«A Mulher que Chorava»
Mulher Chorando/ Paul Ranson
403- «A MULHER QUE CHORAVA»
Acordou tão feliz. A freira abriu a porta do quarto e atravessou
o pequeno corredor entre as camas. Algumas mulheres acordaram logo que esses
pequenos ruídos tocaram o silêncio: a fechadura da porta, as solas finas de
borracha sobre os tacos de madeira. Quase encostada à janela, a freira subiu
as persianas. Naquele quarto, havia duas filas de quatro camas de ferro. À
noite, as mulheres deitavam-se e ficavam com os pés apontados para o centro do
quarto. A freira subiu as persianas. A luz que entrava no quarto era feita de
uma juventude de luz. Devagar, a luz subiu pela superfície do quarto e pela
superfície dos corpos das mulheres deitadas sob os cobertores. Os corpos das
mulheres estavam mornos. Os cobertores eram de lã muito macia por estar gasta,
eram castanhos, cheiravam a lavados e cheiravam ao detergente que era o cheiro
de todos os objectos do asilo. A freira, diante da janela, em silêncio,
parou-se a olhar para as mulheres que acordavam. Mais pela luz doce do que
pelas vozes das mulheres que falavam umas para as outras, mais pela luz doce do
que pelo olhar também doce da freira, ela acordou. Tão feliz. A sua cama era a
terceira a contar da janela, na fila que ficava à esquerda do olhar da freira.
Ao abrir os olhos, a luz da manhã. Sentia no corpo a combinação e os lençóis
mornos. Levantou o braço sobre o cobertor. Já fora da cama, enquanto vestia o
roupão e calçava os chinelos, lembrava-se ainda do sonho que tivera.
Lembrava-se do sonho como se sonhasse ainda. Sorria. Tinha sonhado que era
nova e que não estava no asilo. Era nova e estava em casa. A mãe chamava-a da
cozinha. Era nova. Tinha sonhado. Tinha acordado tão feliz. Era nova. A mãe
chamava-a da cozinha. No sonho, tinha um pedaço de espelho na mão. Os seus cabelos
eram longos e viçosos. A sua pele era lisa. Os seus olhos eram novos e
brilhavam. Tinha sonhado. Com a toalha dobrada sobre o ombro, com o sabonete na
mão, esperava na fila para o banho. Ela não estava habituada, mas as freiras
diziam que todas as mulheres tinham de tomar um duche ao acordar. Ela
respeitava as regras do asilo. O vapor envolvia-lhe o olhar. As vozes das
mulheres à sua volta eram uma coisa que acontecia num sítio onde ela não estava.
Tinha sonhado que era nova. Como se sonhasse ainda, sorria.
Acordou incomodada. O cão começou a ladrar no quintal.
Ainda de madrugada, o cão começou a ladrar, como se ladrasse contra qualquer
coisa sem solução: o frio ou a morte. O início do inverno entrava pela janela
com a nitidez incómoda do frio. O início do inverno pousava sobre a pequena
bacia de esmalte e sobre as voltas de ferro do lavatório, pousava sobre a
cómoda pobre. Entre os lençóis e sob a flanela da camisa de noite caminhavam
linhas de ar gelado que lhe tocavam a pele. Ainda com os olhos fechados, o mo
e o cão a ladrar trouxeram-lhe a vida que existe com os olhos fechados. A cara
engelhada deixou que os olhos se abrissem devagar. Admirou-se com a luz que era
como fosse o frio vagamente a iluminar todas as coisas. Os latidos do cão
atravessavam o pequeno quadrado de vidro da janela e enchiam o quarto. Afastou
a roupa da cama e levantou-se subitamente. Abriu a gaveta da banquinha e
retirou um pedaço de espelho. Era o pedaço de um espelho que se tinha partido e
que ela tinha encontrado a brilhar na rua. O incómodo de ter acordado permanecia.
