«A Revolução dos Bichos»
Excerto do Conto de George Orwell
395- «A REVOLUÇÃO DOS BICHOS»
[Excerto]
O Sr. Jones, dono da Granja do Solar, fechou o galinheiro
para a noite, mas estava bêbado demais para lembrar-se de fechar também as
vigias. Com o facho de luz da sua lanterna balançando de um lado para o outro,
atravessou cambaleante o pátio, tirou as botas na porta dos fundos, tomou um
último copo de cerveja do barril da copa e foi para a cama, onde sua mulher já
ressonava.
Tão logo apagou-se a luz do quarto, houve um silencioso movimento em todos os
galpões da granja. Correra, durante o dia, o boato de que o velho Major, um
porco que já fora premiado numa exposição, tivera um sonho muito estranho na
noite anterior e desejava contá-lo aos outros animais. Haviam combinado
encontrar-se no celeiro, assim que Jones se deitasse. O velho Major
(chamavam-no assim, muito embora ele houvesse concorrido na exposição com o
nome de "Belo de Willingdon") gozava de tão alto conceito na granja
que todos estavam dispostos a perder uma hora de sono só para ouvi-lo.
Ao fundo do grande celeiro, sobre uma espécie de estrado, estava o Major
refestelado em sua cama de palha, sob um lampião que pendia da viga. Com doze
anos de idade, já bem corpulento, era ainda um porco de porte majestoso, com um
ar sábio e benevolente, a despeito de suas presas jamais terem sido cortadas. Os
outros animais chegavam e punham-se a cômodo, cada qual a seu modo. Os
primeiros foram os três cachorros, Branca, Lulu e Cata-Vento, depois os porcos,
que se sentaram sobre a palha, em frente ao estrado. As galinhas
empoleiraram-se nas janelas, as pombas voaram para os caibros do telhado, as
ovelhas e as vacas deitaram-se atrás dos porcos e ali ficaram a ruminar. Os
dois cavalos de tração, Sansão e Quitéria, chegaram juntos, andando lentamente
e pousando no chão os enormes cascos peludos, com grande cuidado para não
machucar qualquer animalzinho porventura oculto na palha. Quitéria era uma égua
volumosa, matronal, já chegada à meia-idade, cuja silhueta não mais se
recompusera após o nascimento do quarto potrinho.
Sansão era um bicho enorme, de quase um metro e noventa de altura, forte como
dois cavalos. A mancha branca do focinho dava-lhe um certo ar de estupidez, e,
realmente, ele não tinha lá uma inteligência de primeira ordem, embora fosse
grandemente respeitado pela retidão de caráter e pela tremenda capacidade de
trabalho. Depois dos cavalos chegaram Maricota, a cabra branca, e Benjamim, o
burro. Benjamim era o animal mais idoso da fazenda, e o mais moderado. Raras
vezes falava e, em geral, quando o fazia, era para emitir uma observação cínica
- para dizer, por exemplo, que Deus lhe dera uma cauda para espantar as moscas
e que, no entanto, seria mais do seu agrado não ter nem a cauda nem as moscas.
Era o único dos animais que nunca ria. Quando lhe perguntavam por quê,
respondia não ver motivo para riso. Não obstante, sem que o admitisse
abertamente, tinha certa afeição por Sansão; normalmente passavam os domingos
juntos no pequeno potreiro existente atrás do pomar, pastando lado a lado em
silêncio.
Mal se haviam acomodado os dois cavalos, quando uma ninhada de patinhos órfãos
desfilou celeiro adentro, piando baixinho e procurando um lugar onde não fossem
pisoteados. Quitéria protegeu-os com a pata dianteira e os patinhos ali se
aconchegaram, caindo no sono. No último instante, Mimosa, a égua branca, vaidosa
e fútil, que puxava a charrete do Sr. Jones, entrou, requebrando-se
graciosamente e mastigando um torrão de açúcar. Tomou lugar bem à frente e
ficou meneando a crina branca, na esperança de chamar atenção para as fitas
vermelhas que a adornavam. Por fim, chegou a gata, que buscou, como sempre, o
lugar mais morno, enfiando-se entre Sansão e Quitéria; ronronou satisfeita
durante toda a fala do Major, sem ouvir uma só palavra.
Todos os animais estavam presentes, exceto Moisés, o corvo domesticado, que dormia
fora, num poleiro junto à porta dos fundos. Quando o Major os viu, bem
acomodados e aguardando atentamente, limpou a garganta e começou:
- Camaradas, já ouvistes, por certo, algo a respeito do estranho sonho que tive
à noite passada. Mas falarei do sonho mais tarde. Antes, tenho outras coisas a
dizer. Sei, camaradas, que não estarei convosco por muito mais tempo e, antes
de morrer, considero uma obrigação transmitir-vos o que aprendi sobre o mundo.
