair depois do jantar seria posto
imediatamente a ferros no quarto, castigo que poderia alargar-se a não ver
televisão durante o fim-de-semana; se recusasse o desafio do Tricas jamais
seria capaz de olhar de frente a cara do meu amigo. Optei por não regressar a
casa e fosse o que Deus quisesse.
Ao lusco-fusco segui os passos do Tricas com precisão,
sempre colado a ele, e embrenhámo-nos no reino do imaginário. Tinha sido
prevenido que convinha andarmos sempre arrimados à parede da muralha para que o
luar não denunciasse a nossa presença. Era evidente o enorme esforço que fazia
para conseguir movimentar-me – as pernas, a pouco e pouco, mais pareciam pesados
madeiros. Apesar da frescura da aragem nocturna o suor brotava por tudo quanto
era poro e o coração batia a um ritmo alucinante. O Tricas levava amiudadas
vezes o dedo ao nariz, sinal para que fizesse o menos ruído possível e com
gestos discretos mandava-me avançar ou deter conforme as suas
desconfianças. A coruja branca piou do alto de uma torre próxima,
fazendo um eco assustador e lançou-se a voar mesmo por cima das nossas cabeças
com um bater de asas calafriante. Tive que agarrar a camisola do meu companheiro
com unhas e dentes para não me estatelar com o susto. Por fim o Tricas segredou
que estávamos no nosso posto de vigilância, nem mais nem menos que o grande
torreão com dois salientes ganchos talhados em mármore, onde antigamente
penduravam toda a espécie de malfeitores. O meu espírito não conseguia
sossegar, porque de imediato pensei no fantasma do castelhano, ladrão de
cavalos, que ali tinha sido pendurado há muitos anos. Investiguei entre duas
ameias se havia gente nas imediações do castelo, esperança de algum socorro se
fosse necessário. Vi a frontaria de minha casa e adivinhei o que me iria
acontecer quando chegasse muito depois da hora do jantar.
Subitamente uma mão do Tricas colou-se à minha boca, ao
mesmo tempo que a outra me sustinha pelo braço esquerdo, interrompendo a minha
divagação. Logo fez sinal na direcção do torreão que se erguia à nossa direita,
a uma distância de cinquenta passos. Senti o bafo quente da sua respiração
enquanto me cochichava para dentro do ouvido: «são dois... ...estão
dentro do torreão... ...subiram pelas escadas da torre do relógio quando
espiolhavas lá para baixo».
O Tricas deve ter pressentido que eu estava à beira de
desfalecer porque as minhas pernas começaram a fraquejar. Apressou-se a dizer: «não
tenhas medo que não são fantasmas...» – e repetiu – «...juro-te que
não são fantasmas... ...são pessoas de carne e osso como nós... ...assim
eu não me chame Tricas».
Meti ar nos pulmões, recuperei ânimo e continuámos os dois
escondidos, aguardando o que se iria passar.
O tempo parecia estar suspenso – certamente uns minutos bem
esticados – mas depois a Lua cheia permitiu-nos ver um vulto de homem e outro
de mulher que no cimo das escadas da torre do relógio davam um prolongado beijo
de namorados.
Ao fixar o rosto do Tricas apercebi-me que tinha um sorriso
velhaco de orelha a orelha quando me perguntou: «sabias que os fantasmas
também dão beijos?».
Pudemos vê-los desaparecer na penumbra de uma arcada do
terreiro medieval.
Voltei a encher o peito de ar, desta vez ufano por ter
acompanhado o Tricas naquela odisseia nocturna. Disse mesmo ao meu amigo: –não
vou esquecer o que vi esta noite…, aconteça o que acontecer quando chegar a
casa.
Dito isto, eis que nos preparávamos para abandonar a torre
da forca, como era conhecida: simultaneamente sentimos um frio gélido
percorrer-nos o corpo, ao mesmo tempo que um som pavoroso de relinchar e
trotear, vindo do lado dos ganchos dos condenados, nos fazia vibrar os tímpanos
e olhar naquela direcção.
Aterrorizados…, sem nada dizer um ao outro…, o que vimos a
seguir desencadeou precipitada fuga, seguramente mais rápida que o voo da
coruja branca.
Ainda hoje recordo com incómodo aquela aparição – uma
silhueta humana…, mais brilhante que a claridade do astro…, permanecia
pendurada num dos ganchos de mármore da secular torre dos enforcados.
AC
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