O incómodo de ter sonhado. Num sonho que continuava depois do momento em que
acordou, tinha-se visto velha. Os seus cabelos eram brancos e secos, eram
velhos e mortos. Eram cabelos monos e cinzentos e sujos. A sua pele era muito
velha porque era muito mole. O seu rosto era velho. Segurou o pedaço de espelho
entre os dedos e, naquela superfície onde não cabia mais do que o olhar de um
dos olhos, viu o reflexo da sua pele lisa, dos seus lábios, dos seus cabelos
longos e castanhos. Passou os dedos pelos cabelos. Por um instante sentiu-se
descansada. Por um instante, sentiu-se aliviada. A mãe chamava-a da cozinha.
Naquele dia, aproximou-se da mãe com estranheza. Observou as suas mãos, os seus
cabelos, o seu rosto, os seus olhos. Imaginou-se com a idade da mãe,
imaginou-se igual a ela. No sonho que permanecia dentro dela, como uma
lembrança que não conseguisse esquecer, era ainda mais velha do que a mãe. Por
instantes, sentia o corpo cansado. Sem olhar para os cabelos, sentia-os cinzentos.
Sem olhar para a pele, sentia-lhe as rugas como um peso. Sentia que os olhos
lhe começavam a chorar de cansaço. Depois, lembrava-se do frio, e lembrava-se
que lhe cresciam lágrimas nos olhos por causa do frio. Depois passava as
palmas das mãos na pele do braço, puxava as pontas dos cabelos com os dedos, e
sossegava. A mãe pediu-lhe para ir buscar lenha ao quintal. O frio entrava por
baixo da porta. Ela abriu a porta. O mo bateu-lhe no rosto. No quintal, a irmã
brincava com o cão que estava preso ao limoeiro. A irmã atirava um pequeno
limão verde a rolar pela terra, o cão corria para agarrá-lo e, no momento em
que abria a boca, a corda esticava-se a partir do tronco do limoeiro e segurava
o cão pelo pescoço. Aproximou-se da pilha de lenha, agachou-se e, com uma das
mãos, começou a encher o outro braço de achas que apertava de encontro ao
peito. A irmã, pequena, deixou o cão e arrumou-se à sua saia. Meteu conversa.
Ela não respondeu. Sentia-se velha. Como no sonho. Era velha. Como no sonho. Em
instantes, não sabia se o sonho tinha sido antes ou depois de acordar.
Depois da missa, deixou-se ficar ajoelhada na capela do
asilo a fingir que rezava. À saída, as freiras olharam para ela contentes e
quase comovidas. As outras mulheres olharam para ela desconfiadas. Ficou
sozinha. A capela, fresca, não existia. Dentro de si, debaixo dos seus olhos
fechados, existia aquele sonho onde era uma rapariga. Debaixo dos seus olhos
fechados, era nova, tinha ido ao quintal buscar lenha. Sorria. A irmã caminhava
ao seu lado. Debaixo dos seus olhos fechados, tinha entrado na cozinha, tinha
atirado a lenha para dentro do cesto da lenha. Sorria. Ajoelhada diante da
lareira, tinha acendido uma pinha, cruzado duas achas, encostadas ao madeiro
meio ardido que sobrara do dia anterior, e tinha disposto a pinha num sítio
onde as suas chamas tocavam o ponto em que as achas se cruzavam. Ao seu lado, a
irmã olhava as chamas a pegarem-se às achas e ao madeiro, olhava o lume. A mãe
tinha-lhe posto um púcaro de café sobre a mesa. Sentou-se num banco a beber. O
café aquecia-lhe um caminho no interior. Abria os olhos, tentando ver, tentando
sentir tudo o que a rodeava, mas os olhos embaciavam-se e não viam senão
aquilo com que tinha sonhado. Sentada a beber café, via-se velha, via-se
ajoelhada numa capela que não conhecia. Devagar, com as costas a não se
dobrarem, devagar, com as pernas sem acção nenhuma, devagar, com as mãos
agarradas ao banco da frente, devagar, levantava-se velha e velha. Não olhava
para o altar da capela que não conhecia. Olhava para a porta aberta, para a luz
a atravessar o lugar da porta. Ver o que tinha sonhado na noite anterior
incomodava-a. O café não lhe fazia proveito. Mas, por mais que tentasse, não
conseguia deixar de se ver como se tinha sonhado. Estava numa capela que não
conhecia e olhava para a luz a atravessar o lugar da porta. Caminhava em
direcção à porta. Os seus passos eram um ruído leve, mas que durava no mármore.