Já vivi bastante e muito tenho refletido na solidão da minha pocilga. Creio
poder afirmar que compreendo a natureza da vida sobre esta terra, tão bem
quanto qualquer outro animal vivente. É sobre o que desejo vos falar.
"Então, camaradas, qual é a natureza desta nossa vida? Enfrentemos a
realidade: nossa vida é miserável, trabalhosa e curta. Nascemos, recebemos o
mínimo alimento necessário para continuar respirando, e os que podem trabalhar
são exigidos até a última parcela de suas forças; no instante em que nossa
utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade.
Nenhum animal, na Inglaterra, sabe o que é felicidade ou lazer, após completar
um ano de vida. Nenhum animal, na Inglaterra, é livre. A vida do animal é feita
de miséria e escravidão: essa é a verdade, nua e crua.
"Será isso, apenas, a ordem natural das coisas? Será esta nossa terra tão
pobre que não ofereça condições de vida decente aos seus habitantes? Não,
camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, o clima é bom, ela
pode dar alimento em abundância a um número de animais muitíssimo maior do que
o existente. Só esta nossa fazenda comportaria uma dúzia de cavalos, umas vinte
vacas, centenas de ovelhas - vivendo todos num conforto e com uma dignidade
que, agora, estão além de nossa imaginação. Por que, então, permanecemos nesta
miséria? Porque quase todo o produto do nosso esforço nos é roubado pelos seres
humanos. Eis aí, camaradas, a resposta a todos os nossos problemas. Resume-se
em uma só palavra - Homem. O Homem é o nosso verdadeiro e único inimigo.
Retire-se da cena o Homem e a causa principal da fome e da sobrecarga de
trabalho desaparecerá para sempre.
"O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não
põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o que dê para pegar uma
lebre. Mesmo assim, é o senhor de todos os animais. Põe-nos a mourejar, dá-nos
de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante. Nosso trabalho
amanha o solo, nosso estrume o fertiliza, e, no entanto, nenhum de nós possui
mais que a própria pele. As vacas, que aqui vejo à minha frente, quantos litros
de leite terão produzido neste ano? E que aconteceu a esse leite, que poderia
estar alimentando robustos bezerrinhos? Desceu pela garganta dos nossos
inimigos. E as galinhas, quantos ovos puseram neste ano, e quantos se
transformaram em pintinhos? Os restantes foram para o mercado, fazer dinheiro
para Jones e seus homens. E você, Quitéria, diga-me onde estão os quatro
potrinhos que deveriam ser o apoio e o prazer da sua velhice. Foram vendidos
com a idade de um ano - nunca mais você os verá. Como paga por seus quatro
partos e por todo o seu trabalho no campo, que recebeu você, além de ração e
baia?
"Mesmo miserável como é, nossa vida não chega nem ao fim de modo natural.
Não me queixo por mim, que tive até muita sorte. Estou com doze anos e sou pai
de mais de quatrocentos porcos. Isto é a vida normal de um barrão. Mas no fim,
nenhum animal escapa ao cutelo.
Vós, jovens leitões que estais sentados à minha frente, não escapareis de
guinchar no cepo, dentro de um ano. Todos chegaremos a esse horror, as vacas,
os porcos, as galinhas, as ovelhas, todos. Nem mesmo os cavalos e os cachorros
escapam a esse destino. Sansão, no dia em que seus músculos fortes perderem a
rigidez, Jones o mandará para o carniceiro e você será degolado e fervido para
os cães de caça. Quanto aos cachorros, depois de velhos e desdentados, Jones
amarra-lhes uma pedra ao pescoço e os atira na primeira lagoa.
"Não está, pois, claro como água, camaradas, que todos os males da nossa
existência têm origem na tirania dos humanos? Basta que nos livremos do Homem
para que o produto de nosso trabalho seja só nosso. Praticamente, da noite para
o dia, poderíamos nos tornar ricos e livres. Que fazer, então? Trabalhar dia e
noite, de corpo e alma, para a derrubada do gênero humano. Esta é a mensagem
que eu vos trago, camaradas: Rebelião! Não sei dizer quando será esta
revolução, pode ser daqui a uma semana ou daqui a um século, mas uma coisa eu
sei, tão certo quanto o ver eu esta palha sob meus pés: mais cedo ou mais
tarde, justiça será feita. Fixai isso, camaradas, para o resto de vossas curtas
vidas! E, sobretudo, transmiti esta minha mensagem aos que virão depois de vós,
para que as futuras gerações continuem na luta, até a vitória.
"E lembrai-vos, camaradas, jamais deixai fraquejar vossa decisão. Nenhum
argumento vos poderá desviar. Fechai os ouvidos quando vos disserem que o Homem
e os animais têm interesses comuns, que a prosperidade de um é a prosperidade
dos outros. É tudo mentira. O Homem não busca interesses que não os dele
próprio. Que haja entre nós, animais, uma perfeita unidade, uma perfeita
camaradagem na luta. Todos os homens são inimigos, todos os animais são
camaradas."
Nesse momento houve uma tremenda confusão. Enquanto o Major falava, quatro
ratos haviam emergido de seus buracos e estavam sentados nas patinhas de trás,
a ouvi-lo. De repente, os cachorros lhes deram pela presença, e somente pela
rapidez com que sumiram nos buracos foi que os ratos conseguiram escapar com
vida. O Major levantou a pata, pedindo silêncio.
- Camaradas -disse ele -, eis aí um ponto que precisa ser esclarecido. As
criaturas rebeldes, tais como os ratos e os coelhos, serão nossos amigos ou
nossos inimigos? Coloquemos o assunto em votação. Apresento à assembleia a seguinte
questão: são os ratos camaradas?
A votação foi realizada imediatamente e concluiu-se, por esmagadora maioria,
que os ratos eram camaradas. Houve apenas quatro votos contra, dos três
cachorros e da gata, que, depois se descobriu, votara pelos dois lados. O Major
prosseguiu:
- Pouco mais tenho a dizer. Repito apenas: lembrai-vos sempre do vosso dever de
inimizade para com o Homem e todos os seus desígnios. O que quer que ande sobre
duas pernas é inimigo, o que quer que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas,
é amigo.
Lembrai-vos também de que na luta contra o Homem não devemos ser como ele.
Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai-lhe os vícios. Animal nenhum deve
morar em casas, nem dormir em camas, nem usar roupas, nem beber álcool, nem
fumar, nem tocar em dinheiro, nem comerciar. Todos os hábitos do Homem são
maus. E, principalmente, jamais um animal deverá tiranizar outros animais.
Fortes ou fracos, espertos ou simplórios, somos todos irmãos. Todos os animais
são iguais.
"E agora, camaradas, vou contar-vos o sonho que tive na noite passada. Não
sei o que significa. Foi um sonho sobre como será o mundo quando o homem
desaparecer. Mas lembrou-me algo que havia muito eu esquecera. Há anos, quando
eu ainda era leitãozinho, minha mãe e as outras porcas costumavam cantar uma
antiga canção da qual só conheciam a melodia e as três primeiras palavras. Na
minha infância aprendi a melodia, depois a esqueci. À noite passada,
entretanto, ela me voltou à memória. O mais interessante é que me lembrei também
dos versos - os quais, tenho certeza, foram cantados pelos animais de antanho,
depois esquecidos por muitas gerações. Vou cantar essa canção, camaradas. Estou
velho e minha voz é rouca, mas, quando vos houver ensinado a melodia, podereis
cantá-la melhor do que eu. Chama-se 'Bichos da Inglaterra'."
O velho Major limpou a garganta e começou a cantar. De fato, a voz era
roufenha, mas ele entoava bem, e a melodia era bem movimentada, algo entre
"Clementina" e "La Cucaracha". Os versos diziam:
Bichos da Inglaterra e da Irlanda,
Daqui, dali, de acolá,
Escutai a alvissareira
Novidade que virá.
Mais hoje, mais amanhã,
O Tirano vem ao chão,
E os campos da Inglaterra
Só os bichos pisarão.
Não mais argolas nas ventas,
Dorsos livres dos arreios,
Freio e espora enferrujando
E relho em cantos alheios.
Riqueza incomensurável,
Terra boa, muito grão,
Trigo, cevada e aveia,
Pastagem, feno e feijão.
Lindos campos da Inglaterra,
Ribeiros com águas puras,
Brisas leves circulando,
Liberdade nas alturas.
Lutemos por esse dia
Mesmo que nos custe a vida.
Gansos, vacas e cavalos,
Todos unidos na lida.
Bichos da Inglaterra e da Irlanda,
Daqui, dali, de acolá,
Levai esta minha mensagem
E o futuro sorrirá.
O canto levou a bicharada à mais extrema excitação. Mesmo antes de o Major
chegar ao fim, já haviam começado a cantar por conta própria. Até os mais
parvos pegaram a melodia e algumas palavras; os mais vivos, tais os porcos e os
cachorros, decoraram a canção em minutos. Então, depois de algumas tentativas,
a granja toda atacou "Bichos da Inglaterra" em potente uníssono. As
vacas mugiam a canção, os cachorros latiam-na, as ovelhas baliam-na, os cavalos
relinchavam-na, os patos grasnavam-na. Foi tal o enlevo, que cantaram cinco
vezes corridas, de ponta a ponta, e teriam cantado a noite toda se não fossem
interrompidos.
Infelizmente, o alarido acordou Jones, que pulou da cama certo de que havia
raposa no pátio. Deu de mão na espingarda, sempre pronta a um canto do quarto,
e disparou uma carga de chumbo grosso na escuridão. O chumbo foi encravar-se na
parede do celeiro, e a reunião dispersou-se num abrir e fechar de olhos. Cada
qual correu para seu pouso. As aves saltaram para os poleiros, o gado deitou-se
na palha e, em poucos instantes, toda a fazenda dormia.
George Orwell
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