Ao acabar de beber o café, a mãe pediu-lhe que fosse à venda comprar uma quarta
de chouriço para o jantar. Já ia a sair, quando a mãe lhe pediu que levasse a
irmã. Estendeu-lhe a mão. Na rua, de mãos dadas com a irmã, continuava com o
sonho a encher aquilo em que pensava. Velha, avançava por um caminho de terra,
entre canteiros de flores que recebiam o sol sobre uma juventude que parecia
rir-se da sua pele velha e dos seus cabelos sem vigor e dos seus movimentos
trôpegos. Mas estava tão feliz com o sonho da noite anterior, com o sonho que
ainda estava dentro dela. Ião feliz. O sonho era como aqueles sábados em que
acordava a acreditar que era já domingo. No asilo, os dias eram todos iguais.
Mas, às vezes, era sábado e acreditava que era já domingo. Nem quando percebia
que não era domingo, nem quando via que não tinha ido à missa de domingo, nem
quando chegava a hora da visita e reparava que as visitas de domingo não
tinham chegado, deixava de pensar que era domingo nesses sábados em que
acordava a acreditar que era já domingo. Assim estava o sonho dentro dela.
Via-se nova. Caminhava pelo jardim do asilo, entre os muros de buxo e os
canteiros de amores-perfeitos, e via-se nova. Via-se na rua, de mãos dadas com
a irmã, a caminhar para a venda onde iria comprar uma quarta de chouriço para o
jantar.
Estava sentada à mesa. Durante todo o dia, por mais que
tivesse tentado fixar-se nas coisas da sua juventude, não tinha perdido aquela
estranheza. Estava velha por dentro. Estava sentada à mesa. Estava cansada.
Sentia o mesmo incómodo que sentira no momento em que acordou. O jantar estava
ao centro da mesa. A mãe estava sentada num lado, a irmã estava sentada no
outro, ela estava sentado no outro. Não falavam. O candeeiro de petróleo
enegrecia as marcas do rosto da irmã quando ela tentava dizer qualquer coisa. A
mãe encheu os pratos de sopa. Levantou o chouriço com uma colher e partiu-o em
dois pedaços que pôs nos pratos das filhas. Ela estava com pouca vontade de
comer. O lume ardia e ela pensava que dentro de pouco tempo seriam horas de ir
dormir. Ela estava com medo de dormir. Ela estava com medo de sonhar. Em
algumas ocasiões, ao enfiar a colher na boca, fechava os olhos e via-se rodeada
de velhas a comerem sopa num salão muito iluminado. Abria os olhos de repente.
Via a mãe e a irmã. O seu coração batia depressa. Nem a mãe, nem a irmã
repararam nestes sustos que ela apanhava. Depois de comer, depois de lavar a
loiça, foi deitar a irmã. Despiu-lhe o vestidinho e pôs-lhe a camisa de
flanela. Nunca olhou para o rosto da sua pequena irmã com tanta ternura como
nessa noite. Pousou-lhe a roupa da cama sobre o peito. A irmã baixou as
pálpebras sobre os olhos. A pele branca e serena. Ficou a olhar para o seu
rosto. A irmã adormeceu logo a seguir. A sua respiração tão calma. Saiu do
quarto da irmã com passinhos breves. Entrou no seu quarto com medo de dormir.
Despiu-se, pôs a camisa de noite. Deitou-se debaixo dos lençóis frios. Ficou
inquieta durante muito tempo. Estava nervosa. Estava incomodada. Dava voltas
na cama. Tinha medo de adormecer e de sonhar de novo. Cada instante da noite
parecia muito grande. Mas depois de muito tempo, depois de ter passado muito
tempo dentro da noite, depois de o tempo já não se distinguir da noite longa,
vasta, imensa, o seu corpo perdeu as forças e finalmente adormeceu.
Estava sentada à mesa. Naquele dia tinha sido tão feliz. Na
sala de jantar do asilo, as freiras passaram a distribuir terrinas de sopa
pelas mesas. A luz branca das lâmpadas fluorescentes tomava a sala de jantar
nítida para quem tivesse os olhos nítidos. Ela tinha os olhos num sorriso que
via ainda os seus olhos jovens. Os seus olhos viam os seus olhos. Ao seu lado,
não estavam aquelas mulheres a comer sopa, aquelas mulheres que levantavam
muito depressa a colher como se, do prato até à boca, a sopa se entornasse da
colher. Aquelas mulheres que tremiam com a colher cheia de sopa, que fechavam a
boca muito depressa sobre a colher. Ao seu lado estava a sua irmã pequena e a
sua mãe. Sorria. Via-as juntas e sorria porque, naquele tempo, ainda a irmã não
tinha apanhado a pneumonia que havia de a levar. A pneumonia que havia de lhe
pôr a pele cinzenta, cada vez mais magra, as costelas a conhecerem-se mesmo
com a camisa de flanela vestida, a voz frágil a pedir-lhe para brincar com ela,
as mãos pequenas e fracas, um sorriso pequeno e fraco na pele cinzenta, os
olhos quase a fecharem-se e, depois, morta. A sua irmã pequena morta. O caixão
branco de anjinho. A sua mãe a chorar. A aflição dentro dela. Tudo isso era
ainda impossível quando, dentro daquele sonho, via a irmã a comer sopa. A sua
irmã feliz e inocente. Aquele sonho era um pedaço da sua vida antes da
tristeza. Naquele dia tinha sido tão feliz. Rodeada de mulheres que comiam
sopa, estava ao lado da sua irmã e da sua mãe. A irmã ainda não tinha morrido e
a mãe ainda não tinha envelhecido tanto. A mãe ainda não tinha as roupas pretas
que havia de vestir durante toda a vida, durante todos os dias. Ainda não era
uma velha como ela era ali, sentada à mesa, naquele asilo. Nem a morte. Nem o
cemitério com a campa pequena da irmã, um montinho de terra e uma cruz no
talhão dos anjinhos, com a campa da mãe, mármore e o seu nome e a sua única
fotografia. Nem o cemitério sozinho com noites consecutivas, sempre negras,
sempre frias, noites a passarem sobre a terra, sobre os rostos da sua irmã e da
sua mãe. Tudo isso era impossível quando, dentro daquele sonho, via a irmã a
comer sopa. A sua irmã feliz e inocente. Aquele sonho era um pedaço da sua
vida antes da tristeza.
Naquele dia tinha sido tão feliz. Assim que acabou de comer
quis ir para a cama. Queria dormir. Queria sonhar. Queria ser nova durante mais
um dia.
Acordou tão feliz. Assim que percebeu que estava acordada,
acordou dentro dela um júbilo infinito porque percebeu que tinha sonhado de
novo. Deitada, rodeada de vozes de mulheres a acordarem também, sob o olhar da
freira, estava deitada, rodeada de uma luz fria, sob o som do cão a ladrar
preso ao limoeiro do quintal. Acordou incomodada. Tinha sonhado de novo.
Levantou-se da cama. Na fila para tomar banho, sentia nos braços os arranhões
suaves das cascas da lenha que carregava para o lume. Enquanto riscava um
fósforo, abria a torneira da água. A pequena chama pegava-se à pinha. Com as
costas da mão, via que a água do chuveiro já estava morna. Sentia a água no corpo
velho, novo. Sentia o calor do lume no corpo velho, novo. A irmã estava ao seu
lado enquanto passava o sabonete pelos braços. Agachada diante do lume, ouvia
as vozes das outras mulheres. A mãe andava na cozinha de um lado para o outro.
A mãe andava na cozinha de um lado para o outro. A irmã estava viva. A mãe
estava viva. Velha, nova, aceitava mais um dia. Queria viver.
José Luís Peixoto
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